Victor Hugo - Os Miseráveis
Segunda Parte - Cosette
Livro Sétimo — Parêntesis
VI - Bondade absoluta da oração
Quanto ao modo de orar, todos servem, contanto que sejam sinceros. Voltai o vosso
livro do avesso e permanecei no infinito.
Sabemos que há uma filosofia que nega o infinito. Também há uma filosofia,
patologicamente classificada, que nega o sol; chama-se cegueira.
Erigir em fonte de verdade um sentido que nos falta, é arrojo de cego.
O mais curioso são os modos al vos e superiores, o ar de compaixão que toma esta
filosofia que palpa, para com a filosofia que vê a Deus. Parece ouvir-se uma toupeira a
gritar: «Que gente, que me causa lástima com o seu Sol!»
Sabemos que há ilustres e fortes ateus. Estes, no fundo impelidos para a verdade pela
sua mesma força, não têm grande certeza de serem ateus; dá-se com eles apenas uma
questão de definição, e em todos os casos, se não creem em Deus, sendo grandes
espíritos, provam ao menos a sua existência.
Saudamos neles os filósofos, qualificando ao mesmo tempo, inexoravelmente, a sua
filosofia.
Continuemos, porém.
O mais admirável também é a facilidade com que alguns se contentam com palavras.
Julgou uma escola metafísica do norte, algum tanto impregnada de nevoeiro, que tinha
feito uma grande revolução no entendimento humano, substituindo a palavra Força pela
palavra Vontade.
Dizer: a planta quer, em vez de: a planta cresce, seria, com efeito, uma coisa fecunda,
se se acrescentasse: o Universo quer. Porque razão? Porque daria em resultado isto: a
planta quer, logo tem um eu; o Universo quer, logo tem um Deus.
Quanto a nós, que, todavia, ao avesso desta escola, não rejeitamos nada à priori, uma
vontade na planta como a que esta escola aceita, parece-nos mais difícil de admitir do
que uma vontade no Universo, por ela negada.
Negar a vontade do infinito, isto é, negar a Deus, é uma coisa impossível, a não se
negar também o infinito. Já o demonstrámos.
A negação do infinito leva-nos direitos ao niilismo. Torna-se tudo «uma concepção do
espírito».
Com o niilismo não há discussão possível. Porque o niilismo lógico duvida que o seu
interlocutor exista, e nem ele próprio tem grande certeza de que existe.
Debaixo do ponto de vista em que ele toma as coisas é possível que ele próprio não
seja para si mesmo mais do que «uma concepção do seu espírito».
Não repara, porém, que tudo o que ele negou admite-o em globo, só com pronunciar
esta palavra: Espírito.
Em suma: uma filosofia, que faz terminar tudo no monossílabo. Não, não abre
caminho ao pensamento.
Para ‘Não’ só há uma resposta: Sim.
O niilismo é uma coisa sem alcance.
O nada não existe. O zero não existe. Tudo é alguma coisa. Nada é nada.
O homem ainda vive mais de afirmação do que de pão.
Nem mesmo ver e mostrar basta. A filosofia deve ser uma energia; deve ter por
esforço e efeito melhorar o homem. Deve entrar Sócrates em Adão e produzir Marco
Aurélio; por outras palavras, fazer sair do homem da felicidade o homem da sabedoria.
Mudar o Éden em Liceu. A ciência deve ser um cordial. Se o seu fim, se a sua ambição é
só gozar, que triste fim, que deplorável ambição! Ambição brutal! O verdadeiro triunfo
da alma consiste em pensar. Estender o pensamento à sede dos homens, dar-lhes a
todos, como elixir, a noção de Deus, fazer fraternizar neles a consciência e a ciência,
torná-los justos por este misterioso confronto, eis a função da filosofia real. A moral é
como um botão fechado que desabrocha em verdades. Contemplar leva a agir.
Deve ser prático o Absoluto. É necessário que o ideal possa ser respirado, comido e
bebido pelo espírito humano. O ideal é que tem direito para dizer: «Tomai, isto é a
minha carne, isto é o meu sangue». A sabedoria é uma comunhão sagrada. É com essa
condição que ela cessa de ser um estéril amor da ciência para se tornar o modo único e
soberano da união humana e que de filosofia é promovida a religião.
A filosofia não deve ser uma sacada construída no mistério para o vermos à vontade,
sem outro resultado mais do que o de podermos satisfazer a nossa curiosidade sem
incomodo.
Pelo que nos toca, limitamo-nos a dizer, adiando para outra ocasião o
desenvolvimento do nosso pensamento, que não compreendemos, nem o homem como
ponto de par da, nem o progresso como fim, sem estas duas forças que são dois
motores: crer e amar. O progresso é o fim, o ideal é o tipo.
Que é o ideal? É Deus.
Ideal, absoluto, perfeição, infinito, são termos idênticos.
continua na página 395...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sétimo - VI - Bondade absoluta da oração
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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