segunda-feira, 30 de setembro de 2024

A Montanha Mágica - Dúvidas e ponderações

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo IV

Dúvidas e ponderações

     Na terça-feira já fazia uma semana que o nosso herói se achava ali em cima. Por isso encontrou uma conta no seu quarto, ao regressar do passeio matinal; a conta do sanatório, relativa à sua primeira semana, um documento comercial de execução cuidadosa, apresentado num envelope verde, e cujo cabeçalho era enfeitado com uma vista sedutora do edifício do Berghof, ao passo que à esquerda uma coluna estreita apresentava um pequeno excerto do prospecto, destacando-se em negrito a referência ao “tratamento psíquico segundo os princípios mais modernos”. Os itens, redigidos caligraficamente, davam um total de cento e oitenta francos redondos: doze francos por dia pela pensão e os cuidados médicos, e oito pelo quarto; acresciam a isso vinte francos de “entrada” e dez pela desinfecção do quarto; outras despesas menores, referentes a roupa, cerveja e ao vinho tomado por ocasião do primeiro jantar, arredondavam a soma. Ao conferir a conta em companhia de Joachim, Hans Castorp não encontrou nada de que reclamar.

– É verdade que não faço uso dos cuidados médicos – disse. – Mas isso é comigo. Estão compreendidos no preço da pensão e não posso exigir que os descontem. Como poderiam fazê lo?... Quanto à desinfecção, são meio careiros. Não é possível que tenham gasto dez francos de H2 CO, para fumigar os vestígios da americana. Mas, em geral, acho que é antes barato do que caro, em consideração ao que oferecem. – Foram, pois, antes do café da manhã, à “administração”, a fim de liquidar a conta.

     A “administração” achava-se no rés-do-chão. Quem seguia além do vestíbulo o corredor que passava ao lado do vestiário, das cozinhas e das despensas, não se podia enganar de porta, tanto mais que esta se distinguia por uma placa de porcelana. Com grande interesse, Hans Castorp travou ali conhecimento com o centro comercial da empresa. Era um verdadeiro pequeno escritório. Uma datilógrafa se achava em plena atividade, e três funcionários estavam inclinados sobre as escrivaninhas, enquanto na saleta ao lado um senhor que devia ocupar o posto de chefe ou gerente trabalhava numa secretária colocada no meio da peça, limitando-se a lançar por cima dos óculos um olhar frio e calculista sobre os pensionistas. Estes foram despachados num guichê, onde um funcionário trocou uma nota, pôs o dinheiro na caixa e passou o recibo. Enquanto isso, os primos guardavam aquela atitude séria e modesta, silenciosa e até submissa, que convém a jovens alemães, acostumados a testemunhar a qualquer escritório o respeito devido a autoridades e repartições. Mas, depois de terem saído da “administração” a caminho do café da manhã, e mais tarde, no decorrer do dia, conversaram um pouco sobre a organização da empresa Berghof. Joachim, na sua qualidade de “indígena” informado, soube responder às perguntas de Hans Castorp.
