Julio Cortázar
(1914-1984)
(1914-1984)
A Paco
que gostava dos meus sonhos
Cefaleia
Devemos à Dra. Margaret L. Tyler as imagens
mais belas deste conto.
Seu admirável poema, Sin
tomas orientadores haeia los remedios más eomunes
dei vértigo yeefaleas, apareceu publicado na revista
Homeopatía (publicada pela Associação Médica
Homeopática Argentina) ano XIV, n.o 32, abril de
1946, p. 33ss.
Agradecemos também a Ireneo Femando Cruz
haver-nos iniciado, durante uma viagem a San Juan,-no conhecimento das mancúspias.
Cuidamos das mancúspias até bastante tarde,
agora com o calor do verão enchem-se de caprichos
e manhas, as menos desenvolvidas reclamam alimentação especial e nós lhes levamos aveia maltada
em grandes travessas de louça; as maiores estão
mudando o pelo do lombo, de modo que é preciso
pô-las de lado, vesti-las com um cobertor e cuidar
para que não se juntem à noite com as mancúspias
que dormem em gaiolas e recebem alimento a cada
oito horas.
Não nos sentimos bem. Isto acontece desde a
manhã, talvez pelo vento quente que soprava ao
amanhecer, antes que nascesse este sol alcatroado
que bateu na casa todo o dia. Dá trabalho atender
aos animais enfermos- isto se faz às onze- e
examinar as crias depois da sesta. Parece-nos cada
vez mais penoso continuar, cumprir a rotina; desconfiamos que uma única noite de desatenção poderá ser funesta para as mancúspias, a ruína irreparável de nossa vida. Andamos então sem refletir,
cumprindo um após o outro os atos que o hábito determina, parando apenas para comer (há farelos de
pão na mesa e sobre a sapata do living) ou nos olhar
no espelho que duplica o dormitório. De noite caímos repentinamente na cama, e o hábito de escovar
os dentes antes de dormir cede à fadiga, mal é substituído por um gesto que busca o lampião ou os remédios. Do lado de fora se ouve as mancúspias
adultas andando em círculo sem parar.
Não nos sentimos bem. Um de nós é Aconitum, o
que quer dizer que deve se medicar com acônito em
altas diluições se, por exemplo, o medo lhe causa
vertigem. Acônito é uma violenta tormenta, que
passa logo. De que outro modo descrever o
contra-ataque a uma ansiedade que nasce de qual
quer insignificância, do nada. Uma mulher se defronta repentinamente com um cachorro e começa a
se sentir violentamente enjoada. Então acônito, e
em pouco tempo só fica um enjoo doce, com tendência a desaparecer (isto nos ocorreu, mas era um
caso Bryonia, o mesmo que sentir que afundávamos
com, ou através da cama).
O outro, em compensação, é marcadamente Nux
vomica. Depois de levar a aveia maltada às mancúspias, talvez por se agachar muito ao encher a
gamela, sente de repente como se lhe girasse o cérebro, não que tudo gire em torno - a vertigem em si -, mas a visão é que gira, dentro dele a consciência
gira como um giroscópio em seu aro, e fora tudo está
tremendamente imóvel, só que fugindo e inalcançável. Temos pensado se não será talvez um quadro
de Phosphorus, porque além de tudo apavora-o o
perfume das flores (ou o das mancúspias pequenas,
que cheiram levemente a lilás) e coincide fisicamente com o quadro fosfórico: é alto, magro, sonha
com bebidas geladas, sorvetes e sal.
De noite não é tanto, a fadiga e o silêncio nos ajudam - porque o rondar das mancúspias marca docemente este silêncio do pampa - e às vezes dormimos até o amanhecer e nos desperta um esperançado sentimento de alívio. Se um de nós sai da cama
antes do outro, pode acontecer contudo que assistamos consternados à repetição de um fenômeno
Camplwra monohromata, pois acredita que caminha em uma direção quando, na realidade, caminha
em outra. É horrível, vamos com toda a certeza até
o banheiro, e de repente sentimos no rosto a pele
nua do grande espelho. Quase sempre tomamos isso
por brincadeira, porque é preciso pensar no trabalho que espera, e de nada serviria desanimarmos tão
depressa. Procura-se as drágeas, cumpre-se sem
comentários nem desânimos as instruções do Dr.
