sexta-feira, 20 de junho de 2025

Sarau... Cefaleia (b) - (Julio Cortázar)

Cefaleia

Julio Cortázar
(1914-1984)

A Paco
que gostava dos meus sonhos


Cefaleia

continuando...

     Como não é dia de tosquia, um de nós se ocupa do acasalamento previsto e do controle do peso; é fácil notar que de ontem para hoje as crias pioraram sensivelmente. As mães comem mal, farejam prolongadamente a aveia maltada antes de se dignarem a morder a morna massa alimentícia. Executamos silenciosos as últimas tarefas, agora a chegada da noite tem outro sentido que não queremos examinar, já que não nos afastamos, como antes, de uma ordem estabelecida e em pleno funcionamento, de Leonor e Chango e das mancúspias em seus lugares. Fechar as portas da casa é deixar abandonado um mundo sem leis, entregue aos acontecimentos da noite e da madrugada. Entramos temerosos e extremamente cuidadosos, retardando o momento, incapazes de adiá-la e por isso furtivos e nos esquivando, com toda a noite que espera como um olho.
      Por sorte temos sono, a insolação e o trabalho podem mais que uma inquietação incomunicada, vamos adormecendo sobre os restos frios que mastigamos penosamente, as fatias de ovo frito e pão molhado no leite. Alguma coisa roça outra vez na janela do banheiro, acreditamos ouvir corridas furtivas no teto; não sopra vento, é noite de lua cheia e os galos cantariam à meia-noite, se tivéssemos galos. Vamos para a cama sem falar, repartindo entre nós, quase às apalpadelas, a última dose do trata mento. Com a luz apagada- mas não é bem isso, não há luz apagada, simplesmente falta luz, a casa é uma treva sem fundo e por fora tudo lua cheia queremos dizer alguma coisa e é só um perguntar pelo amanhã, pelo modo de conseguir comida, chegar ao povoado. Então dormimos. Uma hora, não mais, o fio cinzento que puxa a janela mal se moveu até a cama. Logo estamos sentados no escuro por que se ouve melhor. Alguma coisa está acontecendo às mancúspias, o ruído é agora um clamor raivoso ou aterrorizado, distingue-se o uivo agudo das fêmeas e o ulular mais rude dos machos, interrompem-se de repente e pela casa se movimenta uma lufada de silêncio, então outra vez o clamor cresce no fundo da noite e da distância. Não pensamos em sair, já é muito estar ouvindo-as, um de nós duvida se os gritos vêm de fora ou daqui de dentro, porque há momentos em que nascem como de dentro mesmo, e no decorrer dessa hora entramos em um quadro Aconitum, onde tudo se confunde e nada é menos certo que seu contrário. Sim, as cefaleias vêm com tal violência que mal se pode descrevê-las. Sensação de dilaceramento, de queimação no cérebro, no couro cabeludo, com medo, com febre, com angústia. Suor e dor na testa, como se ali houvesse um peso que pressionasse para fora: como se tudo fosse arrancado pela testa. Aconitum é repentino; selvagem; pior pelos ventos frios, com inquietação, angústia, medo. As mancúspias rondam a casa, inútil repetir que estão nos currais, que os cadeados resistem.
      Não notamos o amanhecer, até as cinco nos abate um sono sem repouso do qual emergem nossas mãos, na hora certa, para levar as pílulas à boca. Faz pouco que batem na porta do living, as batidas crescem com raiva, até que um de nós deixa que os chinelos entrem em seus pés e se arrastem até a chave. É a polícia com a notícia da prisão de Chango; trazem de volta a charrete, suspeitaram do roubo e do abandono. É preciso assinar uma declaração, tudo está bem, o sol alto e um grande silêncio nos currais. Os policiais olham os currais, um deles tapa o nariz com o lenço, faz como quem tosse. Dizemos logo o que eles querem, assinamos, e vão embora quase correndo, passam longe dos currais e os olham, também para nós olharam, arriscando uma espiada aqui para dentro (sai um vento estancado pela porta), e vão embora quase correndo. É muito estranho que esses grosseirões não queiram espiar mais, fogem como se estivessem pesteados, passam agora a galope pelo caminho lateral.
