quarta-feira, 25 de junho de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Sétimo - Parêntesis / VI - Bondade absoluta da oração

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Sétimo — Parêntesis

VI - Bondade absoluta da oração
     
      Quanto ao modo de orar, todos servem, contanto que sejam sinceros. Voltai o vosso livro do avesso e permanecei no infinito.
     Sabemos que há uma filosofia que nega o infinito. Também há uma filosofia, patologicamente classificada, que nega o sol; chama-se cegueira.
     Erigir em fonte de verdade um sentido que nos falta, é arrojo de cego.
     O mais curioso são os modos al vos e superiores, o ar de compaixão que toma esta filosofia que palpa, para com a filosofia que vê a Deus. Parece ouvir-se uma toupeira a gritar: «Que gente, que me causa lástima com o seu Sol!»
      Sabemos que há ilustres e fortes ateus. Estes, no fundo impelidos para a verdade pela sua mesma força, não têm grande certeza de serem ateus; dá-se com eles apenas uma questão de definição, e em todos os casos, se não creem em Deus, sendo grandes espíritos, provam ao menos a sua existência.
     Saudamos neles os filósofos, qualificando ao mesmo tempo, inexoravelmente, a sua filosofia.
     Continuemos, porém.
     O mais admirável também é a facilidade com que alguns se contentam com palavras. Julgou uma escola metafísica do norte, algum tanto impregnada de nevoeiro, que tinha feito uma grande revolução no entendimento humano, substituindo a palavra Força pela palavra Vontade.
     Dizer: a planta quer, em vez de: a planta cresce, seria, com efeito, uma coisa fecunda, se se acrescentasse: o Universo quer. Porque razão? Porque daria em resultado isto: a planta quer, logo tem um eu; o Universo quer, logo tem um Deus.
     Quanto a nós, que, todavia, ao avesso desta escola, não rejeitamos nada à priori, uma vontade na planta como a que esta escola aceita, parece-nos mais difícil de admitir do que uma vontade no Universo, por ela negada.     
     Negar a vontade do infinito, isto é, negar a Deus, é uma coisa impossível, a não se negar também o infinito. Já o demonstrámos.
     A negação do infinito leva-nos direitos ao niilismo. Torna-se tudo «uma concepção do espírito».
     Com o niilismo não há discussão possível. Porque o niilismo lógico duvida que o seu interlocutor exista, e nem ele próprio tem grande certeza de que existe.
     Debaixo do ponto de vista em que ele toma as coisas é possível que ele próprio não seja para si mesmo mais do que «uma concepção do seu espírito».
     Não repara, porém, que tudo o que ele negou admite-o em globo, só com pronunciar esta palavra: Espírito.
     Em suma: uma filosofia, que faz terminar tudo no monossílabo. Não, não abre caminho ao pensamento.
     Para ‘Não’ só há uma resposta: Sim. 
     O niilismo é uma coisa sem alcance. 
     O nada não existe. O zero não existe. Tudo é alguma coisa. Nada é nada. 
     O homem ainda vive mais de afirmação do que de pão.
     Nem mesmo ver e mostrar basta. A filosofia deve ser uma energia; deve ter por esforço e efeito melhorar o homem. Deve entrar Sócrates em Adão e produzir Marco Aurélio; por outras palavras, fazer sair do homem da felicidade o homem da sabedoria. Mudar o Éden em Liceu. A ciência deve ser um cordial. Se o seu fim, se a sua ambição é só gozar, que triste fim, que deplorável ambição! Ambição brutal! O verdadeiro triunfo da alma consiste em pensar. Estender o pensamento à sede dos homens, dar-lhes a todos, como elixir, a noção de Deus, fazer fraternizar neles a consciência e a ciência, torná-los justos por este misterioso confronto, eis a função da filosofia real. A moral é como um botão fechado que desabrocha em verdades. Contemplar leva a agir.
     Deve ser prático o Absoluto. É necessário que o ideal possa ser respirado, comido e bebido pelo espírito humano. O ideal é que tem direito para dizer: «Tomai, isto é a minha carne, isto é o meu sangue». A sabedoria é uma comunhão sagrada. É com essa condição que ela cessa de ser um estéril amor da ciência para se tornar o modo único e soberano da união humana e que de filosofia é promovida a religião.
     A filosofia não deve ser uma sacada construída no mistério para o vermos à vontade, sem outro resultado mais do que o de podermos satisfazer a nossa curiosidade sem incomodo.
     Pelo que nos toca, limitamo-nos a dizer, adiando para outra ocasião o desenvolvimento do nosso pensamento, que não compreendemos, nem o homem como ponto de par da, nem o progresso como fim, sem estas duas forças que são dois motores: crer e amar. O progresso é o fim, o ideal é o tipo.
     Que é o ideal? É Deus. 
     Ideal, absoluto, perfeição, infinito, são termos idênticos.

continua na página 395...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sétimo - VI - Bondade absoluta da oração
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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