     O Dr. Behrens não era de maneira alguma proprietário nem arrendatário do estabelecimento, se bem que à primeira vista se pudesse ter essa impressão. Acima e atrás dele havia potências invisíveis que se manifestavam somente até certo ponto, sob a forma do escritório. Existia um conselho fiscal, uma sociedade anônima, da qual seria alto negócio fazer parte, uma vez que, segundo a informação fidedigna de Joachim, distribuía anualmente polpudos dividendos aos acionistas, e isso apesar dos salários muito altos dos médicos e dos princípios bastante liberais de administração. O conselheiro áulico não era, por conseguinte, autônomo; não passava de um agente, de um funcionário, de um “parente” das potências superiores, embora sendo o primeiro e o supremo; era a alma do estabelecimento e exercia uma influência decisiva sobre toda a organização, inclusive a intendência, ainda que, na função de médico-diretor, ficasse isento de qualquer ocupação com a parte comercial do sanatório. Natural do noroeste da Alemanha, chegara, fazia anos, a essa posição, contra o seu gosto e plano de vida. Fora levado para Davos por sua mulher, cujos restos mortais havia muito repousavam no cemitério da aldeia, aquele cemitério pitoresco de Davos-Dorf, situado na encosta da direita, ali, mais atrás, perto da entrada do vale. Devia ter sido uma mulher encantadora, ainda que astênica e com olhos excessivamente grandes, a julgar pelas fotografias que se encontravam em toda parte na moradia do médico, e pelos retratos a óleo, devidos ao pincel diletante do marido e espalhados pelas paredes. Depois de lhe ter dado um casal de filhos, seu corpo franzino, acossado pela febre, sentira-se atraído para essas regiões, onde, dentro de poucos meses, sucumbira à consunção. Dizia-se que Behrens, que a adorara, fora de tal forma ferido por esse golpe que, durante algum tempo, tomado de melancolia e esquisitice, chamara a atenção do público na rua pelos seus risinhos, monólogos e gestos descontrolados. Nunca mais regressara ao seu ambiente primitivo, mas ficara ali, decerto porque não queria afastar-se do túmulo. Mas talvez a razão determinante fosse de caráter menos sentimental: a enfermidade atacara a ele próprio, e segundo a sua convicção científica, o lugar que lhe cabia era ali mesmo. Por isso instalara-se em Davos, como um daqueles médicos que são companheiros do infortúnio de quem recebe os seus cuidados, que não combatem a enfermidade, independentes dela, na plenitude da sua liberdade e inteireza pessoal, embora estejam, eles mesmos, marcados pela doença; caso estranho, sem dúvida, mas que não é muito raro e tem inegavelmente suas vantagens e seus inconvenientes. A camaradagem entre o médico e o enfermo merece plena aprovação, e pode-se admitir que só quem sofre é capaz de ser salvador e guia dos que sofrem também. Mas será possível um verdadeiro domínio espiritual sobre uma potência, exercido por uma pessoa que, ela própria, se conta entre os seus escravos? Pode dar liberdade quem está avassalado? Para o sentimento ingênuo, o médico enfermo não deixa de ser um paradoxo, um fenômeno problemático. Quem sabe se a experiência pessoal não lhe turva e confunde o conhecimento científico da doença, tanto quanto o enriquece e firma moralmente? Não encara a enfermidade face a face, com o olhar franco de um adversário; vê-se coibido, não toma uma posição clara, e, com toda a cautela que o tema exige, deve-se ventilar a questão de saber se uma pessoa que pertence ao mundo da doença pode interessar-se pela cura ou ao menos pela conservação de outrem na mesma medida que um homem sadio...
     Foi uma parte dessas dúvidas e ponderações que Hans Castorp externou à sua maneira, enquanto conversava com Joachim acerca do Berghof e do seu diretor-médico. Mas Joachim objetou que não se sabia se o Dr. Behrens ainda estava enfermo; provavelmente já se curara. Havia muito tempo que começara a clinicar ali; no início como médico particular, adquirindo logo boa reputação como auscultador de ouvido fino e especialista muito seguro de pneumotomia. Depois, o Berghof procurara a sua colaboração: o estabelecimento ao qual o Dr. Behrens se ligara estreitamente fazia mais de um decênio... Ali, nos fundos, ao extremo da ala noroeste do sanatório, ficava situada a sua habitação – o Dr. Krokowski residia não longe dele – e aquela senhora da antiga nobreza, a enfermeira-chefe, à qual Settembrini se referira daquela forma sarcástica, e que Hans Castorp só conhecia de vista, dirigia a casa do viúvo. De resto, o conselheiro áulico vivia sozinho, pois o filho estudava em universidades alemãs, e a filha casara-se com um advogado, na parte francesa da Suíça. O jovem Behrens vinha às vezes de visita durante as férias, o que já ocorrera uma vez desde a chegada de Joachim ao sanatório. O primo contou que, quando isso acontecia, havia grande agitação entre as damas do estabelecimento; as temperaturas subiam; ciumeiras provocavam disputas e querelas nos alpendres de repouso, e na ficha especial do Dr. Krokowski aumentava a frequência...
