O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
5.
continuando...
Ela já tinha chegado até a porta, mas repentinamente, não se contendo, voltou.
- Sou capaz de rir! Vou morrer de rir! - declarou, pesarosa. Mas no mesmo
instante se desprendeu dali e se encaminhou para o príncipe.
- Em que vai dar isso? Que é que tu achas? - começou Iván Fiódorovitch,
precipitadamente.
- Nem sei o que dizer. Tenho medo - respondeu Lizavéta Prokófievna,
prontamente.
- Mas, pelo menos para o seu espírito, está tudo mais do que claro.
- Para o meu,
também. Tão claro como o dia. Ela o ama.
- Amor, só, não. Está apaixonada - asseverou Aleksándra.
- Mas, pensando bem, apaixonada por...
- Se o destino dela tem de ser esse, que Deus a abençoe - disse Lizavéta
Prokófievna, benzendo-se devotamente.
- É o destino dela - concordou o general - E não há como escapar uma pessoa ao
seu destino.
E todos eles entraram na sala de jantar onde uma surpresa os esperava, outra
vez. Agláia, longe de rir, como temera, ao se dirigir até Míchkin, lhe disse
timidamente:
- Perdoe a uma estúpida, imbecil e ruim moça! (tomou-lhe a mão) e creia- me
que todos o respeitamos imensamente. E se ousei ridicularizar a sua esplêndida e
bondosa simplicidade, me perdoe como perdoaria a uma criança por estar sendo
mal comportada.
Perdoe-me por estar eu insistindo em um inconcebível absurdo que não poderia,
naturalmente, ter a menor consequência.
E Agláia proferiu as últimas palavras
com uma ênfase especial. O pai, a mãe e as irmãs haviam todos chegado à porta
a tempo de ouvir tudo isso; e ficaram impressionados com tais palavras: "inconcebível absurdo que não
poderia vir a ter nenhuma consequência”. E mais ainda pela maneira por que
ela se referia a esse “inconcebível absurdo”. Todos se entreolharam,
interrogativamente.
Mas parece que o príncipe não entendeu tais palavras, pois
estava no auge mesmo da felicidade.
- Por que falais deste modo? - murmurou
ele. - Por que... me pedis... perdão?
Teria dito até que não merecia que ela lhe pedisse perdão. Quem sabe, talvez não
tivesse notado o significado das palavras “inconcebível absurdo que não poderia
vir a ter nenhuma consequência”, mas, sendo o homem estranho que era, talvez
ficasse aliviado ante tais palavras. Não há düvida de que só o simples fato dele
poder vir ver Agláia de novo, sem empecilho, de que lhe seria permitido falar
com ela, sentar-se ao seu lado, passear com ela, já era o máximo de felicidade
para ele; e, quem sabe, talvez só isso já lhe bastasse para o resto da vida. (E era
justamente esse contentamento platônico que Lizavéta Prokófievna receava
secretamente; compreendia-o; temia muitas coisas, em segredo, que não se
aventurava a pôr em palavras.) É difícil descrever como o príncipe recobrou o
ânimo, completamente, além da coragem que o reanimou essa noite. Tornou-se
tão jovial que elas, por sua vez, joviais se foram tornando para com ele, como as
irmãs de Agláia depois se expressaram. Deu em falar muito, o que não lhe
acontecera mais desde aquela manhã, havia já seis meses, quando conhecera os
Epantchín. Em seu regresso a Petersburgo adotara notório e intencional mutismo
e tinha pouco depois dito ao Príncipe Chtch..., na presença de todos, que devia se
conter e calar, para não degradar uma ideia, só com o exprimi-la. Foi quase ele
somente quem falou essa noite, contando uma porção de coisas. Respondia às
perguntas claramente, minuciosamente, e, com prazer.
Mas em toda essa sua
conversa não houve sequer, indício de palavra referente a idílio. Só expressava
coisas sérias, às vezes, mesmo, profundas ideias. Chegou até a expor alguns
pontos de vista seus, observações pessoais, o que até seria engraçado se não fosse
tão bem expresso. Com o que, todos quantos o ouviram essa noite, acabaram
concordando, mais tarde. Embora o General Epantchín gostasse de assuntos
sérios, como palestra, ainda assim, tanto ele como Lizavéta Prokófievna lá
intimamente acharam que isso estava sendo intelectual demais, tanto que lá para
o fim da noite já estavam entediados. Mas Míchkin tanto falou que acabou até
contando histórias muito divertidas, de que era o primeiro a rir, vindo todos a rir
mais da sua jovial gargalhada do que da história propriamente. Quanto à Agláia,
pouco falou, em toda a noite. Mas esteve todo o tempo a escutar Liév
Nikoláievitch, fitando-o
mesmo mais do que o ouvindo. Tanto que, depois, dizia Lizavéta Prokófievna
ao marido:
- Ela estava a olhar para ele, sem poder tirar os olhos, estava presa a cada
palavra que ele dizia, atenta a tudo. Mas vá uma pessoa dizer-lhe que ela o ama e
essa pessoa terá as paredes por ouvidos.
