terça-feira, 24 de junho de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.2)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte I 
ANTISSEMITISMO

Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória. 
 Roger Martin du Gard

3.  Os Judeus e a Sociedade
     3.2 - O poderoso mágico
          Benjamin Disraeli, cujo principal interesse na vida era a carreira de lorde Beaconsfield, distinguia-se por duas coisas: primeiro, pelo dom dos deuses que nós chamamos banalmente de sorte, mas que em outras épocas era reverenciado como sendo da deusa chamada Fortuna; e, segundo, pela despreocupada inocência de espírito e inconsciente imaginação tão intimamente relacionada com a Fortuna que, na realidade, nem sequer é possível classificá-lo como carreirista, embora ele jamais pensasse seriamente em outra coisa que não fosse a sua carreira. Sua inocência fê-lo reconhecer quão insensato seria sentir-se declassé, e como seria mais excitante e mais útil para sua carreira acentuar o fato de que era judeu "vestindo-se de modo diferente, penteando o cabelo de modo estranho, e através de maneirismos esquisitos de expressão e palavreado".[30] Desejava ser admitido na alta e na altíssima sociedade mais apaixonadamente e mais despudoradamente do que qualquer outro judeu intelectual; mas foi o único que descobriu o segredo de como preservar a sorte, esse milagre natural da marginalidade, e que soube desde o início que um homem nunca deve curvar-se para "elevar-se mais alto".
     Jogava o jogo da política como um ator num palco, e representava tão bem o seu papel que chegou a acreditar em seu próprio faz-de-conta. Sua vida e sua carreira pareciam uma história de fadas na qual era um príncipe que oferecia a flor azul dos românticos, então prímula da Inglaterra imperialista, à sua princesa, rainha da Inglaterra. As colônias britânicas eram o país encantado sobre o qual o sol nunca se punha, e sua capital era a misteriosa Délhi asiática, para onde o príncipe queria fugir com sua princesa da Londres nevoenta e prosaica. Isso pode ter sido tolice e infantilidade; mas, quando uma esposa escreve para seu marido como escreveu lady Beaconsfield — "você sabe que se casou comigo por dinheiro, mas eu sei que, se você tivesse de fazê-lo de novo, fá-lo-ia por amor"[31] —, é preciso silenciar diante da felicidade que contraria todas as regras. Eis aqui um homem que começou vendendo a alma ao diabo; mas o diabo não quis a alma, e os deuses lhe deram toda a felicidade do mundo.
     Disraeli provinha de uma família inteiramente assimilada; seu pai, um cavalheiro culto, batizou o filho porque desejava que ele tivesse todas as oportunidades dos mortais comuns. Tinha poucas ligações com a sociedade judaica e nada sabia da religião ou dos costumes judaicos. Desde o início, seu judaísmo era apenas uma questão de origem, que ele tinha a liberdade de embelezar, sem os impedimentos do conhecimento de causa. Encarou esse fato de modo semelhante ao de um gentio: percebeu, mais claramente que os outros judeus, que ser judeu tanto podia ser uma desvantagem como uma oportunidade. E como, ao contrário do seu pai modesto e simples, o que ele menos desejava era tornar-se um mortal comum, e o que mais desejava era "distinguir-se acima de todos os contemporâneos",[32]  começou a cultivar "a pele cor de oliva e os olhos negros como carvão", até que, "ostentando a poderosa cúpula da sua testa — que certamente não era de um templo cristão — [passou a ser] diferente de qualquer ser vivo que se conhecia".[33] Sabia instintivamente que seu sucesso dependia da capacidade com que conseguiria traçar a "divisão entre si e os simples mortais", exagerando conscientemente a sua afortunada "estranhice".
     Tudo isso demonstra uma singular compreensão da sociedade e de suas regras. É significativo que Disraeli tenha dito: "O que para muitos é crime só para poucos pode ser apenas vício"[34] — frase que revela a profunda intuição do princípio que norteou o lento declínio da sociedade do século XIX, em direção ao abismo no qual prevaleceriam as normas da moral da ralé e do submundo. Por conhecer essa regra, sabia que em lugar algum os judeus poderiam ter chances melhores do que nos círculos que, pretendendo ser exclusivos, discriminavam contra eles; pois, se esses círculos, assemelhando-se nisso à multidão, consideravam o fato de ser judeu um crime, poderiam, para se diferenciar das massas, transformar a qualquer momento esse crime num "vício" atraente. O exotismo, o alienismo, o mistério, a mágica e o poder advindo de supostas fontes secretas que Disraeli demonstrava dominar tinham como alvo certo essa atitude da sociedade. Seu virtuosismo no jogo social levou-o a filiar-se ao Partido Conservador; daí, conquistou uma cadeira no Parlamento, o posto de primeiro-ministro, e por fim, o que não era menos importante, a duradoura admiração da sociedade e a amizade da rainha.