     Para a sua clínica particular, o assistente recebera uma peça especial, que se encontrava – como a grande sala de consulta, o laboratório, a sala de operações e o serviço de radiografia – no bem iluminado subsolo do edifício. Falamos de subsolo, porque a escada de pedra que conduzia do rés-do-chão para ali despertava realmente a ideia de que se descia a uma espécie de porão, o que, no entanto, era um engano, pois, em primeiro lugar, o rés-do-chão estava situado bastante alto, e ademais o Berghof estava construído num terreno em declive, na encosta da montanha; assim, as peças que compunham esse porão davam para o jardim e o vale. Essas circunstâncias contradiziam e compensavam, em certo modo, o efeito e o sentido daquela escada: quem pensava descer pelos seus degraus, para um lugar mais baixo do que o nível do solo, encontrava-se depois da descida ainda ao nível da terra ou, quando muito, alguns pés abaixo dele – impressão que divertiu Hans Castorp, quando, certa tarde, em que seu primo quis fazer-se pesar pelo massagista, acompanhou-o a essa esfera “subterrânea”. Reinava ali uma claridade e um asseio de hospital; tudo era branco sobre branco, e as portas cintilavam com a alvura do esmalte, inclusive a que conduzia ao gabinete de consultas do Dr. Krokowski, na qual o cartão de visita do sábio se achava fixado por meio de um percevejo. Para chegar a essa porta, era preciso descer mais dois degraus, a partir do corredor, de maneira que a peça situada atrás dela tinha um caráter de calabouço. Ficava ela à direita da escada, na extremidade do corredor, e Hans Castorp observava a com atenção especial, enquanto ia de cá para lá, esperando por Joachim. Viu sair uma pessoa. Era uma senhora, chegada recentemente, cujo nome ele ainda não conhecia, mulher baixinha, graciosa, com franjas na testa e com brincos de ouro. Ao subir os dois degraus, inclinou-se profundamente, arregaçando a saia, ao passo que a outra mão, adornada de anéis, apertava contra a boca um lencinho. Os olhos grandes, turvos, assustados, olhavam para cima, sem nada ver. Assim se dirigiu apressadamente para a escada, a passos curtos, com a saia a farfalhar. De repente estacou, como se se lembrasse de alguma coisa. A seguir pôs-se novamente a andar e desapareceu na escadaria, sempre inclinada para a frente e sem tirar o lencinho dos lábios.
     Quando a porta se abriu, tornou-se patente que a peça, atrás dela, estava muito mais escura do que o corredor branco. A luminosidade de hospital, evidentemente, não chegava até ali. Conforme Hans Castorp verificou, reinava no gabinete analítico do Dr. Krokowski uma meia-luz velada, um profundo crepúsculo.

continua pág 085...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Dúvidas e ponderações 
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Dormiu sobressaltada

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez


continuando...

      Dormiu sobressaltada, vendo o doutor Juvenal Urbino em todos os cantos, vendo-o rir, cantar, despedindo chispas de enxofre pelos dentes com os olhos vendados, troçando dela numa língua sem regras fixas num carro diferente que subia até o cemitério dos pobres. Acordou muito antes de raiar o dia, exausta, e ficou acordada com os olhos fechados pensando nos anos incontáveis que ainda lhe faltavam viver. Depois, enquanto Hildebranda tomava banho, escreveu uma carta a toda pressa, dobrou-a a toda pressa, enfiou-a a toda pressa no envelope, e antes que Hildebranda saísse do banheiro mandou-a por Gala Placídia ao doutor Juvenal Urbino. Era uma carta das suas, sem uma letra a mais ou a menos, na qual só dizia que sim, doutor, que falasse com seu pai.