- Para isso não há recurso algum. É o
destino - respondeu o general, encolhendo os ombros.
E muito tempo depois, ainda conservava o hábito de repetir essas palavras que o
tinham agradado. Devemos acrescentar que, como homem de negócios, ele
também não estava lá muito contente com a presente situação, acima de tudo
com essa indefinibilidade. Mas também ele resolvera provisoriamente
conservar-se quieto e precaver-se... contra Lizavéta Prokófievna. Essa feliz
disposição de espírito da família não durou muito. No dia seguinte indispôs-se
Agláia outra vez com o príncipe e as coisas ficaram nesse pé durante vários dias.
Por horas inteiras debicava ela o príncipe, transformando-o em um palhaço. Verdade é que muitas vezes ficavam sentados debaixo do arvoredo, no jardim,
mas logo foi observado que em tais vezes Míchkin quase sempre apenas lia alto,
para Agláia, um jornal, ou algum livro.
- Ouça aqui - dissera-lhe Agláia uma vez, interrompendo lhe a leitura do jornal -, tenho reparado que é medonhamente
mal instruído. Não sabe nada profundamente; se alguém lhe pergunta quem é
qualquer pessoa, ou em que ano tal fato se passou, ou o nome de um tratado, sua
vacilação causa lástima.
- Já vos disse que aprendi pouco - respondeu o príncipe.
- Que sabe então, se ignora coisas tão banais? Depois disso. Como lhe hei de ter
respeito? Continue a ler, ou melhor, não leia mais. Deixe isso de lado.
E mais
uma vez, nessa noite, uma coisa se deu, a todos surpreendendo o comportamento
de Agláia. O Príncipe Chtch... havia regressado. Agláia estava muito cordial com
ele. Fez-lhe muitas perguntas a respeito de Evguénii Pávlovitch. (Míchkin ainda
não entrara.) E inesperadamente o Príncipe Chtch... se permitiu uma alusão a
“certo acontecimento muito próximo, na família”, aproveitando-se de umas
poucas palavras que Lizavéta Prokófievna deixara escapar. E sugeriu que
deveriam adiar de novo o casamento de Adelaída, de maneira que os dois
casamentos se pudessem realizar juntos. Agláia inflamou- se ante “essas
estúpidas suposições”, fazendo-o de modo chocante; e entre outras coisas lhe
escapou a frase que “não tinha intenção, no presente, de substituir a amante de
ninguém.”
Estas palavras impressionaram todo o mundo, e mais ainda os pais. Tanto
que, em uma confabulação secreta com o marido, Lizavéta Prokófievna insistiu
ser urgente e necessário entrar no assunto relativo a Nastássia Filíppovna, com
Míchkin, uma vez por todas.
Jurou Iván Fiódorovítch que tudo isso era apenas “uma veneta”, ligando tudo a
um escrúpulo ou suscetibilidade de Agláia; que se o Príncipe Chtch... não tivesse
feito nenhuma referência a casamentos tal explosão não teria havido, pois Agláia
sabia, e sabia de muito boa fonte, que tudo isso não passava de uma difamação
de gente perversa. Que Nastássia Filíppovna ia se casar com Rogójin; que o
príncipe não tinha nada de ver com tal história, nem havia mesmo uma liaison
com ela; e que nem nunca houvera, já que a verdade devia ser dita.
E no entanto continuava o príncipe felicíssimo, nada o perturbando. Oh! Lógico
que ele também, muitíssimas vezes, percebera algo sombrio e impaciente na
expressão de Agláia; mas tinha mais confiança em algo bem diferente, e a
melancolia se desfazia por si só. Uma vez tendo confiança em uma coisa, nada o
podia demover, depois. Talvez houvesse quietude demais em seu espírito. Pelo
menos foi a impressão de Ippolít, com quem, por acaso, se encontrou no parque.
- Ora, ainda bem. Já uma vez não lhe disse eu que o senhor andava apaixonado?
começou ele, dirigindo-se a Míchkin e o fazendo parar.
O príncipe apertou-lhe a
mão e o felicitou “por lhe parecer ter melhorado muito”. O doente também deu
mostras de certa esperança, como acontece facilmente com os tuberculosos.
