em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Primeira Parte
Primeira Parte
Desejaria desfrutar das boas disposições inesperadas do Sr. de Charlus para lhe perguntar se ele não poderia me fazer encontrar com sua cunhada, mas, naquele momento, tive o braço vivamente deslocado por uma sacudidela, como um choque elétrico. Era o Sr. de Charlus que acabava de retirar precipitadamente o seu braço de sob o meu. Embora falando sempre, e voltando os olhos em todas as direções, somente agora é que vira o Sr. de Argencourt, que desembocava de uma rua transversal. Ao nos ver, este pareceu contrariado, lançou sobre mim um olhar de desconfiança, quase como aquele olhar destinado a uma criatura de outra raça que a Sra. de Guermantes lançara sobre Bloch, e tratou de evitar-nos. Mas parecia que o Sr. de Charlus se preocupava em lhe mostrar que não buscava de modo algum não ser visto por ele, pois chamou-o e para lhe dizer algo bem insignificante. E, talvez temendo que o Sr. de Argencourt não me reconhecesse, o Sr. de Charlus lhe disse que eu era um grande amigo da Sra. de Villeparisis, da duquesa de Guermantes, de Robert de Saint-Loup, que ele mesmo, Charlus, era um velho amigo de minha avó, feliz em tributar ao neto um pouco da simpatia que sentia por ela. Não obstante, reparei que o Sr. de Argencourt, a quem no entanto mal havia sido apresentado na casa da Sra. de Villeparisis e a quem o Sr. de Charlus acabava de falar longamente da minha família, fez-se mais frio comigo do que o fora uma hora antes, e desde então, durante muito tempo, procedia da mesma forma quando me encontrava. Observou-me naquela noite com uma curiosidade que nada tinha de simpática e pareceu mesmo ter de vencer uma certa resistência quando, ao nos deixar, depois de breve hesitação, estendeu-me a mão, que retirou logo.
- Lamento esse encontro - disse o Sr. de Charlus. - Este Argencourt, bem-nascido mas
mal-educado, diplomata mais que medíocre, marido detestável e mulherengo, velhaco feito nas
comédias, é um desses homens incapazes de compreender, mas bem capazes de destruir as
coisas verdadeiramente grandes. Espero que a nossa amizade o seja, se deve se fundar um dia,
e que o senhor me faça a honra de mantê-la, tanto como eu, a salvo dos coices de um desses
burros que, por ociosidade, por falta de jeito, por malvadeza, esmagam o que parece feito para
durar. Infelizmente, é por esse molde que é feita a maioria das pessoas deste mundo.
- A duquesa de Guermantes parece muito inteligente. Falávamos há pouco de uma
possível guerra. Parece que a duquesa tem, a esse respeito, luzes especiais.
- Não tem nenhuma - respondeu secamente o Sr. de Charlus. - As mulheres e, aliás,
muitos homens não entendem nada das coisas de que eu desejaria falar. Minha cunhada é uma
mulher encantadora que se imagina ser ainda dos tempos dos romances de Balzac, quando as
mulheres tinham influência na política. A convivência delas não poderia exercer agora sobre o
senhor senão uma influência maléfica, como aliás toda e qualquer convivência. E era justamente
uma das primeiras coisas que ia lhe dizer quando esse idiota me interrompeu. O primeiro sacrifício
que tem de me fazer o hei de exigir tantos quantos forem os benefícios que lhe fizer - é o de não
frequentar a sociedade. Sofri agora há pouco ao vê-lo nessa reunião ridícula. O senhor me dirá
que também ali estive, mas para mim não era uma reunião mundana, e sim uma visita de família.
Mais tarde, quando for um homem arrivé, se lhe agradar descer por instantes à sociedade, talvez
não haja inconveniente. Então já não precisarei lhe dizer de que utilidade lhe seria. O "Sésamo"
do palacete Guermantes e de todos aqueles que merecem que a porta se abra de par em par
diante do senhor, eu é que o detenho. Serei juiz e tenciono permanecer o árbitro da hora.
Atualmente o senhor é um catecúmeno. Sua presença naquela reunião era um tanto escandalosa.
