quinta-feira, 19 de junho de 2025

Sarau... Cefaleia (a) - (Julio Cortázar)

Cefaleia

Julio Cortázar
(1914-1984)

A Paco
que gostava dos meus sonhos



Cefaleia

Devemos à Dra. Margaret L. Tyler as imagens mais belas deste conto. 
Seu admirável poema, Sin tomas orientadores haeia los remedios más eomunes dei vértigo yeefaleas, apareceu publicado na revista Homeopatía (publicada pela Associação Médica Homeopática Argentina) ano XIV, n.o 32, abril de 1946, p. 33ss. 
 Agradecemos também a Ireneo Femando Cruz haver-nos iniciado, durante uma viagem a San Juan,-no conhecimento das mancúspias.


     Cuidamos das mancúspias até bastante tarde, agora com o calor do verão enchem-se de caprichos e manhas, as menos desenvolvidas reclamam alimentação especial e nós lhes levamos aveia maltada em grandes travessas de louça; as maiores estão mudando o pelo do lombo, de modo que é preciso pô-las de lado, vesti-las com um cobertor e cuidar para que não se juntem à noite com as mancúspias que dormem em gaiolas e recebem alimento a cada oito horas. 
      Não nos sentimos bem. Isto acontece desde a manhã, talvez pelo vento quente que soprava ao amanhecer, antes que nascesse este sol alcatroado que bateu na casa todo o dia. Dá trabalho atender aos animais enfermos- isto se faz às onze- e examinar as crias depois da sesta. Parece-nos cada vez mais penoso continuar, cumprir a rotina; desconfiamos que uma única noite de desatenção poderá ser funesta para as mancúspias, a ruína irreparável de nossa vida. Andamos então sem refletir, cumprindo um após o outro os atos que o hábito determina, parando apenas para comer (há farelos de pão na mesa e sobre a sapata do living) ou nos olhar no espelho que duplica o dormitório. De noite caímos repentinamente na cama, e o hábito de escovar os dentes antes de dormir cede à fadiga, mal é substituído por um gesto que busca o lampião ou os remédios. Do lado de fora se ouve as mancúspias adultas andando em círculo sem parar.
     Não nos sentimos bem. Um de nós é Aconitum, o que quer dizer que deve se medicar com acônito em altas diluições se, por exemplo, o medo lhe causa vertigem. Acônito é uma violenta tormenta, que passa logo. De que outro modo descrever o contra-ataque a uma ansiedade que nasce de qual quer insignificância, do nada. Uma mulher se defronta repentinamente com um cachorro e começa a se sentir violentamente enjoada. Então acônito, e em pouco tempo só fica um enjoo doce, com tendência a desaparecer (isto nos ocorreu, mas era um caso Bryonia, o mesmo que sentir que afundávamos com, ou através da cama).
      O outro, em compensação, é marcadamente Nux vomica. Depois de levar a aveia maltada às mancúspias, talvez por se agachar muito ao encher a gamela, sente de repente como se lhe girasse o cérebro,  não que tudo gire em torno - a vertigem em si -, mas a visão é que gira, dentro dele a consciência gira como um giroscópio em seu aro, e fora tudo está tremendamente imóvel, só que fugindo e inalcançável. Temos pensado se não será talvez um quadro de Phosphorus, porque além de tudo apavora-o o perfume das flores (ou o das mancúspias pequenas, que cheiram levemente a lilás) e coincide fisicamente com o quadro fosfórico: é alto, magro, sonha com bebidas geladas, sorvetes e sal.
     De noite não é tanto, a fadiga e o silêncio nos ajudam - porque o rondar das mancúspias marca docemente este silêncio do pampa - e às vezes dormimos até o amanhecer e nos desperta um esperançado sentimento de alívio. Se um de nós sai da cama antes do outro, pode acontecer contudo que assistamos consternados à repetição de um fenômeno Camplwra monohromata, pois acredita que caminha em uma direção quando, na realidade, caminha em outra. É horrível, vamos com toda a certeza até o banheiro, e de repente sentimos no rosto a pele nua do grande espelho. Quase sempre tomamos isso por brincadeira, porque é preciso pensar no trabalho que espera, e de nada serviria desanimarmos tão depressa. Procura-se as drágeas, cumpre-se sem comentários nem desânimos as instruções do Dr. Harbín. (Talvez em segredo sejamos um pouco Na trum muriaticum. Tipicamente um Natrum chora, mas ninguém deve observá-lo. É triste, é reservado; gosta de sal.)