     Uma das razões do seu sucesso era a sinceridade do seu jogo. A impressão que ele causava beirava entre curiosa mistura de representação teatral e a "absoluta sinceridade e total espontaneidade".[35] Isso só podia ser fruto de genuína inocência, devida em parte à educação desprovida de qualquer influência judaica específica.[36] Mas a consciência limpa de Disraeli era também devida ao fato de que ele havia nascido inglês. A Inglaterra não conhecia as massas judaicas nem a pobreza judaica, pois aceitou o regresso dos judeus às suas terras séculos após sua expulsão na Idade Média; os judeus portugueses que se estabeleceram na Inglaterra no século XVIII eram ricos e cultos. Foi somente no fim do século XIX, quando os pogroms da Rússia provocaram amplo movimento migratório de judeus, que a pobreza dos judeus fez-se presente em Londres e, com ela, a diferença entre as massas judaicas estrangeiras e estranhas e seus correligionários abastados e nativos. No tempo de Disraeli, desconhecia-se na Inglaterra a questão judaica em sua forma continental, porque ali viviam somente os judeus aceitos pelo Estado. Em outras palavras, os "judeus-exceção" ingleses não tinham consciência de que eram exceções, como seus irmãos do continente. Quando Disraeli escarnecia da "perniciosa doutrina dos tempos modernos: a igualdade natural dos homens",[37] seguia conscientemente os passos de Burke, que havia "preferido os direitos de um inglês aos Direitos do Homem", mas desconhecia a situação real em que os direitos de todos haviam sido substituídos pelos privilégios de alguns. Ignorava de tal modo as verdadeiras condições que prevaleciam entre o povo judeu, e estava tão convencido da "influência da raça judia nas comunidades modernas", que exigia abertamente que os judeus "recebessem toda a honraria e favor das raças nórdicas e ocidentais, honraria que, nas nações refinadas e civilizadas, merecem aqueles que encantam o gosto público e elevam o sentimento do povo".[38] Como a influência política dos judeus na Inglaterra girava em torno do ramo inglês dos Rothschild, sentia-se orgulhoso pela ajuda dos Rothschild na derrota de Napoleão, e não via motivo por que não devesse ser franco em suas opiniões políticas como judeu.[39] Por ser batizado, não chegou jamais a ser, naturalmente, um porta-voz oficial da comunidade judaica, mas não deixa de ser verdadeiro que foi o único judeu de sua espécie e do seu século que tentou representar o povo judeu politicamente e da melhor forma que podia.
     Disraeli, que nunca negou que o "fato fundamental [a seu respeito] é que ele era judeu",[40] sentia por todas as coisas judaicas uma admiração somente igualada por sua ignorância a respeito delas. No entanto, a mistura de orgulho e ignorância nesses assuntos era característica de todos os judeus recém-assimilados. A grande diferença é que Disraeli conhecia ainda menos do passado e do presente judaicos e, portanto, ousava dizer abertamente aquilo que outros apenas deixavam perceber na penumbra semiconsciente de padrões de conduta ditados pelo medo e pela arrogância.
     Foi mais séria a consequência política da capacidade de Disraeli de comparar as possibilidades judaicas às aspirações políticas de um povo normal; quase automaticamente fez vir à luz o conjunto de teorias quanto à influência e à organização judaicas, que geralmente se encontram nos piores compêndios antissemitas. Em primeiro lugar, ele realmente acreditava ser o "homem escolhido da raça escolhida".[41] Que melhor prova podia existir que sua própria carreira? Um judeu sem nome nem fortuna, ajudado apenas por alguns banqueiros judeus, havia sido levado à posição de primeiro homem da Inglaterra; um dos homens menos simpáticos aos olhos do Parlamento tornava-se primeiro-ministro e granjeava popularidade genuína entre aqueles que, durante muito tempo, o haviam "visto como charlatão e tratado como pária".[42] O sucesso político, porém, nunca o satisfez. Era difícil e mais importante ser aceito pela sociedade londrina do que conquistar a Câmara dos Comuns, e era certamente um triunfo maior ser eleito membro do clube Grillion's — "um círculo seleto de onde costumavam sair políticos ascendentes de ambos os partidos, mas do qual eram rigorosamente excluídos os socialmente censuráveis"[43] — do que ser ministro de sua Majestade.