É preciso, antes de tudo, evitar a indecência.
Como o Sr. de Charlus falava da visita à casa da Sra. de Villeparisis, desejei indagar sobre
o seu parentesco exato com a marquesa, a origem desta, mas a pergunta se fez em meus lábios
de forma diferente da que eu quisera, e acabei perguntando o que era a família Villeparisis.
- Meu Deus, a resposta não é muito fácil - respondeu o Sr. de Charlus com uma voz que
parecia deslizar nas palavras. - É como se o senhor me pedisse para dizer o que é o nada. Minha
tia, que pode permitir-se a tudo, teve a fantasia, ao se casar em segundas núpcias com um certo
Sr. Thirion, de mergulhar no nada o maior nome da França. Este Thirion pensou que poderia sem
inconveniente, como ocorre nos romances, assumir um nome aristocrático e extinto. A história não
diz se ele foi tentado por La Tour de Auvergne, se hesitou entre Toulouse e Montmorency. Em
todo caso, fez uma escolha diferente e tornou-se o Sr. de Villeparisis. Como não há mais ninguém
com tal nome desde 1702, imaginei que ele queria modestamente significar com isso que se
tratava de um senhor de Villeparisis, pequena localidade perto de Paris, e que possuía uma banca
de advogado ou um salão de cabeleireiro em Villeparisis. Porém minha tia não sabia nada a esse
respeito aliás, chega a uma idade em que não se entende mais de coisa alguma. Ela pretendeu
que esse marquesado estava na família, escreveu a todos nós, quis fazer as coisas regularmente,
não sei por quê. Uma vez que se se apropria de um nome ao qual não se tem direito, o melhor é
não estar com tantas histórias, como a nossa excelente amiga, a condessa de M***, que, apesar
dos conselhos da Sra. Alphonse Rothschild, recusou aumentar os dinheiros de São Pedro por um
título que nem por isso se tornaria mais verdadeiro. O engraçado é que, desde essa ocasião,
minha tia monopolizou todas as pinturas que se referiam aos verdadeiros Villeparisis, com os
quais o falecido Thirion não tinha qualquer parentesco. O castelo de minha tia se tornou uma
espécie de sede de monopólio de seus retratos, autênticos ou não, sob o fluxo crescente dos
quais alguns Guermantes e alguns Condes, que no entanto não são de pouca importância,
tiveram de desaparecer. Os negociantes de quadros fabricam-nos todos os anos. E ela chega
mesmo a ter, na sala de jantar, no campo, um retrato de Saint-Simon por causa do primeiro
casamento de sua sobrinha com o Sr. de Villeparisis, e embora o autor das Memórias tenha talvez
outros títulos para o interesse dos visitantes que não o fato de ter sido bisavô do Sr. Thirion. Não
passando de uma Sra. Thirion, a Sra. de Villeparisis completou a queda que havia começado em
meu espírito quando vira a composição misturada do seu salão. Eu achava injusto que uma
mulher, de quem até o título e o nome eram tão recentes, pudesse iludir os contemporâneos e
devesse iludir também a posteridade, graças às amizades régias. Voltando a ser o que me havia
parecido em minha infância, uma pessoa que nada tinha de aristocrático, esses grandes
parentescos que a cercavam me pareceram restar de todo estranhos a ela. Desde então, não
deixou de se mostrar encantadora conosco. Às vezes eu ia vê-la, e ela me mandava uma
lembrança de vez em quando. Mas de modo algum eu tinha a impressão de que pertencesse ao
faubourg Saint-Germain, e, se queria alguma informação a respeito, ela seria uma das últimas
pessoas a quem me dirigiria.