      Quem pode pensar em tantas vaidades se o trabalho nos espera nos currais, na invernada e no tambo? Leonor e Chango já estão se alvoroçando lá fora, e quando saímos com os termômetros e as bacias para o banho, os dois se atiram ao trabalho como querendo se cansar logo, organizando o seu ócio da tarde. Sabemos disso muito bem, por isso nos alegra ter saúde para realizar nós mesmos cada coisa. Enquanto não passe disto e não apareçam as cefaleias, podemos continuar. Agora é fevereiro, em maio as mançúspias estarão vendidas e nós a salvo por todo o inverno. Ainda-podemos continuar.
     As mancúspias nos distraem muito, em parte porque estão cheias de sagacidade e malevolência, em parte porque sua criação é um trabalho sutil, que exige uma precisão incessante e minuciosa: Não temos por que nos estender, mas isto é um exemplo: um de nós tira as mancúspias mães das gaiolas de invernada - são seis e meia da manhã - e as reúne no curral de pastos secos. Deixa-as retouçar vinte minutos, enquanto o outro retira os filhotes das casinhas numeradas, onde cada um tem sua história clínica, verifica rapidamente a temperatura retal, devolve a sua casinha os que passam de 37,1°, e por um tubo de lata traz o restante para se reunir às mães, para a amamentação. Talvez seja este o momento mais belo da manhã, comove-nos o alvoroço das pequenas mancúspias e suas mães, sua ruidosa e permanente tagarelice. Apoiados na cerca do curral esquecemos a imagem do meio-dia que se aproxima, da penosa tarde inadiável. Por momentos sentimos um pouco de medo de olhar para o chão do curral - um evidente quadro Onosmodium -, mas passa e o sol nos salva do sintoma complementar, da cefaleia, que se agrava com a escuridão.
     Às oito é hora do banho, um de nós vai atirando punhados de sais Krüschen e farelo nas bacias, a outra dirige o Chango, que traz baldes de água morna. As mancúspias mães não gostam do banho, é preciso pegá-las com cuidado pelas orelhas e as patas, segurando-as como coelhos, e mergulhá-las repetidamente nas bacias. As mancúspias se desesperam e ficam eriçadas, isso é o que queremos para que os sais penetrem até a pele tão delicada.
     À Leonor cabe dar de comer às mães, o que faz muito bem; nunca a vimos errar na distribuição das porções. Dá a elas aveia maltada, e duas vezes por semana leite com vinho branco. Desconfiamos um pouco de Chango, parece-nos que bebe o vinho; seria melhor guardar a bordalesa dentro, mas a casa é pequena e depois esse cheiro doce que recende nas horas de sol alto.
     Talvez isto que estamos dizendo fosse monótono e inútil se não estivesse mudando lentamente dentro de sua repetição; nos últimos dias - agora que entramos no período crítico da desmama - um de nós deve ter reconhecido, com que amarga concordância, o progresso de um quadro Silica. Começa no exato momento em que nos domina o sono, é um perder a estabilidade, um pulo para dentro, uma vertigem que sobe pela coluna vertebral até o interior da cabeça; igual ao subir rastejante (não há outra descrição) das pequenas mancúspias pelas estacas dos currais. Então, de repente, sobre o poço negro do sono onde já caímos deliciosamente, somos aquela estaca dura e difícil pela qual trepam, brincando, as mancúspias. E é pior fechando os olhos. Assim se vai o sono, ninguém dorme com os olhos abertos, morremos de cansaço mas basta um leve abandono para sentir a vertigem que desafia, um vaivém no crânio, como se a cabeça estivesse cheia de coisas vivas que giram a seu redor. Corno mancúspias.
      E é tão ridículo, provou-se que aos doentes Silica faz falta silício, areia. E nós aqui, rodeados de dunas, em um pequeno vale ameaçado por dunas imensas, faltando-nos areia na hora de dormir.