     A culminância deliciosamente inesperada de todos esses doces triunfos foi a amizade sincera da rainha, pois, se a monarquia na Inglaterra havia perdido a maior parte de suas prerrogativas políticas num Estado-nação estritamente controlado e constitucional, ela reteve a primazia absoluta na sociedade inglesa. Ao medirmos a grandeza do triunfo de Disraeli, devemos lembrar que lorde Robert Cecil, um dos seus eminentes colegas no Partido Conservador, podia, ainda por volta de 1850, justificar um ataque particularmente violento, ao afirmar que estava "apenas dizendo o que todo mundo diz de Disraeli à boca pequena e ninguém diz em público".[44] A maior vitória de Disraeli estava exatamente no fato de que, afinal, ninguém dizia à boca pequena coisa alguma que não o houvesse lisonjeado ou gratificado se fosse dita em público. Foi precisamente essa singular conquista da popularidade genuína que Disraeli conseguiu através de sua política de ver apenas as vantagens e pregar apenas os privilégios de ter nascido judeu.
     Encarnação viva da ambição e da poderosa paixão, Disraeli foi sempre capaz de se adaptar à sua época, que, aparentemente, não admitia distinções nem diferenças. Carlyle, que interpretava a história do mundo segundo um ideal de herói do século XIX, estava errado quando recusou um título das mãos de Disraeli.[45] Nenhum outro contemporâneo seu correspondia melhor aos heróis que ele mesmo idealizara do que Disraeli, com sua noção da grandeza e autoconfiança; nenhum outro homem satisfazia de modo tão exato as exigências do século XIX, carente de gênio corporificado, do que esse charlatão que levava a sério a sua função e representava o papel do Grande Homem com ingenuidade e assombrosa exibição de truques fantásticos e profissionalismo artístico. Os políticos apaixonaram-se pelo charlatão que transformava tediosas transações de negócios em sonhos de sabor oriental; e, quando a sociedade farejou um cheiro de magia negra nas espertas manobras de Disraeli, o "poderoso mágico" já havia realmente conquistado os corações dos homens de sua época.
     A ambição de Disraeli de distinguir-se dos outros mortais e seu pendor pela sociedade aristocrática eram típicos das classes médias do seu tempo e do seu país. Não foi por motivos políticos nem razões econômicas, mas sim pelo ímpeto de sua ambição social, que ele aderiu ao Partido Conservador.[46] Quando Disraeli "evocou o orgulho racial para enfrentar o orgulho de casta",[47] sabia que a posição social dos judeus, a despeito de qualquer outro comentário, dependia unicamente do nascimento e não de suas realizações. Disraeli foi adiante. Sabia que a aristocracia, que, ano após ano, tinha testemunhado os homens ricos da classe média comprarem títulos de nobreza, externava sérias dúvidas quanto ao valor de tais títulos. Assim, usando a imaginação, decidiu derrotar os aristocratas usando o jogo que impunham. Afirmou que os ingleses "descendiam de uma raça arrivista e híbrida, enquanto ele próprio advinha do mais puro sangue da Europa", que "a vida de um nobre inglês [era] regulamentada principalmente por leis árabes e costumes sírios", e que "uma judia é a Rainha dos Céus".[48] Mas, quando escreveu que "não existia mais aristocracia na Inglaterra, pois sua qualidade essencial é a superioridade do homem-animal",[49] tocou no ponto mais sensível das teorias, já então em voga entre os aristocratas, e que iriam constituir mais tarde o ponto de partida para a disseminação da ideologia racial entre a burguesia e a ralé.