      Quando Florentino Ariza soube que Fermina Daza ia se casar com um médico de linhagem e fortuna, educado na Europa e com uma reputação rara em sua idade, não houve força capaz de levantá-lo de sua prostração. Trânsito Ariza fez mais do que o possível para consolá-lo com atenções de noiva quando viu que ele tinha perdido a fala e o. apetite e passava as noites em claro chorando sem sossego, e ao fim de uma semana conseguiu que comesse de novo. Falou então com o senhor Leão XII Loayza, o único sobrevivente dos três irmãos, e sem dizer o motivo pediu lhe que desse ao sobrinho um emprego para fazer qualquer coisa na companhia de navegação, contanto que fosse em algum porto perdido nos matos do Madalena, onde não houvesse correio nem telégrafo, nem visse ninguém que lhe contasse nada a respeito desta cidade de perdição. O tio não lhe deu o emprego por consideração com a viúva do irmão, que mal suportava a simples existência do bastardo, mas arranjou para ele o posto de telegrafista na Vila de Leyva, uma cidade de sonho a mais de vinte dias e a quase três mil metros de altura acima do nível da Rua das Janelas.
     Florentino Ariza nunca teve noção clara daquela viagem medicinal. Sempre a lembraria, assim como tudo que aconteceu naquela época, através dos cristais rarefeitos de sua desventura. Ao receber o telegrama da nomeação nem pensou em levá-lo em consideração, mas Lotário Thugut o convenceu com argumentos alemães de que um porvir radiante esperava por ele na administração pública. Disse: "O telégrafo é a profissão do futuro." Deu-lhe de presente um par de luvas forradas com pelo de coelho, um gorro das estepes e um sobretudo com gola de pele provado nos janeiros glaciais da Baviera. O tio Leão XII o presenteou com dois ternos de casimira e umas botas impermeáveis que tinham sido do irmão mais velho, e lhe deu uma passagem com camarote para o próximo navio. Trânsito Ariza reduziu as roupas às medidas do filho, que era menos corpulento que o pai e muito mais baixo que o alemão, e lhe comprou meias de lã e umas ceroulas de corpo inteiro para que não lhe faltasse nada contra os rigores do páramo. Florentino Ariza, endurecido de tanto sofrer, assistia aos preparativos da viagem como um morto teria assistido às disposições tomadas para suas exéquias. Não disse a ninguém que ia embora, não se despediu de ninguém, no mesmo hermetismo férreo com que só à mãe revelou o segredo de sua paixão reprimida, mas na véspera da viagem cometeu consciente uma última loucura do coração que bem poderia ter-lhe custado a vida. Vestiu à meia-noite seu traje de domingo e tocou em solo debaixo do balcão de Fermina Daza a valsa de amor que compusera para ela, que só eles dois conheciam, e que foi durante três anos o emblema de sua cumplicidade contrariada. Tocou-a murmurando a letra, o violino banhado em lágrimas, e com uma inspiração tão intensa que aos primeiros compassos começaram a ladrar os cachorros da rua, e em seguida os da cidade, mas depois se foram calando pouco a pouco graças ao feitiço da música, e a valsa terminou em meio a um silêncio sobrenatural. O balcão não se abriu, nem ninguém assomou à rua, nem mesmo o guarda-noturno que quase sempre acudia com sua lanterna para ver se colhia algum benefício com as sobras das serenatas. O ato foi uma invocação de alívio para Florentino Ariza, pois quando guardou o violino na caixa e se afastou pelas ruas mortas sem olhar para trás já não achava que ia embora na manhã seguinte, e sim que tinha ido embora há muitos anos com a disposição inabalável de não voltar nunca mais.