- Atualmente - continuou o Sr. de Charlus - o senhor só faria prejudicar sua situação
frequentando a sociedade; deformaria seu caráter e sua inteligência. Ademais, seria necessário
fiscalizar até mesmo, e sobretudo, suas camaradagens. Tenha amantes, caso sua família não
veja inconveniente nisso, isso não me diz respeito e até só posso encorajá-lo a tanto, seu
travesso, que logo logo vai ter de fazer a barba - disse ele, tocando-me o queixo. - Mas a escolha
dos amigos homens tem uma outra importância. Em cada dez pessoas, oito são uns canalhas,
miseráveis capazes de lhe fazer danos de que o senhor jamais se há de recobrar. Olhe, meu
sobrinho Saint-Loup é, a rigor, um excelente companheiro para o senhor. Do ponto de vista do
seu futuro, ele não lhe poderá ser útil para nada; mas para isso, basto eu. E afinal de contas, para
sair com o senhor nos momentos em que estiver farto de mim, não me parece apresentar nenhum
inconveniente grave, ao que suponho. Pelo menos, trata-se de um homem, não é um desses
efeminados, como a gente encontra tanto hoje em dia, que parecem pequenos truqueurs e que
amanhã talvez levem ao cadafalso suas inocentes vítimas. - (Eu não sabia o significado desse
termo de gíria, truqueur. Quem quer que o conhecesse, ficaria tão surpreendido como eu. As
pessoas da sociedade gostam de falar em gíria, e aquelas a quem se pode censurar certas
coisas, de mostrar que não receiam falar nas mesmas. Prova de inocência a seus olhos. Porém
perderam a noção da escala de valores, já não percebem o grau a partir de que um certo gracejo
se torna muito especial, por demais chocante, e será mais uma prova de corrupção do que de
ingenuidade.) - Ele não é como os outros; é muito amável e bastante sério.
Não pude deixar de sorrir diante desse epíteto de "sério", ao qual a entonação que lhe
dava o Sr. de Charlus parecia conferir o sentido de "virtuoso", de "bem-comportado", como de
uma operariazinha se diz que é séria. Nesse momento passou um fiacre que ia à toa; um cocheiro
jovem, tendo descido da boleia, conduzia-o do fundo do carro, onde se assentara sobre
almofadas, parecendo meio bêbado. O Sr. de Charlus fê-lo parar com vivacidade. O cocheiro
parlamentou por um momento.
- Para que lado o senhor vai?
- Para o seu. (Aquilo me espantou, pois o Sr. de Charlus já recusara vários fiacres com
lanternas da mesma cor.)
- Mas não quero voltar para a boleia. Importa-se que eu fique dentro do carro?
- Não, mas baixe a capota. Enfim, pense na minha proposta - disse-me o Sr. de Charlus
antes de ir embora. - Dou-lhe alguns dias para refletir, escreva-me. Repito-lhe, será preciso vê-lo
todos os dias e que eu receba do senhor garantias de lealdade, de discrição, que aliás, devo dizê-lo, o senhor parece oferecer. Mas, durante a minha vida, tenho sido tão frequentemente enganado
pelas aparências que não quero mais confiar nelas. Diabo, não é nada demais que, antes de
abandonar um tesouro, eu saiba em que mãos vou depositá-lo. Enfim, lembre-se bem do que lhe
estou oferecendo, o senhor é como Hércules de quem, infelizmente, não parece ter a forte
musculatura, na encruzilhada de dois caminhos. Procure não ter de lamentar pelo resto da vida
não haver escolhido aquele que conduziria à virtude. Como disse, dirigindo-se ao cocheiro -, ainda
não baixou a capota? Eu mesmo vou dobrar as molas. Pelo visto, creio que terei também de
conduzir o carro, levando em conta o estado em que parece estar.
E saltou para junto do cocheiro, no fundo do fiacre, o qual partiu a trote largo.
De minha parte, mal entrei em casa encontrei uma réplica da conversa que haviam tido um
pouco antes o Sr. de Norpois e Bloch, mas sob uma forma breve, invertida e cruel: era uma
discussão entre o nosso mordomo, que era dreyfusista, e o dos Guermantes, antidreyfusista. As
verdades e contra verdades que entre si opunham no alto os intelectuais da Liga da Pátria
Francesa e a dos Direitos do Homem se propagavam de fato até as profundezas do povo. O Sr.