     O judaísmo, e o fato de fazer parte do povo judeu, tornou-se entre os judeus assimilados mera questão de nascimento. Antes, a religião específica, a nacionalidade específica e a manutenção de tradições compartilhadas agrupavam os judeus ao redor de certas vantagens econômicas peculiares. A intelectualização e a assimilação dos judeus haviam secularizado de tal forma a consciência e a interpretação de si mesmos que nada restava das velhas lembranças e esperanças, senão um vago sentimento de pertencerem a um povo escolhido. Disraeli, embora certamente não fosse o único "judeu-exceção" que acreditava na sua qualidade de escolhido sem acreditar no Deus de quem partira a escolha — e de quem poderia partir a rejeição —, elaborou uma doutrina racial a partir desse tolo conceito de missão histórica. Afirmava que o princípio semita "representa tudo o que é espiritual em nossa natureza", que "as vicissitudes da história encontraram na raça a sua solução principal", que só existe uma aristocracia, a "aristocracia da natureza", a qual consiste em "raça pura primorosamente organizada".[50]
     É óbvia a relação entre essas afirmativas e as ideologias raciais modernas: a formulação de Disraeli apenas comprova como elas servem para combater os sentimentos de inferioridade social. Pois, se é verdade que as doutrinas raciais foram engendradas para servir a fins sinistros de caráter político, não é menos verdadeiro que só eram consideradas e aceitas pelo fato de que — com seu apoio — qualquer pessoa podia sentir-se — apenas pelo nascimento — "aristocrata" dentro do grupo pré-escolhido pela ideologia como sendo o mais nobre.
     O fato de esses novos escolhidos não pertencerem à elite, a um pequeno grupo seleto, que, afinal, era um pré-requisito inerente ao orgulho de um nobre, mas que precisavam compartilhar a sua qualidade de escolhidos com a multidão crescente dos que aderiam à ideia, não prejudicava essencialmente a doutrina, pois aqueles que não pertenciam à "raça escolhida" aumentavam numericamente na mesma proporção, rejeitados aprioristicamente pelos que se julgavam pertencentes a ela.
     As doutrinas raciais de Disraeli resultavam não só de sua extraordinária percepção das regras da sociedade, como também da secularização do judaísmo assimilado. Os intelectuais judeus foram envolvidos no processo geral de secularização, que no século XIX já havia perdido o encanto revolucionário da Era do Esclarecimento, quando ainda perdurava a confiança da humanidade idealizada. Esses intelectuais estavam também expostos às influências dos judeus reformistas, que desejavam transformar a religião nacional em mera denominação religiosa. Para atingir esse fim, precisavam transformar os dois elementos básicos da fé judaica — a esperança num Messias e a crença na eleição de Israel — e eliminar das orações as visões de uma restauração do Sião. Sem a esperança messiânica, a ideia do povo escolhido significava eterna segregação; sem a fé na escolha, que dava a um povo específico a responsabilidade da redenção do mundo, a esperança de um Messias diluía-se na incerta névoa da filantropia e do universalismo, tão característicos do empenho político especificamente judeu.
     Como resultado transcendental da secularização dos judeus, separou-se do conceito de povo escolhido a esperança num Messias, embora na religião judaica a conjugação desses dois elementos forme um só plano de redenção, concebido por Deus para a humanidade. Da esperança messiânica advinha a inclinação judaica por soluções idealizadas de problemas políticos, que visariam ao estabelecimento de um paraíso na terra. Da crença na escolha do povo por Deus advinha a fantástica ilusão, compartilhada por judeus e não-judeus, de que os judeus são por natureza mais inteligentes, melhores e mais aptos a sobre-viver — promotores da história, o sal da terra. Assim, certo de ter-se libertado dos laços e preconceitos nacionais, o intelectual judeu, ao sonhar com um paraíso na terra, estava na verdade mais longe da realidade política do que seus pais, que, ao rezarem pela vinda do Messias, pelo menos esperavam pelo retorno de seu povo à Judéia. Por outro lado, os assimilacionistas, embora desprovidos da entusiástica esperança messiânica, estavam persuadidos de que, como judeus, eram o sal da terra; mas, separando-se das nações por essa profana presunção, afastavam-se delas mais do que seus pais, que aceitavam a separação de Israel dos gentios pelo muro da Lei,* o qual, todavia, segundo a crença mística, viria a ser destruído após a vinda do Messias. Assim, os "judeus-exceção" chegaram a se julgar por demais "esclarecidos" para continuarem a crer em Deus e, em virtude de sua excepcional posição em toda parte, supersticiosos em demasia para abandonar a autoconfiança. Esse conjunto de fatores corroía os fortes laços de piedosa esperança que até então ainda uniam Israel ao resto da humanidade. Assim, a secularização produziu o paradoxo decisivo para a formação da psicologia do judeu moderno: tendo transformado a religião nacional — essência do grupo — em formal denominação confessional, e eliminando a consciência nacional ao substituir o ambíguo desejo de Estado e Sociedade próprios por não menos ambíguos engenhos e truques psicológicos, a secularização engendrou o chauvinismo judeu, entendendo-se por chauvinismo o nacionalismo pervertido no qual (nas palavras tiradas de Chesterton) "o próprio indivíduo deve ser adorado como reflexo do grupo ao qual pertence, tornando-se o seu próprio ideal e até o seu próprio ídolo". O antigo conceito religioso de escolha divina deixou de ser a essência do judaísmo, tornando-se, em vez disso, a essência distintiva da qualidade de ser judeu.