     O navio, um dos três iguais da Companhia Fluvial do Caribe, tinha sido rebatizado em homenagem ao fundador: Pio Quinto Loayza. Era uma casa flutuante de dois andares de madeira sobre um casco de ferro, largo e chato, com um calado máximo de cinco pés que lhe permitia evitar melhor os fundos variáveis do rio. Os navios mais antigos tinham sido fabricados em Cincinnati em meados do século, no modelo legendário dos que faziam o comércio do Ohio e Mississippi, e tinham a cada lado uma roda de propulsão movida por caldeira de lenha. Como estes, os navios da Companhia Fluvial do Caribe tinham no convés inferior, quase à tona d'água, as máquinas de vapor e as cozinhas, e os grandes cercados de galinheiro onde as tripulações dependuravam as redes, entrecruzadas em diferentes níveis. Tinham no andar superior a cabine de comando, os camarotes do capitão e seus oficiais, e uma sala de recreio e um refeitório, onde os passageiros notáveis eram convidados pelo menos uma vez para jantar e jogar cartas. No andar intermediário havia seis camarotes de primeira classe em ambos os lados de um passadiço que servia de refeitório comum, e na proa uma sala de estar aberta sobre o rio com gradis de madeira rendada e pilastras de ferro, onde dependuravam à noite suas redes os passageiros da plebe. No entanto, ao contrário dos mais antigos, estes navios não tinham as pás de propulsão a cada lado, e sim uma enorme roda na popa com pás horizontais debaixo dos reservados sufocantes do convés de passageiros. Florentino Ariza não se dera o trabalho de explorar o navio logo que subiu a bordo, um domingo de julho às sete da manhã, como faziam quase por instinto os que viajavam pela primeira vez. Só teve noção de sua nova realidade ao entardecer, navegando diante do casario de Calamar, quando foi urinar na popa e viu pela vigia do reservado a gigantesca roda de grandes tábuas girando debaixo de seus pés num estrondo vulcânico de espumas e vapores ardentes.
     Nunca tinha feito uma viagem. Carregava um baú de folha com as roupas do páramo, os romances ilustrados que comprava em folhetins mensais e que ele próprio costurava em capas de papelão, e os livros de versos de amor que recitava de cor e que estavam a ponto de virar pó de tanto ser relidos. Deixara para trás o violino, que se identificava demasiado com sua desgraça, mas a mãe o obrigara a levar o chamado petate, trouxa de dormir muito popular e prática: um travesseiro, um lençol, uma bacia de estanho e um toldo de filo contra os mosquitos, tudo isso enrolado numa esteira amarrada com duas cordas de pita para se pendurar uma rede em caso de urgência. Florentino Ariza não queria levá-lo, pois achava que seria uma inutilidade num camarote que incluía o uso de camas, mas desde a primeira noite teve que agradecer uma vez mais o bom senso da mãe.
      Com efeito, à última hora subiu a bordo um passageiro em traje de etiqueta que havia chegado em navio da Europa aquela madrugada, e estava acompanhado do governador da província em pessoa. Queria continuar a viagem sem perda de tempo com a esposa e a filha, e com o criado de libré e os sete baús com frisos dourados equilibrados a duras penas pelas escadas. O capitão, um gigante de Curaçau, conseguiu tocar o sentido patriótico dos naturais da terra para acomodar os viajores imprevistos. A Florentino Ariza explicou numa salada de castelhano e dialeto de Curaçau que o homem vestido a rigor era o novo ministro plenipotenciário da Inglaterra em viagem para a capital da república, lembrou que aquele reino fornecera recursos decisivos para nossa independência do domínio espanhol, e por conseguinte qualquer sacrifício era pouco para que uma família de tão alta dignidade se sentisse em nossa casa melhor do que na própria. Florentino Ariza, é claro, renunciou ao camarote.
     No princípio não se queixou, pois o caudal do rio era abundante naquela época do ano, e o navio navegou sem tropeços as duas primeiras noites. Depois do jantar, às cinco da tarde, a tripulação distribuía entre os passageiros camas de armar com fundo de lona, e cada um abria a sua onde podia, a arrumava com os panos do seu petate e instalava por cima o mosquiteiro de filo. Os que tinham rede penduravam na no salão, e os que não tinham nada dormiam em cima das mesas do refeitório e se cobriam com as toalhas de mesa que não eram mudadas mais de duas vezes durante a viagem. Florentino Ariza velava a maior parte da noite, acreditando ouvir a voz de Fermina Daza na brisa fresca do rio, apascentando a solidão com a lembrança dela, ouvindo-a cantar na respiração do navio que avançava nas trevas com passos de bicho grande, até que apareciam as primeiras franjas rosadas no horizonte e o novo dia rebentava de repente sobre campinas desertas e pântanos de névoa. A viagem lhe parecia então mais uma prova da sabedoria de sua mãe, e se sentia com ânimo de sobreviver ao esquecimento.