      Uma de nós parece decidir pessoalmente que o outro irá em seguida buscar alimento com a charrete, enquanto cumprimos a tarefa matinal. Subimos desanimados, o cavalo está cansado porque o trouxeram de um tirão, vamos saindo devagar e olhando para trás. Tudo está em ordem, então não eram as mancúspias que fizeram aqueles ruídos na casa, precisaremos pôr veneno para os ratos no teto, espanta o ruído que um único rato pode fazer de noite. Abrimos os currais, reunimos as mães mas sobra pouco da aveia maltada e as mancúspias brigam ferozmente, se arrancam pedaços do lombo e do pescoço, seu sangue verte e é preciso separá-las a chi cote e gritos. Depois disso a amamentação das crias é penosa e imperfeita, nota-se que os filhotes estão famintos, alguns vacilam ao correr ou se apoiam nos alambrados. Há um macho morto à entrada de sua gaiola, inexplicavelmente. E o cavalo resiste a trotar, já estamos a dez quadras da casa e ainda anda a passo, a cabeça caída, resfolegando. Desanimados empreendemos a volta, chegamos a tempo de ver como os últimos restos de alimento se perdem em um agitar de luta.
     Voltamos relutantes à varanda. No primeiro degrau há um filhote de mancúspia morrendo. Nós o levantamos, colocamos em uma cesta com palha, gostaríamos de saber o que tem mas ele morre com a morte sombria dos animais. E os cadeados estavam intactos, não se sabe como esta mancúspia pôde es capar, se a sua morte é a escapatória em se escapou porque estava morrendo. Nós lhe demos dez pílulas de Nux vomica no bico, ficam ali como perolazinhas, já não pode engolir. De onde estamos se vê um macho caído sobre as mãos; tenta levantar-se com uma sacudida, mas volta a cair como se rezasse.
     Parece-nos ouvir gritos, tão perto de nós que olhamos até debaixo das cadeiras de palha da varanda; o Dr. Harbín nos preveniu contra as reações animais que atacam de manhã, não tínhamos pen sado que pudesse ser uma cefaleia assim. Dor occipital, de quando em quando um grito: quadro de Apis, dores como picadas de abelha. Inclinamos a cabeça para trás, ou a afundamos no travesseiro (em algum momento chegamos à cama). Sem sede, mas suando; pouca urina, gritos alucinantes. Como machucados, sensíveis ao tato; em certo momento nos demos as mãos e foi horrível. Até que cessa, paulatinamente, deixando-nos o temor de uma repetição com variante animal, como aconteceu já uma vez: depois da abelha, o quadro da serpente. São duas e rompe silenciosa, faz calor nas peças, se vamos à varanda o branco agressivo da terra, dos galpões e 1 I 'li dos telhados nos expulsa. Outras mancúspias morreram mas o que sobra delas está calado, só muito de perto alguém poderia ouvi-las respirar. Uma de nós acha que conseguiremos vendê-las, que devemos ir ao povoado. O outro faz estas anotações mas já não acredita muito no que faz. Que passe logo o calor, venha logo a noite. Saímos quase às sete, ainda há um punhado de alimentos no galpão, sacudindo as bolsas cai um pó de aveia que cuidadosa mente juntamos. Elas o cheiram e a agitação nas gaiolas é violenta. Não nos atrevemos a soltá-las, é melhor pôr uma colherada em cada gaiola, assim parece que ficam mais satisfeitas, que é mais justo. Nem sequer tiramos as mancúspias mortas, não nos explicamos como há dez gaiolas vazias, como parte meia.