     Esse paradoxo encontrou sua mais fascinante encarnação em Disraeli. Disraeli era imperialista inglês e chauvinista judeu; mas é fácil perdoar um chauvinismo que era um jogo da imaginação, porque, afinal de contas, "a Inglaterra era a Israel de sua imaginação";[51] e também não é difícil perdoar seu imperialismo inglês, que tinha pouco em comum com a obstinada compulsão de expandir-se por amor à expansão, porque, afinal de contas, ele "nunca foi um inglês completo e se orgulhava disso".[52] Todas essas curiosas contradições, que indicam tão claramente que o poderoso mágico nunca se levou muito a sério e sempre representou um papel para conquistar a sociedade e granjear popularidade, constituem um singular encanto: dão a todos os seus pronunciamentos um quê de sonho e de entusiasmo charlatão, que o torna completamente diferente dos seus seguidores imperialistas. Teve sorte de alimentar seus sonhos e representar seu papel na época em que os negociantes ainda não haviam decidido realizar a ideia imperial, e até se opunham às "aventuras coloniais". Sua supersticiosa crença em sangue e raça — à qual ele acrescentava velhas credu-lidades populares e românticas acerca da ligação supranacional entre ouro e sangue — ainda não engendrava suspeitas de possíveis massacres, ocorressem eles na África, na Ásia ou na Europa, fossem quem fossem suas vítimas. Começou sua carreira como um escritor não muito dotado, e manteve sempre o papel de intelectual a quem o acaso fez membro do Parlamento, líder do seu partido, primeiro-ministro e amigo da rainha Vitória. A noção que Disraeli tinha do papel dos judeus na política data da época em que era ainda simples escritor e não havia iniciado carreira política. Suas ideias a respeito não eram, portanto, resultado da experiência própria, mas ateve-se a elas com notável tenacidade durante toda a sua vida.
     Em seu primeiro romance, Alroy (1833), Disraeli elaborou o plano de um Império Judeu no qual os judeus reinariam como uma classe estritamente delimitada e separada. O romance mostra a influência das ilusões reinantes na época a respeito das possibilidades de poder dos judeus, bem como a ignorância do jovem autor quanto às verdadeiras condições de poder no seu tempo. Onze anos mais tarde, a experiência política no Parlamento e as relações com homens eminentes haviam ensinado a Disraeli que "os objetivos dos judeus, quaisquer que tenham sido antes e depois, estavam, na sua época, muito longe da afirmação da nacionalidade política sob qualquer forma".[53] Noutro romance, Coningsby, ele já abandonou o sonho de um Império Judeu e revelou um plano fantástico, segundo o qual o dinheiro judeu domina a ascensão e a queda de cortes e de impérios, e reina de modo supremo na diplomacia. Nunca mais ele abandonou essa segunda noção de uma secreta e misteriosa influência dos homens escolhidos da raça escolhida, que substituiu seu sonho anterior de misteriosa casta dominante, abertamente constituída. Essa ideia tornou-se o pivô de sua filosofia política. Em contraste com os seus mui admirados banqueiros judeus, que concediam empréstimos aos governos e recebiam comissões, Disraeli, com a incompreensão de leigo, não entendia como tais possibilidades de poder fossem manuseadas por pessoas desprovidas da ambição do poder, e não compreendia que um banqueiro judeu estivesse ainda menos interessado em política do que seus colegas não-judeus; pelo menos para Disraeli, era natural que a riqueza judaica servisse de instrumento para a política judaica. Quanto mais vinha a saber da eficaz organização dos banqueiros judeus em questões de negócios e de sua troca internacional de notícias e informações, mais se convencia de que se tratava de algo como uma sociedade secreta que, sem que ninguém o soubesse, tinha nas mãos os destinos do mundo.