Reinach manobrava, pelo sentimento, pessoas que jamais o tinham visto, enquanto que para ele
a questão Dreyfus se apresentava diante de sua razão apenas como um teorema irrefutável e que
ele "demonstrou de fato" com o mais espantoso êxito da política racional (êxito contra a França,
disseram alguns) que jamais se viu. Em dois anos, ele substituiu um ministério Billot por um
ministério Clémenceau, mudou de alto a baixo a opinião pública, tirou Picquart da prisão para
colocá-lo, ingrato, no Ministério da Guerra. Talvez esse nacionalista manobrador de massas fosse
ele próprio manobrado por sua raça. Quando os sistemas filosóficos que contêm mais verdades
são ditados a seus autores, em última análise por razões de sentimento, como supor que, numa
simples questão política, como o Caso Dreyfus, motivos desse gênero não possam, contra a
vontade do raciocinador, governar-lhe a razão? Bloch julgava ter escolhido logicamente o seu
dreyfusismo, e no entanto sabia que seu nariz, sua pele e cabelos tinham-lhe sido impostos pela
sua raça. Evidentemente, a razão é mais livre; todavia, ela obedece a certas leis que não impôs a
si mesma. O caso do mordomo dos Guermantes e do nosso era particular. As vagas das duas
correntes, do dreyfusismo e do antidreyfusismo, que dividiam a França de alto a baixo, eram bem
silenciosas, mas os raros ecos que emitiam eram sinceros. Ouvindo alguém, que no meio de uma
conversa afastava-se voluntariamente do caso, anunciar furtivamente uma notícia política, em
geral falsa mas sempre desejada, era possível deduzir do objeto de suas previsões a orientação
de seus desejos. Assim, defrontavam-se sobre alguns pontos, de uma parte um apostolado
tímido, de outra uma santa indignação. Os dois mordomos que ouvi ao voltar para casa eram
exceção à regra. O nosso deixou ouvir que Dreyfus era culpado; o dos Guermantes, que ele era
inocente. Não era para dissimular suas convicções, mas por maldade e encarniçamento no jogo.
Nosso mordomo, inseguro sobre se ia ocorrer a revisão, queria previamente, no caso de um
fracasso, tirar ao mordomo dos Guermantes a alegria de julgar derrotada uma causa justa. O
mordomo dos Guermantes pensava que, no caso de uma recusa à revisão, o nosso ficaria mais
aborrecido por ver ser mantido um inocente na Ilha do Diabo. O porteiro os olhava. Tive a
impressão de que não era ele quem dividia a domesticidade dos Guermantes.
Subi e achei minha avó bem pior. Desde algum tempo, sem bem saber do que sofria, ela
se queixava da saúde. Na enfermidade é que percebemos que não vivemos sós, mas
acorrentados a uma criatura de outro reino, cujos abismos nos separam, que não nos conhece e
pelo qual nos é impossível fazer-nos compreender: nosso corpo. Qualquer assaltante que
encontrássemos no caminho, talvez pudéssemos sensibilizá-lo em seu interesse pessoal, senão
pela nossa desgraça. Mas rogar piedade ao nosso corpo é discursar diante de um polvo, para
quem nossas palavras não podem ter mais sentido que o rumor das águas, e com o qual nos
aterrorizaríamos de ser condenados a conviver. Os achaques de minha avó lhe passavam muitas
vezes despercebidos à atenção, sempre voltada para nós. Quando ela sofria muito, esforçava-se
em vão para compreender seus males a fim de curá-los. Se os fenômenos mórbidos de que seu
corpo era o palco permaneciam obscuros e inatingíveis ao seu pensamento, eram nítidos e
inteligíveis para os seres que pertenciam ao mesmo reino físico deles, destes a quem o espírito
humano acabou por se dirigir para compreender o que lhe diz seu corpo, como diante das
respostas de um estrangeiro a gente vai procurar alguém do mesmo país para servir de intérprete.