Harbín. (Talvez em segredo sejamos um pouco Na
trum muriaticum. Tipicamente um Natrum chora,
mas ninguém deve observá-lo. É triste, é reservado;
gosta de sal.)
Quem pode pensar em tantas vaidades se o trabalho nos espera nos currais, na invernada e no tambo? Leonor e Chango já estão se alvoroçando lá fora, e quando saímos com os termômetros e as bacias
para o banho, os dois se atiram ao trabalho como
querendo se cansar logo, organizando o seu ócio da
tarde. Sabemos disso muito bem, por isso nos alegra
ter saúde para realizar nós mesmos cada coisa. Enquanto não passe disto e não apareçam as cefaleias, podemos continuar. Agora é fevereiro, em maio as mançúspias estarão vendidas e nós a salvo
por todo o inverno. Ainda-podemos continuar.
As mancúspias nos distraem muito, em parte
porque estão cheias de sagacidade e malevolência,
em parte porque sua criação é um trabalho sutil, que
exige uma precisão incessante e minuciosa: Não
temos por que nos estender, mas isto é um exemplo:
um de nós tira as mancúspias mães das gaiolas de
invernada - são seis e meia da manhã - e as reúne
no curral de pastos secos. Deixa-as retouçar vinte
minutos, enquanto o outro retira os filhotes das casinhas numeradas, onde cada um tem sua história
clínica, verifica rapidamente a temperatura retal,
devolve a sua casinha os que passam de 37,1°, e por
um tubo de lata traz o restante para se reunir às
mães, para a amamentação. Talvez seja este o momento mais belo da manhã, comove-nos o alvoroço
das pequenas mancúspias e suas mães, sua ruidosa e
permanente tagarelice. Apoiados na cerca do curral
esquecemos a imagem do meio-dia que se aproxima, da penosa tarde inadiável. Por momentos sentimos um pouco de medo de olhar para o chão do
curral - um evidente quadro Onosmodium -, mas
passa e o sol nos salva do sintoma complementar, da
cefaleia, que se agrava com a escuridão.
Às oito é hora do banho, um de nós vai atirando
punhados de sais Krüschen e farelo nas bacias, a outra dirige o Chango, que traz baldes de água morna.
As mancúspias mães não gostam do banho, é preciso pegá-las com cuidado pelas orelhas e as patas,
segurando-as como coelhos, e mergulhá-las repetidamente nas bacias. As mancúspias se desesperam e ficam eriçadas, isso é o que queremos para que os
sais penetrem até a pele tão delicada.
À Leonor cabe dar de comer às mães, o que faz
muito bem; nunca a vimos errar na distribuição das
porções. Dá a elas aveia maltada, e duas vezes por
semana leite com vinho branco. Desconfiamos um
pouco de Chango, parece-nos que bebe o vinho; seria melhor guardar a bordalesa dentro, mas a casa é
pequena e depois esse cheiro doce que recende nas horas de sol alto.
Talvez isto que estamos dizendo fosse monótono
e inútil se não estivesse mudando lentamente dentro
de sua repetição; nos últimos dias - agora que entramos no período crítico da desmama - um de nós
deve ter reconhecido, com que amarga concordância, o progresso de um quadro Silica. Começa no
exato momento em que nos domina o sono, é um
perder a estabilidade, um pulo para dentro, uma vertigem que sobe pela coluna vertebral até o interior
da cabeça; igual ao subir rastejante (não há outra
descrição) das pequenas mancúspias pelas estacas
dos currais. Então, de repente, sobre o poço negro
do sono onde já caímos deliciosamente, somos
aquela estaca dura e difícil pela qual trepam, brincando, as mancúspias. E é pior fechando os olhos.
Assim se vai o sono, ninguém dorme com os olhos
abertos, morremos de cansaço mas basta um leve
abandono para sentir a vertigem que desafia, um
vaivém no crânio, como se a cabeça estivesse cheia
de coisas vivas que giram a seu redor. Corno mancúspias.
E é tão ridículo, provou-se que aos doentes Silica
faz falta silício, areia. E nós aqui, rodeados de dunas, em um pequeno vale ameaçado por dunas
imensas, faltando-nos areia na hora de dormir.