     A crença na conspiração alimentada por uma sociedade secreta alcançou a maior força propagandística na publicidade antissemita, ultrapassando em importância as tradicionais superstições a respeito de assassinatos rituais e envenenamento de poços, supostamente cometidos pelos judeus. É altamente significativo que Disraeli, para fins exatamente opostos e numa época em que ninguém pensava seriamente em sociedades secretas, houvesse chegado a conclusões idênticas, pois mostra claramente o quanto essas invenções foram devidas a motivos e ressentimentos sociais, e até que ponto explicavam, mais facilmente do que a verdade, as atividades econômicas e políticas. Aos olhos de Disraeli, como aos olhos de muitos outros charlatães menos conhecidos e famosos depois dele, todo o jogo político era travado entre sociedades secretas. Não apenas os judeus, mas qualquer outro grupo cuja influência não fosse politicamente organizada, ou que estivesse em oposição ao sistema social e político, eram para ele forças ocultas que agiam nos bastidores. Em 1863, julgou assistir a "uma luta entre as sociedades secretas e os milionários europeus; até agora quem ganhou foi Rothschild".[54] Mas dizia também que "a igualdade natural dos homens e a supressão da propriedade são proclamadas pelas sociedades secretas";[55] ainda em 1870 falava com seriedade das forças "subterrâneas" e acreditava sinceramente que "sociedades secretas com suas ligações internacionais, e a Igreja de Roma usando de suas pretensões e métodos, bem como o eterno conflito entre a ciência e a fé", determinavam o curso da história humana.[56]
     A inacreditável ingenuidade de Disraeli fazia-o ligar todas essas forças "secretas" aos judeus. "Os primeiros jesuítas foram judeus; aquela misteriosa diplomacia russa que tanto alarma a Europa ocidental é organizada e principalmente executada por judeus; essa poderosa revolução que se prepara neste instante na Alemanha e que será, de fato, uma segunda e maior Reforma (...) está sendo elaborada inteiramente sob os auspícios dos judeus", "homens de raça judia estão à frente de cada um dos grupos comunistas e socialistas. O povo de Deus coopera com ateus: os mais hábeis acumuladores de propriedade se aliam aos comunistas, a raça singular e escolhida dá mãos à escória e às castas inferiores da Europa! E tudo porque desejam destruir esse cristianismo ingrato que lhes deve até o nome, e cuja tirania não podem mais suportar".[57] Na imaginação de Disraeli, o mundo se havia sub-repticiamente tornado judeu.
     Nessa singular fantasia acabou sendo traçado até mesmo o mais engenhoso dos truques publicitários de Hitler: a aliança secreta entre o judeu capitalista e o judeu socialista. Por mais imaginária que fosse essa ideia, não se pode negar que ela tinha sua lógica. Ao partir da premissa, como o era a de Disraeli, de que milionários judeus eram arquitetos da política judaica; ao levar-se em conta os insultos que os judeus haviam recebido durante séculos (que, por mais reais que fossem, não deixaram de ser exagerados pela propaganda de apologia dos judeus); ao observar os casos, não muito raros, da ascensão de filhos milionários judeus à liderança de movimentos dos trabalhadores; ao verificar a forte interligação existente entre as famílias judaicas, não parecia tão inviável, a ponto de chegar a ser rejeitada, a imagem oferecida por Disraeli — retomada por vários antissemitas no futuro — de calculada vingança dos judeus contra os povos cristãos. Na verdade, os filhos dos milionários judeus se inclinavam para os movimentos de esquerda precisamente porque lhes faltava aquela consciência de classe (peculiar no filho de um burguês comum), exatamente como, pelas mesmas razões, os trabalhadores não alimentavam aqueles sentimentos antissemitas, declarados ou não, que sentiam as outras classes. Assim, os movimentos de esquerda em diversos países passaram a oferecer aos judeus as únicas possibilidades reais de assimilação genuína.