Estes podem conversar com o nosso corpo, dizer-nos se sua cólera é grave ou em breve se
acalmará. Cottard, que haviam chamado para junto da minha avó e que nos irritara ao perguntar
com um sorriso fino, desde o primeiro minuto em que lhe tínhamos dito que ela estava doente:
"Doente? Não será pelo menos uma doença diplomática?", Cottard tentou, para acalmar a
agitação da sua cliente, a dieta de leite. Mas as perpétuas sopas de leite não fizeram efeito
porque minha avó punha nelas muito sal, cuja inconveniência era ignorada naquele tempo (pois
Widal ainda não tinha feito suas descobertas). Sendo a medicina um compêndio de erros
sucessivos e contraditórios dos médicos, recorrendo-se aos melhores dentre estes corre-se o
risco de solicitar uma verdade que será reconhecida como falsa alguns anos depois. De modo que
acreditar na medicina seria a maior loucura, caso não acreditar em absoluto nela não fosse uma
outra ainda maior, pois desse amontoado de erros se desprenderam, ao longo dos anos, algumas
verdades. Cottard havia recomendado que lhe medissem a temperatura. Foram buscar um
termômetro. Em quase toda a sua altura, o tubo estava vazio de mercúrio. Mal se distinguia,
agachada no fundo de sua pequena cuba, a salamandra cor de prata.
Parecia morta. Puseram o canudinho de vidro na boca da minha avó. Não precisamos
deixá-lo ali por muito tempo; a pequena feiticeira não havia demorado em tirar o seu horóscopo.
Encontramo-la imóvel, empoleirada a meio em sua torre e, sem mais um gesto, mostrando-nos
com exatidão a cifra que todos nós lhe pedíramos e que todas as reflexões que pudesse fazer
sobre si mesma a alma da minha avó teriam sido bem incapazes de lhe fornecer: 38,3°. Pela
primeira vez, sentimos uma certa inquietação.
Sacudimos com força o termômetro para apagar o signo fatídico, como se, assim,
tivéssemos podido abaixar a febre ao mesmo tempo que a temperatura marcada. Infelizmente,
ficou bem claro que a pequena sibila desprovida de razão não fornecera arbitrariamente aquela
resposta, pois no dia seguinte, mal o termômetro foi recolocado entre os lábios de minha avó,
quase imediatamente, como de um só salto, magnífica de certeza e da intuição de um fato para
nós invisível, a pequena profetisa viera parar no mesmo ponto, numa imobilidade implacável,
mostrando-nos ainda a marca de 38,3° de sua haste fulgurante. Não nos dizia outra coisa, e, por
mais que desejássemos, quiséssemos, implorássemos, permanecia surda e parecia que esse era
o seu último aviso ameaçador. Então, para tentar constrangê-la a modificar sua resposta,
recorremos a uma outra criatura do mesmo reino, porém mais poderosa, que não se contenta em
interrogar o corpo mas pode comandá-lo, um febrífugo da mesma natureza da aspirina, ainda não
empregado à época. Não tínhamos baixado o termômetro além dos 37,5°, na esperança de que
assim não teria de subir. Mandamos dar esse febrífugo à minha avó e depois recolocamos o
termômetro. Como um guarda implacável a quem se mostra a ordem de uma autoridade superior,
cuja proteção se obteve, e que, encontrando-a em ordem, responde:
"Está certo, não tenho nada a dizer, já que é assim, passem", a vigia da torre não se
mexeu desta vez. Mas, carrancuda, parecia dizer: "De que lhes servirá isto? Já que conhecem a
quinina, ela me dará ordens no sentido de não me mover uma vez, dez vezes, vinte vezes. E
depois ficará cansada, conheço-a; vamos! Isto não vai durar para sempre. E então vocês vão ficar
na mesma." Então a minha avó sentiu, em si mesma, a presença de uma criatura que conhecia
melhor o corpo humano que ela, a presença de uma contemporânea de raças desaparecidas, a
presença do primeiro ocupante bem anterior à criação do homem que pensa; sentiu esse aliado
milenar que a apalpava, até com certa dureza, na cabeça, no coração, no cotovelo, reconhecendo
os locais, organizando tudo para o combate pré-histórico que ocorreu logo após. Num instante, a
serpente Píton esmagada, a febre foi vencida pelo poderoso elemento químico a que minha avó,
através dos reinos, passando por cima de todos os animais e vegetais, gostaria de poder
agradecer. E ficava abalada com essa entrevista que acabava de ter, através de tantos séculos,
com um elemento anterior à própria criação das plantas. Por seu turno, o termômetro, como uma
Parca momentaneamente vencida por um deus mais antigo, mantinha imóvel o seu fuso de prata.
