Julio Cortázar
(1914-1984)
(1914-1984)
A Paco
que gostava dos meus sonhos
Cefaleia
continuando...
Como não é dia de tosquia, um de nós se ocupa do
acasalamento previsto e do controle do peso; é fácil
notar que de ontem para hoje as crias pioraram sensivelmente. As mães comem mal, farejam prolongadamente a aveia maltada antes de se dignarem a
morder a morna massa alimentícia. Executamos silenciosos as últimas tarefas, agora a chegada da
noite tem outro sentido que não queremos examinar, já que não nos afastamos, como antes, de uma
ordem estabelecida e em pleno funcionamento, de
Leonor e Chango e das mancúspias em seus lugares.
Fechar as portas da casa é deixar abandonado um
mundo sem leis, entregue aos acontecimentos da
noite e da madrugada. Entramos temerosos e extremamente cuidadosos, retardando o momento,
incapazes de adiá-la e por isso furtivos e nos esquivando, com toda a noite que espera como um olho.
Por sorte temos sono, a insolação e o trabalho podem mais que uma inquietação incomunicada, vamos adormecendo sobre os restos frios que mastigamos penosamente, as fatias de ovo frito e pão molhado no leite. Alguma coisa roça outra vez na janela do banheiro, acreditamos ouvir corridas furtivas no teto; não sopra vento, é noite de lua cheia e
os galos cantariam à meia-noite, se tivéssemos galos. Vamos para a cama sem falar, repartindo entre
nós, quase às apalpadelas, a última dose do trata
mento. Com a luz apagada- mas não é bem isso,
não há luz apagada, simplesmente falta luz, a casa é
uma treva sem fundo e por fora tudo lua cheia
queremos dizer alguma coisa e é só um perguntar
pelo amanhã, pelo modo de conseguir comida, chegar ao povoado. Então dormimos. Uma hora, não
mais, o fio cinzento que puxa a janela mal se moveu até a cama. Logo estamos sentados no escuro por
que se ouve melhor. Alguma coisa está acontecendo às mancúspias, o ruído é agora um clamor raivoso ou
aterrorizado, distingue-se o uivo agudo das fêmeas
e o ulular mais rude dos machos, interrompem-se
de repente e pela casa se movimenta uma lufada de
silêncio, então outra vez o clamor cresce no fundo
da noite e da distância. Não pensamos em sair, já é
muito estar ouvindo-as, um de nós duvida se os gritos vêm de fora ou daqui de dentro, porque há momentos em que nascem como de dentro mesmo, e no
decorrer dessa hora entramos em um quadro Aconitum, onde tudo se confunde e nada é menos certo
que seu contrário. Sim, as cefaleias vêm com tal violência que mal se pode descrevê-las. Sensação de dilaceramento, de queimação no cérebro, no couro
cabeludo, com medo, com febre, com angústia.
Suor e dor na testa, como se ali houvesse um peso
que pressionasse para fora: como se tudo fosse arrancado pela testa. Aconitum é repentino; selvagem; pior pelos ventos frios, com inquietação, angústia, medo. As mancúspias rondam a casa, inútil
repetir que estão nos currais, que os cadeados resistem.
Não notamos o amanhecer, até as cinco nos abate
um sono sem repouso do qual emergem nossas
mãos, na hora certa, para levar as pílulas à boca. Faz
pouco que batem na porta do living, as batidas crescem com raiva, até que um de nós deixa que os chinelos entrem em seus pés e se arrastem até a chave.
É a polícia com a notícia da prisão de Chango; trazem de volta a charrete, suspeitaram do roubo e do
abandono. É preciso assinar uma declaração, tudo
está bem, o sol alto e um grande silêncio nos currais.
Os policiais olham os currais, um deles tapa o nariz com o lenço, faz como quem tosse. Dizemos logo o
que eles querem, assinamos, e vão embora quase
correndo, passam longe dos currais e os olham,
também para nós olharam, arriscando uma espiada
aqui para dentro (sai um vento estancado pela porta), e vão embora quase correndo. É muito estranho
que esses grosseirões
não queiram espiar mais, fogem como se estivessem pesteados, passam agora a
galope pelo caminho lateral.