     A persistente propensão de Disraeli a explicar a política em termos de sociedades secretas baseava-se em experiências que, mais tarde, convenceram muitos outros intelectuais europeus de menor importância. Sua experiência era esta: era muito mais difícil penetrar na sociedade inglesa do que obter um lugar no Parlamento. A sociedade inglesa do seu tempo reunia-se em clubes elegantes que independiam de diferenças partidárias. Os clubes, embora fossem extremamente importantes na formação de elite política, escapavam ao controle público. Para quem estivesse de fora, deviam ter parecido realmente muito misteriosos. Eram secretos no sentido de que poucos lhes tinham acesso. Tornavam-se misteriosos na medida em que membros de outras classes, que pediam admissão, eram recusados após uma pletora de dificuldades incalculáveis, imprevisíveis e aparentemente irracionais. Nenhuma honraria política podia igualar-se aos triunfos decorrentes daquela associação íntima com os privilegiados. E mesmo no fim da vida as ambições de Disraeli nada pareciam sofrer, embora ele experimentasse várias derrotas políticas, já que permanecia sendo "a mais importante figura da sociedade londrina".[58] Em sua ingênua certeza da suprema importância das sociedades secretas, Disraeli foi precursor das camadas sociais que, nascidas à margem da estrutura da sociedade, jamais puderam compreender devidamente as suas normas e se encontravam no estado de coisas em que se confundiam as distinções entre sociedade e política, mas onde, a despeito de condições aparentemente caóticas, saía sempre vitorioso o estreito interesse de classe. Qualquer pessoa só podia concluir que era preciso uma instituição estar conscientemente estabelecida e ter objetivos definidos para ser responsável por tão notáveis resultados. De fato, nesse jogo bastava resoluta vontade política para dar uma imagem estereotipada do semiconsciente manuseio de interesses e maquinações, basicamente sem propósito. Foi o que ocorreu por um breve período na França durante o Caso Dreyfus, e depois na Alemanha, durante a década que precedeu a subida de Hitler ao poder.
     Disraeli, contudo, situava-se não só fora da sociedade inglesa, mas também fora da sociedade judaica. Pouco sabia da mentalidade dos banqueiros judeus que tanto admirava, e teria ficado muito desapontado se houvesse compreendido que esses "judeus-exceção", a despeito de serem excluídos da sociedade burguesa (à qual nunca realmente procuraram ser admitidos), compartilhavam o seu próprio princípio político de que a atividade política gira em torno da proteção da propriedade e dos lucros. Disraeli via apenas um grupo sem nenhuma organização política aparente, cujos membros permaneciam unidos por um número supostamente infinito de ligações familiares e comerciais — e isso o impressionava. Sua imaginação punha-se a trabalhar sempre que tinha de lidar com eles, e encontrava "prova" para tudo. Não era difícil: as ações do canal de Suez foram oferecidas ao governo inglês graças às informações de Henry Oppenheim, que havia tomado conhecimento de que o quediva do Egito estava ansioso por vendê-las, e a venda foi realizada com o auxílio de um empréstimo de 4 milhões de libras esterlinas concedidas por Lionel Roths-child.
     As convicções raciais de Disraeli e suas teorias a respeito de sociedades secretas originavam-se, em última análise, do desejo de explicar algo aparentemente misterioso e, de fato, quimérico. Não podia transformar o quimérico poder dos "judeus-exceção" numa realidade política; mas podia ajudar, e ajudou, a transformar a quimera em temor público, e a divertir uma sociedade entediada com histórias da carochinha, extremamente perigosas.
     Com a consistência da maioria dos racistas fanáticos, Disraeli mencionava sempre com desprezo o "moderno princípio de nacionalidade, novidadeiro e sentimental".[59] Detestava a igualdade política sobre a qual se assentava o Estado-nação e temia pela sobrevivência dos judeus nessas condições. Imaginava que só a raça poderia prover um refúgio social e político contra a equa-lização. Como conhecia a nobreza do seu tempo muito melhor do que jamais veio a conhecer o povo judeu, não é surpreendente que tenha moldado o conceito de raça à feição de conceitos da aristocracia.