      Contra a probabilidade de que isto progrida, preferimos perder algum tempo nos medicando com todo rigor; notamos às doze horas que a reação é favorável, e a tarde de trabalho decorre sem problemas, apenas, talvez, uma ligeira desarrumação das coisas, de repente, como se os objetos parassem diante de nós, levantando-se sem se mexer; uma sensação de aresta viva em cada nível. Desconfiamos de uma mudança para Dulcamara, mas não é fácil ter certeza.
      No ar flutuam leves as plumas das mancúspias adultas, depois da sesta vamos com tesouras e umas bolsas de borracha ao curral alambrado onde Chango as reúne para a tosquia. Já em fevereiro faz frio de noite, as mancúspias precisam do pelo porque dormem estendidas e carecem da proteção que se dão a si mesmos os animais que se dobram encolhendo as patas. Apesar disso perdem o pelo do lombo, ele nasce devagar e ao ar livre, o vento levanta do curral uma fina névoa de pelos que fazem cócegas no nariz e nos fustigam até dentro de casa. Reunimos então as mancúspias e tosamos o seu lombo a meia altura, com cuidado para não privá-las de calor; quando cai esse pelo, muito curto para flutuar no ar, vai se formando um pó amarelado que Leonormolha com a mangueira e junta diariamente em uma bola de massa que, depois, se atira ao poço.
      Um de nós tem, entretanto, que acasalar os machos com as mancúspias jovens, pesar os filhotes enquanto Chango lê em voz alta o peso do dia anterior, verificar o progresso de cada mancúspia e separar as menos desenvolvidas para submetê-las a uma superalimentação. Isto nos ocupa até o anoitecer; falta só a aveia da segunda comida, que Leonor distribui rapidamente, e engaiolar as mancúspias mães enquanto as mais novas protestam e teimam em continuar a seu lado. É Chango quem se encarrega da separação, quando nós já estamos na varanda controlando. Às oito fecham-se as portas e janelas; às oito ficamos sozinhos lá dentro.
     Antes era um momento agradável, a lembrança de episódios e de esperanças. Mas desde que não nos sentimos bem, parece que esta hora ficou mais pesada. Inutilmente nos enganamos com a arrumação da botica - é frequente que a ordem alfabética dos remédios se altere por descuido -; no fim, sempre vamos ficando calados à mesa, lendo o manual de Álvares Toledo (Estuda-te a ti mesmo) ou o de Humphreys (Guia homeopático). Um de nós teve com intermitência uma fase Pulsatila, vale dizer que tende a se mostrar volúvel, chorona, exigente, irritável. Isto aflora ao anoitecer e coincide com o quadro Petroleum que afeta o outro, um estado no qual tudo - coisas, vozes, lembranças - passa por cima dele, intumescendo-o e o entorpecendo. Assim não há choque, apenas um sofrer paralelo e tolerável. Depois, às vezes vem o sono.
     Também não gostaríamos de pôr nestas notas uma ênfase progressiva, um crescer articulado até o estouro patético da grande orquestra, depois do qual decrescem as vozes e se reingressa em uma calma de saciedade. Às vezes estas coisas que registramos já nos aconteceram (como a grande cefaleia Glonoinum no dia em que nasceu a segunda ninhada de mancúspias), às vezes é agora ou de manhã. Achamos necessário documentar estas fases para que o Dr. Harbín junte-as à nossa história clínica assim que voltemos a Buenos Aires. Não somos hábeis, sabemos que de repente nos afastamos do tema, mas o Dr. Harbín prefere conhecer os detalhes circunstanciais de cada quadro. Esse roçar na janela do banheiro que ouvimos de noite pode ser importante. Pode ser um sintoma Cannabis indica; sabe-se agora que um Cannabis indica tem sensações exaltadas, com exageração de tempo e distância. Pode ser uma mancúspia que fugiu e vem, como todas elas, para a luz.