Uma de nós parece decidir pessoalmente que o
outro irá em seguida buscar alimento com a charrete, enquanto cumprimos a tarefa matinal. Subimos
desanimados, o cavalo está cansado porque o trouxeram de um tirão, vamos saindo devagar e olhando
para trás. Tudo está em ordem, então não eram as
mancúspias que fizeram aqueles ruídos na casa,
precisaremos pôr veneno para os ratos no teto, espanta o ruído que um único rato pode fazer de noite.
Abrimos os currais, reunimos as mães mas sobra
pouco da aveia maltada e as mancúspias brigam ferozmente, se arrancam pedaços do lombo e do pescoço, seu sangue verte e é preciso separá-las a chi
cote e gritos. Depois disso a amamentação das crias
é penosa e imperfeita, nota-se que os filhotes estão
famintos, alguns vacilam ao correr ou se apoiam nos
alambrados. Há um macho morto à entrada de sua
gaiola, inexplicavelmente. E o cavalo resiste a trotar, já estamos a dez quadras da casa e ainda anda a
passo, a cabeça caída, resfolegando. Desanimados
empreendemos a volta, chegamos a tempo de ver
como os últimos restos de alimento se perdem em
um agitar de luta.
Voltamos relutantes à varanda. No primeiro degrau há um filhote de mancúspia morrendo. Nós o
levantamos, colocamos em uma cesta com palha,
gostaríamos de saber o que tem mas ele morre com a
morte sombria dos animais. E os cadeados estavam
intactos, não se sabe como esta mancúspia pôde es
capar, se a sua morte é a escapatória em se escapou
porque estava morrendo. Nós lhe demos dez pílulas
de Nux vomica no bico, ficam ali como perolazinhas, já não pode engolir. De onde estamos se vê
um macho caído sobre as mãos; tenta levantar-se
com uma sacudida, mas volta a cair como se rezasse.
Parece-nos ouvir gritos, tão perto de nós que
olhamos até debaixo das cadeiras de palha da varanda; o Dr. Harbín nos preveniu contra as reações
animais que atacam de manhã, não tínhamos pen
sado que pudesse ser uma cefaleia assim. Dor occipital, de quando em quando um grito: quadro de
Apis, dores como picadas de abelha. Inclinamos a
cabeça para trás, ou a afundamos no travesseiro (em
algum momento chegamos à cama). Sem sede, mas
suando; pouca urina, gritos alucinantes. Como machucados, sensíveis ao tato; em certo momento nos
demos as mãos e foi horrível. Até que cessa, paulatinamente, deixando-nos o temor de uma repetição
com variante animal, como aconteceu já uma vez:
depois da abelha, o quadro da serpente. São duas e
rompe silenciosa, faz calor nas peças, se vamos à
varanda o branco agressivo da terra, dos galpões e
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dos telhados nos expulsa. Outras mancúspias morreram mas o que sobra delas está calado, só muito
de perto alguém poderia ouvi-las respirar. Uma de
nós acha que conseguiremos vendê-las, que devemos ir ao povoado. O outro faz estas anotações mas
já não acredita muito no que faz. Que passe logo o
calor, venha logo a noite. Saímos quase às sete,
ainda há um punhado de alimentos no galpão, sacudindo as bolsas cai um pó de aveia que cuidadosa
mente juntamos. Elas o cheiram e a agitação nas
gaiolas é violenta. Não nos atrevemos a soltá-las, é
melhor pôr uma colherada em cada gaiola, assim parece que ficam mais satisfeitas, que é mais justo.
Nem sequer tiramos as mancúspias mortas, não nos
explicamos como há dez gaiolas vazias, como parte
meia.