      Preferimos completar estas informações enquanto dura a luz e estamos bem . Um de nós deveria ir agora ao povoado, depois da sesta será muito tarde para voltar, e ficar sozinhos toda a noite na casa, talvez sem poder nos medicar ... A sesta se interrompe silenciosa, faz calor nas peças, se vamos à varanda o branco agressivo da terra, dos galpões e dos telhados nos expulsa. Outras mancúspias morreram mas o que sobra delas está calado, só muito de perto alguém poderia ouvi-las respirar. Uma de nós acha que conseguiremos vendê-las, que devemos ir ao povoado. O outro faz estas anotações mas já não acredita muito no que faz. Que passe logo o calor, venha logo a noite. Saímos quase às sete, ainda há um punhado de alimentos no galpão, sacudindo as bolsas cai um pó de aveia que cuidadosa mente juntamos. Elas o cheiram e a agitação nas gaiolas é violenta. Não nos atrevemos a soltá-las, é melhor pôr uma colherada em cada gaiola, assim parece que ficam mais satisfeitas, que é mais justo. Nem sequer tiramos as mancúspias mortas, não nos explicamos como há dez gaiolas vazias, como parte  das crias anda misturada com os machos no curral. Mal se enxerga, agora anoitece de repente e Chango nos roubou o lampião a carbureto.
     Parece como se no caminho, junto ao mato de salgueiros, houvesse gente. Seria o momento de chamar para que alguém fosse ao povoado; ainda há tempo. Às vezes achamos que nos espiam, as pessoas são tão ignorantes e nos têm tanto sob seus olhos. Preferimos não pensar e fechamos a porta com alegria, recolhidos à casa onde tudo é mais nosso. Gostaríamos de consultar os manuais para nos precaver de um novo Apis, ou de outro animal ainda pior; acabamos de jantar e lemos em voz alta, quase sem ouvir. Algumas frases se erguem sobre outras, e do lado de fora tudo é igual, algumas mancúspias uivam mais alto que o resto, fazem perdurar e repetem um ulular lancinante. "Crotalus cascavella tem alucinações peculiares ... " Um de nós repete a menção, alegra-nos compreender tão bem o latim, crótalo cascavel, mas isto é dizer a mesma coisa porque cascavel equivale a crótalo. Talvez o manual não queira impressionar os doentes comuns com a menção direta do animal. E mesmo assim fala nela, esta terrível serpente ... "cujo veneno atua com espantosa intensidade". Temos que forçar a voz para nos ouvir entre o clamor das mancúspias, outra vez nós as ouvimos perto de casa, nos tetos, roçando nas janelas, contra as vergas da porta. De algum modo isso não é mais estranho, de tarde vimos tantas gaiolas abertas, mas a casa está fechada e a luz na sala de jantar nos envolve em uma fria proteção enquanto nos informamos aos gritos. Tudo está claro no manual, uma linguagem direta para doentes sem preconceitos, a descrição do quadro: cefaleia e grande excitação, causadas por começar a dormir. (Mas, por sorte, não temos sono.) O crânio comprime o cérebro como um capacete de aço - por assim dizer. Alguma coisa viva caminha em círculo dentro da cabeça. (Então a casa é nossa cabeça, nós a sentimos vigiada, cada janela é uma orelha pegada ao uivar das mancúspias lá de fora.) Cabeça e peito comprimidos por uma armadura de ferro. Um ferro em brasa afundado no vértice. Não estamos certos sobre o vértice, há um momento a luz vacila, cede pouco a pouco, esquecemos de pôr em marcha o moinho quando chega a tarde. Quando não se pode mais ler, acendemos uma vela junto ao manual para terminar de conhecer os sintomas, é melhor saber, pois se mais tarde - Dores lancinantes agudas na  fonte direita, esta horrível serpente cujo veneno atua com espantosa intensidade (já lemos isso, é difícil iluminar o manual com a luz da vela), alguma coisa viva caminha em círculo dentro da cabeça, também já lemos isso e é bem assim, alguma coisa viva caminha em círculo. Não estamos inquietos, pior lá fora, se é que há lá fora. Estamos nos olhando por cima do manual, e se um de nós alude com um gesto ao uivar que cresce mais e mais, voltamos à leitura como que certos de que tudo isso está agora aí, onde alguma coisa viva caminha em círculo uivando junto às janelas, junto aos ouvidos, o uivar das mancúspias morrendo de fome.

continua na página 41 (83)...

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