Contra a probabilidade de que isto progrida, preferimos perder algum tempo nos medicando com
todo rigor; notamos às doze horas que a reação é favorável, e a tarde de trabalho decorre sem problemas, apenas, talvez, uma ligeira desarrumação das
coisas, de repente, como se os objetos parassem
diante de nós, levantando-se sem se mexer; uma
sensação de aresta viva em cada nível. Desconfiamos de uma mudança para Dulcamara, mas não é
fácil ter certeza.
No ar flutuam leves as plumas das mancúspias
adultas, depois da sesta vamos com tesouras e umas
bolsas de borracha ao curral alambrado onde
Chango as reúne para a tosquia. Já em fevereiro faz
frio de noite, as mancúspias precisam do pelo porque dormem estendidas e carecem da proteção que
se dão a si mesmos os animais que se dobram encolhendo as patas. Apesar disso perdem o pelo do
lombo, ele nasce devagar e ao ar livre, o vento levanta do curral uma fina névoa de pelos que fazem
cócegas no nariz e nos fustigam até dentro de casa.
Reunimos então as mancúspias e tosamos o seu
lombo a meia altura, com cuidado para não privá-las
de calor; quando cai esse pelo, muito curto para flutuar no ar, vai se formando um pó amarelado que
Leonormolha com a mangueira e junta diariamente
em uma bola de massa que, depois, se atira ao poço.
Um de nós tem, entretanto, que acasalar os machos com as mancúspias jovens, pesar os filhotes
enquanto Chango lê em voz alta o peso do dia anterior, verificar o progresso de cada mancúspia e separar as menos desenvolvidas para submetê-las a
uma superalimentação. Isto nos ocupa até o anoitecer; falta só a aveia da segunda comida, que Leonor
distribui rapidamente, e engaiolar as mancúspias
mães enquanto as mais novas protestam e teimam
em continuar a seu lado. É Chango quem se encarrega da separação, quando nós já estamos na varanda controlando. Às oito fecham-se as portas e
janelas; às oito ficamos sozinhos lá dentro.
Antes era um momento agradável, a lembrança de episódios e de esperanças. Mas desde que não
nos sentimos bem, parece que esta hora ficou mais
pesada. Inutilmente nos enganamos com a arrumação da botica - é frequente que a ordem alfabética dos remédios se altere por descuido -; no fim,
sempre vamos ficando calados à mesa, lendo o manual de Álvares Toledo (Estuda-te a ti mesmo) ou o
de Humphreys (Guia homeopático). Um de nós
teve com intermitência uma fase Pulsatila, vale dizer que tende a se mostrar volúvel, chorona, exigente, irritável. Isto aflora ao anoitecer e coincide com
o quadro Petroleum que afeta o outro, um estado no
qual tudo - coisas, vozes, lembranças - passa por
cima dele, intumescendo-o e o entorpecendo. Assim não há choque, apenas um sofrer paralelo e tolerável. Depois, às vezes vem o sono.
Também não gostaríamos de pôr nestas notas
uma ênfase progressiva, um crescer articulado até o
estouro patético da grande orquestra, depois do
qual decrescem as vozes e se reingressa em uma
calma de saciedade. Às vezes estas coisas que registramos já nos aconteceram (como a grande cefaleia
Glonoinum no dia em que nasceu a segunda ninhada de mancúspias), às vezes é agora ou de manhã.
Achamos necessário documentar estas fases para
que o Dr. Harbín junte-as à nossa história clínica
assim que voltemos a Buenos Aires. Não somos hábeis, sabemos que de repente nos afastamos do tema, mas o Dr. Harbín prefere conhecer os detalhes
circunstanciais de cada quadro. Esse roçar na janela
do banheiro que ouvimos de noite pode ser importante. Pode ser um sintoma Cannabis indica; sabe-se agora que um Cannabis indica tem sensações
exaltadas, com exageração de tempo e distância.
Pode ser uma mancúspia que fugiu e vem, como todas elas, para a luz.