Preferimos completar estas informações enquanto dura a luz e estamos bem . Um de nós deveria
ir agora ao povoado, depois da sesta será muito
tarde para voltar, e ficar sozinhos toda a noite na casa, talvez sem poder nos medicar ... A sesta se interrompe silenciosa, faz calor nas peças, se vamos à
varanda o branco agressivo da terra, dos galpões e dos telhados nos expulsa. Outras mancúspias morreram mas o que sobra delas está calado, só muito
de perto alguém poderia ouvi-las respirar. Uma de
nós acha que conseguiremos vendê-las, que devemos ir ao povoado. O outro faz estas anotações mas
já não acredita muito no que faz. Que passe logo o
calor, venha logo a noite. Saímos quase às sete,
ainda há um punhado de alimentos no galpão, sacudindo as bolsas cai um pó de aveia que cuidadosa
mente juntamos. Elas o cheiram e a agitação nas
gaiolas é violenta. Não nos atrevemos a soltá-las, é
melhor pôr uma colherada em cada gaiola, assim parece que ficam mais satisfeitas, que é mais justo.
Nem sequer tiramos as mancúspias mortas, não nos explicamos como há dez gaiolas vazias, como parte das crias anda misturada com os machos no curral.
Mal se enxerga, agora anoitece de repente e Chango
nos roubou o lampião a carbureto.
Parece como se no caminho, junto ao mato de salgueiros, houvesse gente. Seria o momento de chamar para que alguém fosse ao povoado; ainda há
tempo. Às vezes achamos que nos espiam, as pessoas são tão ignorantes e nos têm tanto sob seus
olhos. Preferimos não pensar e fechamos a porta
com alegria, recolhidos à casa onde tudo é mais nosso. Gostaríamos de consultar os manuais para nos
precaver de um novo Apis, ou de outro animal ainda
pior; acabamos de jantar e lemos em voz alta, quase
sem ouvir. Algumas frases se erguem sobre outras,
e do lado de fora tudo é igual, algumas mancúspias
uivam mais alto que o resto, fazem perdurar e repetem um ulular lancinante. "Crotalus cascavella tem
alucinações peculiares ... " Um de nós repete a menção, alegra-nos compreender tão bem o latim, crótalo cascavel, mas isto é dizer a mesma coisa porque
cascavel equivale a crótalo. Talvez o manual não
queira impressionar os doentes comuns com a menção direta do animal. E mesmo assim fala nela, esta
terrível serpente ... "cujo veneno atua com espantosa intensidade". Temos que forçar a voz para nos
ouvir entre o clamor das mancúspias, outra vez nós
as ouvimos perto de casa, nos tetos, roçando nas janelas, contra as vergas da porta. De algum modo
isso não é mais estranho, de tarde vimos tantas gaiolas abertas, mas a casa está fechada e a luz na sala de
jantar nos envolve em uma fria proteção enquanto
nos informamos aos gritos. Tudo está claro no manual, uma linguagem direta para doentes sem preconceitos, a descrição do quadro: cefaleia e grande
excitação, causadas por começar a dormir. (Mas,
por sorte, não temos sono.) O crânio comprime o
cérebro como um capacete de aço - por assim dizer. Alguma coisa viva caminha em círculo dentro
da cabeça. (Então a casa é nossa cabeça, nós a sentimos vigiada, cada janela é uma orelha pegada ao
uivar das mancúspias lá de fora.) Cabeça e peito
comprimidos por uma armadura de ferro. Um ferro
em brasa afundado no vértice. Não estamos certos
sobre o vértice, há um momento a luz vacila, cede
pouco a pouco, esquecemos de pôr em marcha o
moinho quando chega a tarde. Quando não se pode
mais ler, acendemos uma vela junto ao manual para
terminar de conhecer os sintomas, é melhor saber,
pois se mais tarde - Dores lancinantes agudas na fonte direita, esta horrível serpente cujo veneno
atua com espantosa intensidade (já lemos isso, é difícil iluminar o manual com a luz da vela), alguma
coisa viva caminha em círculo dentro da cabeça,
também já lemos isso e é bem assim, alguma coisa
viva caminha em círculo. Não estamos inquietos,
pior lá fora, se é que há lá fora. Estamos nos olhando
por cima do manual, e se um de nós alude com um
gesto ao uivar que cresce mais e mais, voltamos à
leitura como que certos de que tudo isso está agora
aí, onde alguma coisa viva caminha em círculo uivando junto às janelas, junto aos ouvidos, o uivar
das mancúspias morrendo de fome.
continua na página 41 (83)...
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Sarau... Cefaleia (b) - (Julio Cortázar)
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