      Ao fim de três dias de boas águas, porém, a navegação ficou mais difícil entre bancos de areia intempestivos e turbulências enganosas. O rio ficou turvo e foi estreitando mais e mais numa selva emaranhada de árvores colossais, onde só se encontrava de vez em quando uma choça de palha junto às pilhas de lenha para a caldeira dos navios. A algaravia dos louros e o escândalo dos micos invisíveis pareciam aumentar o mormaço do meio-dia. Mas de noite era preciso amarrar o navio para dormir, e então se tornava insuportável o simples fato de estar vivo. Ao calor e aos pernilongos se acrescentava o mau cheiro das tiras de carne salgada postas a secar pela balaustrada do navio. A maioria dos passageiros, sobretudo os europeus, abandonavam o podredouro dos camarotes e passavam a noite andando pelos conveses, espantando toda a classe de insetos com a mesma toalha com que secavam o suor incessante, e amanheciam exaustos e alastrados de picadas.
      Além disso, naquele ano estourara mais um episódio da guerra civil intermitente entre liberais e conservadores, e o capitão tomara precauções muito severas para a ordem interna e a segurança dos passageiros. Procurando evitar equívocos e provocações, proibiu a distração favorita das viagens daquele tempo, que era atirar contra os jacarés que apanhavam sol nas praias da beira do rio. Mais adiante, quando alguns passageiros se dividiram em dois bandos inimigos no curso de uma discussão, confiscou as armas de todos com o compromisso de honra de devolvê-las ao término da viagem. Foi inflexível inclusive com o ministro britânico, que no dia seguinte à partida amanheceu vestido de caçador, com uma carabina de precisão e um fuzil de dois canos de matar tigres. As restrições se tornaram ainda mais drásticas para lá do porto de Tenerife, onde cruzaram com um navio que desfraldava a bandeira amarela da peste. O capitão não conseguiu obter nenhuma informação sobre aquele sinal alarmante, porque o outro navio não respondeu aos seus sinais. Mas nesse mesmo dia encontraram outro com carga de gado para a Jamaica, e este informou que o navio com a bandeira da peste levava dois doentes de cólera, e que a epidemia causava estragos no trecho do rio que ainda lhes faltava navegar. Então foi proibido aos passageiros deixar o navio não só nos portos seguintes como ainda nos lugares despovoados onde arribava para carregar lenha. De modo que no restante da viagem até o porto final, que durou outros seis dias, os passageiros contraíram hábitos carcerários. Entre estes, a contemplação perniciosa de um pacote de postais pornográficos holandeses que circulou de mão em mão sem que se soubesse de onde saíra, ainda que nenhum veterano do rio ignorasse que os cartões não passavam de mostruário da legendária coleção do capitão, Mas até essa distração sem futuro acabou por aumentar o tédio.
     Florentino Ariza aguentou os rigores da viagem com a paciência mineral que desolava sua mãe e exasperava seus amigos. Não se relacionou com ninguém. Os dias lhe corriam fáceis enquanto se sentava junto à amurada olhando os jacarés imóveis tomando sol nas praias com as mandíbulas abertas para pegar borboletas, olhando os bandos de garças assustadas que erguiam voo nos charcos, os peixes-boi que amamentavam as crias nas grandes tetas maternais e surpreendiam os passageiros com seus prantos de mulher. Num único dia viu passarem boiando três corpos humanos, inchados e verdes, com vários urubus em cima. Passaram primeiro os corpos de dois homens, um deles sem cabeça, em seguida o de uma menina de poucos anos cujos cabelos de medusa ficaram ondulando na esteira do navio. Nunca soube, porque nunca se sabia, se eram vítimas do cólera ou da guerra, mas as exalações nauseabundas contaminaram em sua memória a lembrança de Fermina Daza.