No começo éramos otimistas, mas ainda não perdemos a esperança de ganhar um bom dinheiro com
a venda das crias jovens. Levantamo-nos cedo, medindo o crescente valor do tempo na fase final, e no
começo quase não nos afeta a fuga de Chango e Leonor. Sem aviso prévio, sem observar o estatuto,
esses grandes filhos-da-puta nos abandonaram ontem de noite, levando o cavalo e a charrete, o cobertor de uma de nós, o lampião a carbureto, o último
número do Mundo Argentino. Pelo silêncio nos currais desconfiamos de sua ausência, é preciso
apressar-se para levar as crias à amamentação, preparar os banhos, a aveia maltada. Todo o tempo
pensamos que não se deve pensar no que passou,
trabalhamos sem admitir que agora estamos sozinhos, sem cavalo para vencer as seis léguas até
Puan, com provisões para uma semana, e vigiados
por vagabundos, agora que nas outras cidades se difundiu o estúpido rumor de que criamos mancúspias
e ninguém mais se aproxima com medo de doenças. Só trabalhando e com saúde podemos tolerar uma
conjuração que nos aflige por volta do meio-dia, no
intervalo para o almoço (uma de nós abre apressadamente uma lata de línguas e outra de ervilhas, frita
presunto com ovos), que recusa a ideia de não dormir a sesta e nos encerra na sombra do quarto com
mais solidez que as portas de duplo ferrolho. Só
agora lembramos com nitidez a noite passada mal
dormida, essa curiosa vertigem, transparente, se
nos é permitido inventar esta expressão. Ao acordar, quando nos levantamos, olhando para a frente,
qualquer objeto - vamos dizer, por exemplo, o
roupeiro - é visto rodando a uma velocidade variável e se desviando de forma inconstante para um
flanco (lado direito); enquanto ao mesmo tempo,
através do redemoinho, observa-se o mesmo roupeiro firmemente de pé e sem se mover. Não é preciso pensar muito para distinguir aí um quadro Cyclamel, de modo que o tratamento atua em poucos
minutos e nos equilibra para caminhar e trabalhar.
Muito pior perceber em plena sesta (quando as coisas são tão elas mesmas, quando o sol as faz encolher duramente em suas arestas) que no curral das
mancúspias grandes há agitação e tagarelice, uma
súbita e inquietante renúncia ao repouso que as engorda. Não queremos sair, o sol alto seria a cefaleia,
como admitir agora a possibilidade de cefaleia
quando tudo depende do nosso trabalho. Mas devemos fazê-lo, cresce a inquietação das mancúspias
e é impossível continuar dentro de casa quando dos
currais chega um rumor jamais ouvido, então vamos
para fora protegidos por cascas de cortiça,
separamo-nos depois de um rápido conciliábulo, uma de nós corre até as gaiolas das mães enquanto o outro examina os fechos das portas, o nível da água
no tanque australiano, a possível irrupção de uma
raposa ou um gato-do-mato. Mal chegamos à entrada dos currais e já o sol nos enceguece, como albinos vacilamos entre as labaredas brancas, gostaríamos de continuar o trabalho mas é tarde, o quadro Belladona arrasa-nos até nos precipitar esgotados na fundura sombria do galpão. Congestionados,
cara vermelha e quente; pupilas dilatadas. Pulsação
violenta no cérebro e carótidas. Violentas pontadas
e ferroadas. Cefaleia com tremores. A cada passo,
tremor para baixo como se houvesse um peso no occipital. Agulhadas e pontadas. Dor com ruído;
como se se empurrasse o cérebro; e pior se agachando, como se o cérebro caísse para fora, como se
fosse empurrado para a frente, ou os olhos estivessem por sair das órbitas. (Como isto, como aquilo;
mas nunca como é de verdade.) Pior com os ruídos,
tremores, movimento, luz. E de repente para, a
sombra e o frescor levam-na em um instante,
deixam-nos uma gratidão maravilhada, um desejo
de correr e sacudir a cabeça, espantar-se porque um
minuto antes ... Mas há o trabalho, e agora desconfiamos que a inquietação das mancúspias se deve à
falta de água fresca, à ausência de Leonor e Chahgo - são tão sensíveis que devem sentir, de algum modo, essa ausência -, e um pouco porque estranham
a mudança nos trabalhos da manhã, nossa lentidão,
nossa pressa.
continua na página 37 (74)...
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Sarau... Cefaleia (a) - (Julio Cortázar)
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