Dirigira-se ao príncipe só para lhe dizer qualquer coisa sarcástica a respeito de
sua expressão de felicidade; mas logo se desviou desse fim, começando a falar
sobre si próprio. Começou a se queixar, e as suas queixas, em sua maioria, eram
intermináveis e um pouco incoerentes.
- Custará ao senhor crer quanto eles aqui
são irritáveis, insignificantes, egoístas, nulos e vulgares. Quer saber de uma coisa,
apenas me acolheram supondo que eu ia morrer logo, o mais depressa possível!
E agora estão todos uma fúria porque eu, em vez de morrer, pelo contrário, dei
em melhorar. Mas é uma farsa! Aposto como o senhor nem acredita! - o príncipe
não se sentiu disposto a nenhuma resposta. - As vezes penso em tornar a me
mudar para a casa do senhor - acrescentou Ippolít, despreocupadamente - Então
o senhor não acha que eles
sejam capazes de acolher um homem com a condição só de que esse homem
não demore a morrer? Pois são!
- Pensei que o tinham convidado com outras intenções.
- Ah!... O senhor nem por
isso é tão simplório como o querem fazer ser. Agora não é tempo, do contrário eu
lhe diria qualquer coisa relativa a esse tal miserável Gánia e respectivas
esperanças. Eles estão minando a sua situação, príncipe; estão fazendo isso, sem
misericórdia e... chega a causar pena a serenidade do senhor... Mas ai do senhor,
não pode fazer nada!
- Estou achando graça na sua piedade para comigo - riu o
príncipe. - Então acha! Então acha que eu seria mais feliz se fosse menos
sereno?...
- Melhor é ser infeliz e saber a verdade, do que ser feliz e viver.., nas
nuvens. Está me parecendo que o senhor não acredita que tem um rival - e neste
quarteirão, não é mesmo?
- O que você me quer dizer sobre um suposto rival meu, Ippolít, é um tanto
cínico. Desculpe-me; não tenho o direito de lhe responder assim. Quanto a Gavríl
Ardaliónovitch, julgue você por si mesmo se ele, em seu espírito, pode ser feliz
depois de tudo quanto perdeu. Isso, caso você saiba alguma coisa, pouca que seja
dos negócios dele. A mim me parece melhor considerar o assunto só quanto a
este ponto de vista. Já é tempo dele mudar; ele tem uma vida diante de si; e a
vida, Ippolít, é uma coisa rica, muito embora... muito embora...
- e o príncipe parou, como que em dubiedade - Quanto ao fato de que me
estejam minando, não entendo o que você quer dizer. Vamos mudar de conversa,
Ippolít.
- Deixá-la-emos de lado, por enquanto. Além disso o senhor continua, e não há
quem o demova, a ser cavalheiro, haja o que houver. Sim, príncipe, o senhor é
dos tais que nem mesmo tocando em uma coisa, acreditam! Ah! Ah! E o senhor
ainda me despreza bastante, não?
- Por quê? Porque você tem sofrido e ainda
está sofrendo mais do que nós?
- Não, mas porque eu não valho o que sofro!
- Quem quer que possa sofrer mais ainda, vale cada vez mais o próprio
sofrimento. Tanto que, quando Agláia Ivánovna leu a sua confissão, quis logo
conhecê-lo, mas...
- Mas desistiu, não pôde... Compreendo, compreendo...- retorquiu logo Ippolít
como se quisesse interromper a conversa o mais ligeiro possível - A propósito,
disseram-me que o senhor leu para ela, alto, toda essa algaravia. Foi em literal
delírio que escrevi aquilo e que fiz... E o que eu não compreendo é
como haja quem possa ser assim... não direi cruel (pois seria humilhante para
mim), mas tão infantil e vingativo que me tendo admoestado por causa dessa
confissão a use agora contra mim, como uma arma. Não se preocupe, não é ao
senhor que me estou referindo.
- Pois eu sinto que você tenha repudiado esse manuscrito, Ippolít; ele é sincero! E
você sabe muito bem que mesmo os mais absurdos pontos dele, e não são poucos
(Ippolít ficou carrancudo) foram redimidos pelo sofrimento, pois confessar é
sofrer e... talvez signifique até grande virilidade. A ideia que animou você deve
ter fundamentos bem nobres, sejam lá quais forem. Vejo isso mais claramente à
medida que o tempo passa, juro-lhe. Eu não o estou julgando. Falo apenas para
dizer o que penso e lamento não o ter compreendido naquela ocasião.