Infelizmente, outras criaturas inferiores que o homem treinou para a caça desses animais
misteriosos que não pode perseguir no fundo de si mesmo nos traziam cruelmente, todos os dias,
uma taxa de albumina fraca, mas suficientemente fixa para que parecesse estar em relação com
algum estado persistente que ignorávamos. Bergotte havia incubado em mim o instinto
escrupuloso que me fazia subordinar a minha inteligência, quando me falara do doutor Du
Boulbon como de um médico que não me aborreceria, que encontraria modos de tratar, mesmo
que fossem aparentemente bizarros, mas que se adaptariam à singularidade de minha
inteligência. Mas as idéias se transformam em nós, triunfam sobre as resistências que a princípio
lhes opomos e se alimentam de ricas reservas intelectuais já prontas, que não sabíamos feitas
para elas. Agora, como acontece cada vez que as frases ouvidas, a propósito de alguém que não
conhecemos, têm a virtude de despertar em nós a idéia de um grande talento, de uma espécie de
gênio, no fundo de meu espírito eu fazia o doutor Du Boulbon se beneficiar dessa confiança
ilimitada que nos inspira aquele que, com um olho mais penetrante que o de outro, percebe a
verdade. Certamente eu sabia que ele era especialista mais das doenças nervosas, aquele a
quem Charcot, antes de morrer, havia previsto que reinaria sobre a neurologia e a psiquiatria.
- Ah, não sei, é bem possível - disse Françoise, que se achava presente e ouvira pela
primeira vez o nome de Charcot e o de Du Boulbon. Mas isso não a impedia em absoluto de dizer:
- É possível. -
Seus "é possível", seus "pode ser", seus "eu não sei" eram exasperantes em casos
parecidos. A gente ficava com vontade de lhe responder: "Está claro que você não sabia, pois já
que não conhece nada do assunto de que se trata como é que pode dizer se é possível ou não,
você não sabe nada disso. Em todo caso, agora você não pode dizer que não sabe o que Charcot
disse sobre Du Boulbon, etc.; está sabendo porque nós o dissemos, e os seus 'talvez', os seus 'é
possível' não são aceitáveis, visto que é certo".
Apesar dessa competência mais particular em matéria nervosa e cerebral, como eu
soubesse que Du Boulbon era um grande médico, um homem superior, de uma inteligência
inventiva e profunda, supliquei à minha mãe que o mandasse vir, e a esperança de que, por uma
visão justa do mal, ele talvez a curasse, acabou por vencer o medo que tínhamos de assustar a
minha avó, chamando um novo médico. O que decidiu minha mãe foi que, inconscientemente
animada por Cottard, minha avó não saía mais, não deixava a cama. Debalde nos respondia com
a carta da Sra. de Sévigné sobre Madame de La Fayette:
"Diziam que ela estava louca por não querer sair. Eu dizia a essas pessoas tão
precipitadas em seu julgamento: 'Madame de La Fayette não está louca', e ficava nisso. Foi
preciso que ela morresse para verem que tinha razão em não querer sair."
Du Boulbon, chamado, discordou, se não da Sra. de Sévigné, que não lhe citaram, pelo
menos de minha avó. Em vez de auscultá-la, pousando nela seus admiráveis olhares onde havia
talvez a ilusão de que estava escrutando profundamente a enferma, ou o desejo de lhe dar essa
ilusão, que parecia espontânea mas devia ter se tornado maquinal, ou de não lhe deixar ver que
pensava em algo bem diverso, ou para obter domínio sobre ela, começou a falar de Bergotte.
- Ah, acredito minha senhora, é admirável; como tem razão em gostar dele! Mas qual de
seus livros prefere? Verdade? Meu Deus, talvez seja de fato o melhor! Em todo caso, é o seu
romance mais bem estruturado: Claire é encantadora; como personagem masculino, qual é o que
mais lhe agrada?