      No começo éramos otimistas, mas ainda não perdemos a esperança de ganhar um bom dinheiro com a venda das crias jovens. Levantamo-nos cedo, medindo o crescente valor do tempo na fase final, e no começo quase não nos afeta a fuga de Chango e Leonor. Sem aviso prévio, sem observar o estatuto, esses grandes filhos-da-puta nos abandonaram ontem de noite, levando o cavalo e a charrete, o cobertor de uma de nós, o lampião a carbureto, o último número do Mundo Argentino. Pelo silêncio nos currais desconfiamos de sua ausência, é preciso apressar-se para levar as crias à amamentação, preparar os banhos, a aveia maltada. Todo o tempo pensamos que não se deve pensar no que passou, trabalhamos sem admitir que agora estamos sozinhos, sem cavalo para vencer as seis léguas até Puan, com provisões para uma semana, e vigiados por vagabundos, agora que nas outras cidades se difundiu o estúpido rumor de que criamos mancúspias e ninguém mais se aproxima com medo de doenças. Só trabalhando e com saúde podemos tolerar uma conjuração que nos aflige por volta do meio-dia, no intervalo para o almoço (uma de nós abre apressadamente uma lata de línguas e outra de ervilhas, frita presunto com ovos), que recusa a ideia de não dormir a sesta e nos encerra na sombra do quarto com mais solidez que as portas de duplo ferrolho. Só agora lembramos com nitidez a noite passada mal dormida, essa curiosa vertigem, transparente, se nos é permitido inventar esta expressão. Ao acordar, quando nos levantamos, olhando para a frente, qualquer objeto - vamos dizer, por exemplo, o roupeiro - é visto rodando a uma velocidade variável e se desviando de forma inconstante para um flanco (lado direito); enquanto ao mesmo tempo, através do redemoinho, observa-se o mesmo roupeiro firmemente de pé e sem se mover. Não é preciso pensar muito para distinguir aí um quadro Cyclamel, de modo que o tratamento atua em poucos minutos e nos equilibra para caminhar e trabalhar. Muito pior perceber em plena sesta (quando as coisas são tão elas mesmas, quando o sol as faz encolher duramente em suas arestas) que no curral das mancúspias grandes há agitação e tagarelice, uma súbita e inquietante renúncia ao repouso que as engorda. Não queremos sair, o sol alto seria a cefaleia, como admitir agora a possibilidade de cefaleia quando tudo depende do nosso trabalho. Mas devemos fazê-lo, cresce a inquietação das mancúspias e é impossível continuar dentro de casa quando dos currais chega um rumor jamais ouvido, então vamos para fora protegidos por cascas de cortiça, separamo-nos depois de um rápido conciliábulo, uma de nós corre até as gaiolas das mães enquanto o outro examina os fechos das portas, o nível da água no tanque australiano, a possível irrupção de uma raposa ou um gato-do-mato. Mal chegamos à entrada dos currais e já o sol nos enceguece, como albinos vacilamos entre as labaredas brancas, gostaríamos de continuar o trabalho mas é tarde, o quadro Belladona arrasa-nos até nos precipitar esgotados na fundura sombria do galpão. Congestionados, cara vermelha e quente; pupilas dilatadas. Pulsação violenta no cérebro e carótidas. Violentas pontadas e ferroadas. Cefaleia com tremores. A cada passo, tremor para baixo como se houvesse um peso no occipital. Agulhadas e pontadas. Dor com ruído; como se se empurrasse o cérebro; e pior se agachando, como se o cérebro caísse para fora, como se fosse empurrado para a frente, ou os olhos estivessem por sair das órbitas. (Como isto, como aquilo; mas nunca como é de verdade.) Pior com os ruídos, tremores, movimento, luz. E de repente para, a sombra e o frescor levam-na em um instante, deixam-nos uma gratidão maravilhada, um desejo de correr e sacudir a cabeça, espantar-se porque um minuto antes ... Mas há o trabalho, e agora desconfiamos que a inquietação das mancúspias se deve à falta de água fresca, à ausência de Leonor e Chahgo - são tão sensíveis que devem sentir, de algum modo, essa ausência -, e um pouco porque estranham a mudança nos trabalhos da manhã, nossa lentidão, nossa pressa.

continua na página 37 (74)...

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