Ippolít enrubesceu fortemente. Acudiu-lhe ao espírito o pensamento de que
Míchkin estava simulando e querendo envolvê-lo nessa simulação. Nisto o olhou
bem no rosto; e então viu e o convenceu que havia sinceridade. E a sua face se
iluminou.
- Sim, seja lá como for, morrerei - quase acrescentando “apesar de ser quem
sou” - E imagine agora como seu amigo Gánia me roga pragas. A objeção que
ele me berrou é que no mínimo três ou quatro dos que escutaram a minha
confissão morrerão muito provavelmente, antes de mim. Que diz o senhor disto?
Suponha ele que isso seja um conforto para mim. Ah! Ah! Em primeiro lugar,
esses tais ainda não morreram. E mesmo que essa gente tivesse morrido, há de o
senhor admitir que isso não me valeria de modo algum como conforto. Ele julga
os outros por si. Mas o diabo é que ele ainda vai mais adiante. Agora deu
simplesmente em abusar de mim. Diz ele que um sujeito decente deve morrer
em silêncio e que tudo não passa de egoísmo da minha parte. Que me diz o
senhor a isto? Egoísmo, sim, mas da parte dele; de que lhe vale todo aquele
refinamento se ao mesmo tempo tem uma rudeza bovina de egoísta, muito
embora não dê por isso? Leu o senhor, por acaso, príncipe, a morte de Stepán
Glíebov no século dezoito? Pois ontem me aconteceu ler isso...
- Qual Stepán
Glíebov?
- O que foi empalado no tempo de Pedro.
- Oh, sim, já sei. Esteve quinze horas
no pelourinho, exposto à geada, em um casaco de pele, e morreu com
extraordinária grandeza. Sim, já li isso, mas qual a relação que...
- Deus concede tal morte a certos homens, mas não a nós! Acha o senhor, talvez,
que eu não seja capaz de morrer como Glíebov?
- Por que não? - respondeu Míchkin, meio embaraçado -Apenas queria
dizer que você.., a meu ver, não seria como Glíebov, mas sim.., a meu ver, mais
provavelmente você faria como...
- Ah! Já sei, como Osterman? E não como Glíebov - não foi o que o senhor quis
dizer?
- Qual Osterman? - perguntou o príncipe, surpreso.
- Osterman, o diplomata
Osterman. Osterrman, do tempo de Pedro - explicou Ippolít bastante
desapontado.
Seguiu-se uma perplexidade mútua.
- Oh! Não! Eu não quis dizer isso, afirmou categoricamente o príncipe, após
breve pausa - Você nunca seria, acho eu... um Osterman.
Ippolít franziu a cara.
- A razão pela qual eu mantenho isso - resumiu o príncipe ansioso por colocar as
coisas direito - é que os homens daqueles tempos (e juro que isso sempre me
impressionou) não eram absolutamente como nós hoje somos; não era a mesma
a raça de agora. Nos nossos tempos; realmente parece que somos de uma
espécie diferente... Naqueles tempos os homens tinham uma ideia, mas agora
nós somos mais nervosos, mais evoluídos, mais sensíveis: somos homens capazes
de duas ou de três ideias ao mesmo tempo... (os homens modernos têm maiores
propensões - e eu juro que isso os impede de serem inteiriços como os de
outrora. Foi... foi só com essa ideia que eu disse aquilo, e não...
- Compreendo, o
senhor está aplainando as coisas melhor para me consolar agora por causa da
simplicidade com que discordou de mim, ah, ah! O senhor é uma perfeita
criança, príncipe. Noto que todos os senhores me tratam com o cuidado com que
se trata uma xícara de porcelana chinesa... Mas não me zango, está tudo muito
bem, não faz mal! Afinal, pensando bem, tivemos uma conversa
formidavelmente engraçada; o senhor, às vezes, é uma perfeita criança,
príncipe. Deixe, porém, que lhe diga que talvez eu viesse ser melhor coisa do que
Osterman. Não valia a pena ressuscitar Osterman... Acho que devo morrer o
mais depressa possível, ou, então... eu próprio devo... Mas, aqui me despeço.
Adeus! Bem, já agora, diga a este seu amigo qual seria para mim a melhor
maneira de morrer?... Ter um fim virtuoso, o mais possível, não é assim? Vamos,
diga-me!
E então, o príncipe disse em voz baixa:
- Passar por nós... E ao passar nos perdoar
a nossa felicidade..
- Ah! Ah! Ah! Direitinho o que eu pensava. Eu sabia que teria de ser uma
coisa mais ou menos assim! Pois não é que o senhor.. não é que o senhor... Bem,
bem! Esta gente eloquente! Adeus! Adeus!
continua página 472...
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Segunda Parte
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (5c) - Ela já tinha chegado até a porta
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