A princípio, julguei que ele a fazia desse modo falar sobre literatura porque a medicina o
aborrecia, talvez também para mostrar sua largueza de espírito, e até mesmo, com uma finalidade
mais terapêutica, para que a doente adquirisse mais confiança, fazê-la ver que não estava
inquieto, distraí-la de seu estado. Mas depois compreendi que, sobretudo notável como alienista e
por seus estudos sobre o cérebro, quisera verificar, com suas perguntas, se a memória de minha
avó estava intacta.
Como contra a vontade, interrogou-a um pouco sobre sua vida, de olho fixo e sombrio.
Depois, de repente, como se percebesse a verdade e decidisse atingi-la custasse o que custasse,
com um gesto preliminar que parecia difícil de esboçar-se, afastando as ondas das últimas
hesitações que poderia ter e de todas as objeções que lhe poderíamos fazer, examinando minha
avó com olhar lúcido, livremente e como que pisando enfim a terra firme, pontuando as palavras
com um tom suave e sedutor do qual a inteligência matizava todas as inflexões (aliás, sua voz
permaneceu, em toda a visita, cariciosa, como era o seu natural, e, sob as sobrancelhas
espessas, seus olhos irônicos eram cheios de bondade):
- A senhora irá bem um dia, remoto ou próximo, e só depende de si mesma que esse dia
seja hoje, quando compreender que não tem nada e retomará a vida comum. Disse-me já não
comia, nem saía?
- Mas doutor, estou com um pouco de febre.
Ele tocou-lhe a mão.
- Não neste momento, em todo caso. E depois, que bela desculpa! Não sabe que
deixamos ao ar livre, e que fazemos superalimentação, no caso de tuberculosos com 39° de
febre?
- Mas também tenho um pouco de albumina.
- Não deveria sabê-lo. A senhora tem o que descrevi como albumina mental. Todos nós já
tivemos, no decurso de uma indisposição, nossa crisezinha de albumina, que nosso médico se
apressou a tornar duradoura ao nos fazer notá-la. Para uma só afecção que os médicos curam
com medicamentos (assegura-se, pelo menos, que isso aconteceu algumas vezes), provocam dez
outras em pacientes saudáveis, inoculando-lhes esse agente patogênico, mil vezes mais virulento
que todos os micróbios, a ideia de que estamos doentes. Uma tal crença, poderosa sobre o
temperamento de todos, age com especial eficácia sobre os nervosos. Digam-lhes que uma janela
fechada está aberta às suas costas, e eles começam a espirrar; façam-nos acreditar que puseram
magnésia em sua beberagem, e eles serão tornados de cólicas; que o seu café estava mais forte
que de costume, e eles não pregarão os olhos de noite. Acredite, senhora, que não me bastou ver
seus olhos, ouvir apenas o modo como se expressa, que direi? Ver a senhora sua filha e o seu
neto, que se parece tanto contigo, para saber com quem estava tratando?
-Tua avó poderia talvez ir sentar-se, se o doutor der licença, numa alameda tranquila dos
Champs-Élysées, perto daquele bosque de loureiros diante do qual brincavas antigamente -disse
me a minha mãe, assim consultando indiretamente a Du Boulbon e cuja voz assumia por isso algo
de tímido e deferente que não teria se se dirigisse somente a mim. O médico voltou-se para a
minha avó e, como não era menos letrado que sábio:
- Vá aos Champs-Élysées, minha senhora, para perto do bosque de loureiros apreciado
pelo seu neto. O loureiro lhe será salutar. Ele purifica. Depois de haver exterminado a serpente
Píton, foi com um ramo de loureiro à mão que Apolo entrou em Delfos. Queria, assim, preservar
se dos germes mortais da fera venenosa. Verá que o loureiro é o mais antigo, o mais venerável e,
acrescentarei o que tem seu valor terapêutico tanto como profilático -, o mais belo dos
antissépticos.
continua na página 136...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Desejaria desfrutar das boas disposições)
Volume 7
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