     Sem dúvida, esses conceitos, provindo dos socialmente subprivilegiados, teriam tido pouca importância na política europeia, se não correspondessem a necessidades políticas reais quando, após a corrida para a África, puderam ser adaptados a fins políticos. Esse desejo de acreditar, por parte da sociedade burguesa, nos ideais de Disraeli deu-lhe o quinhão de genuína popularidade. No fim, não foi por culpa sua que a mesma tendência responsável por sua singular boa sorte pessoal levasse o seu povo à catástrofe.

Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.2)
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[*]  Lei, segundo o conceito ortodoxo judaico, é o conjunto normativo do Pentateuco, destinado — até a vinda do Messias — tão-só aos judeus. (N. E.)
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[29] Este titulo é extraído do ensaio sobre Disraeli de autoria de sir John Skleton, 1867. Ver W. F. Monypenny e G. E. Buckle, The life of Benjamin Disraeli, Earl of Beaconsfield, Nova York, 1929, II, pp. 292-3.
[30] Morris S. Lazaron, SeedofAbraham, Nova York, 1930, pp. 260ss.
[31] Horace B. Samuel, "The psychology of Disraeli", em Modernities, Londres, 1914.
[32] J. A. Froude encerra sua biografia Lord Beaconsfield, 1890, com estas palavras: "O objetivo com o qual iniciou a vida era distinguir-se acima de todos os seus contemporâneos, e, por mais fantástica que essa ambição possa ter parecido, terminou por ganhar a aposta pela qual jogara com tanta bravura".
[33] SírJohnSkleton, op. cit.
[34] Em seu romance Tancred, 1847.
[35] Sir John Skleton, o/>. cit.
[36] O próprio Disraeli conta: "Não fui criado entre os da minha raça; fui educado, isto sim, dentro de ambiente de forte preconceito contra eles". Para seus antecedentes familiares, ver especialmente Joseph Caro, "Benjamin Disraeli, Juden und Judentum" (B. D., judeus e judaísmo), em Monatsschriftfür Geschichte und Wissenschaft des Judentums, 1932.
[37] Lord George Bentinck. A political biography, Londres, 1852, p. 496.
[38] Ibid., p. 491.
[39]  /í>i'</., pp.497ss.
[40] Monypenny e Buckle, op. cit., p. 1507.
[41] Horace S. Samuel, op. cit.
[42] Monypenny e Buckle, op. cit., p. 147.
[43] Ibid.
[44] O artigo de Robert Cecil foi publicado no Quarterly Review, o mais prestigioso órgão do Partido Conservador. Ver Monypenny e Buckle, op. cit., pp. 19-22.
[45] Isso aconteceu em 1874. Diz-se que Carlyle chamou Disraeli de "judeu maldito", o "pior homem que já existiu", ver Caro, op. cit.
[46] Segundo Lord Salisbury, num artigo do Quarterly Review, 1869.
[47] E. T. Raymond, Disraeli, the álién patriot, Londres, 1925, p. 1.
[48] H. B. Samuel, op. cit.; Disraeli, Tancred e Lord George Bentinck, respectivamente.
[49] Em seu romance Coningsby, 1844. 
[50] Em suas obras Lord George Bentinck (1852), Endymion (1881) e Coningsby (1844).
[51] Sir John Skleton, op. cit
[52] Horace B. Samuel, op. cit.
[53] Monypenny e Buckle, op. cit., p. 882.
[54] Ibid., p. 73. Numa carta à sra. Brydges Williams de 21 de julho de 1863.
[55] Lord George Bentinck, p. 497.
[56] Em seu romance Lothair, 1870.
[57] Lord George Bentinck, id.
[58] Monypenny e Buckle, op. cit., p. 1470. Essa excelente biografia avalia corretamente o triunfo de Disraeli. Após ter citado In memoriam, canto 64, de Tennyson, continua assim: "Num particular, o sucesso de Disraeli foi mais extraordinário do que sugerem os versos de Tennyson; não apenas galgou a escada social até o topo e 'deu forma aos segredos do trono'; conquistou também a sociedade. Dominou os banquetes e o que chamaríamos de salões de Mayfair (...) e o sucesso social, o que quer que pensem os filósofos do seu valor intrínseco, certamente não foi menos difícil para um estranho menosprezado do que o sucesso político, e foi talvez mais doce ao seu paladar"(p. 1506).
[59] Ibid.,vo\. I, livro 3.

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