      Era sempre assim: qualquer acontecimento, bom ou mau, tinha alguma relação com ela. À noite, quando se atracava o navio e a maioria dos passageiros caminhava sem alívio pelos conveses, ele repassava quase de memória os folhetins ilustrados debaixo do lampião de gás do refeitório, que era a única luz acesa até o amanhecer, e os dramas tantas vezes relidos recobravam a magia original quando substituía os protagonistas imaginários por conhecidos seus da vida real, e reservava para ele mesmo e para Fermina Daza os papéis de amores impossíveis. Outras noites lhe escrevia cartas de angústia, cujos fragmentos espargia em seguida nas águas que corriam sem cessar para ela. E assim passava as horas mais duras, encarnado às vezes num príncipe tímido ou num paladino do amor, e por outras vezes na sua própria pele escaldada de amante esquecido, até que se levantavam as primeiras brisas e ele se punha a dormitar sentado nas poltronas da amurada.
      Certa noite em que interrompeu a leitura mais cedo que de costume, dirigia-se distraído para as privadas quando uma porta se abriu ao passar ele pelo refeitório deserto, e uma mão de falcão o agarrou pela manga da camisa e o fechou num camarote. Mal chegou a sentir o corpo sem idade de uma mulher nua nas trevas, empapada em suor quente e com a respiração ofegante, que o empurrou de barriga para cima no beliche, lhe abriu a fivela do cinturão, soltou os botões e se desmembrou toda, acavalada em cima dele, e o despojou sem glória da virgindade. Ambos rolaram agonizantes no vazio de um abismo sem fundo que cheirava como um alagado de camarões. Ela se deixou ficar em seguida jazendo sobre ele, resfolegando sem ar, e deixou de existir na escuridão.

 — Agora, vá embora e esqueça — disse. — Isto não sucedeu nunca.

     O ataque tinha sido tão rápido e triunfante que não se podia explicá-lo como uma loucura súbita do tédio, e sim como fruto de um plano elaborado com todo o vagar e até nos seus pormenores minuciosos. Esta certeza esmagadora aumentou a ansiedade de Florentino Ariza, que no auge do gozo tinha tido uma revelação na qual não podia acreditar, que se negava mesmo a admitir, e era que o amor ilusório de Fermina Daza podia ser substituído por uma paixão terrena. Por isso se empenhou em descobrir a identidade da violadora mestra em cujo instinto de pantera encontraria talvez o remédio para sua desventura. Mas não conseguiu. Ao contrário, quanto mais aprofundava a pesquisa mais longe se sentia da verdade.
      O ataque tinha sido no último camarote, mas este se comunicava com o penúltimo por uma porta intermediaria, de maneira que os dois se convertiam num dormitório familiar com quatro beliches. Ali viajavam duas mulheres jovens, outra bastante mais velha mas muito atraente à vista, e uma criança de poucos meses. Haviam embarcado em Barranco de Loba, o porto onde se recolhia a carga e os passageiros da cidade de Mompox desde que esta ficou à margem dos itinerários de vapores devido às veleidades do rio, e Florentino Ariza tinha reparado nelas porque traziam o menino adormecido dentro de uma grande gaiola de pássaros.
      Viajavam vestidas como nos transatlânticos da moda, com armação debaixo das saias de seda, golas de renda e chapéus de abas grandes enfeitadas com flores de crinolina, e as duas mais moças mudavam o traje completo várias vezes por dia, de modo que pareciam carregar em si mesmas sua própria atmosfera primaveril, enquanto os demais passageiros sufocavam de calor. As três eram destras no manejo das sombrinhas e dos leques de plumas, mas com os propósitos indecifráveis das moças de Mompox da época. Florentino Ariza não conseguiu sequer precisar a relação entre elas, embora fossem sem dúvida da mesma família. A princípio achou que a mais velha podia ser mãe das outras, mas logo percebeu que não tinha idade para tanto, e além disso guardava um meio luto que as outras não compartilhavam. Não concebia que uma delas tivesse feito o que fez enquanto as outras dormiam nos beliches contíguos, e a única suposição razoável era de que aproveitara um momento casual, ou talvez combinado, em que ficara sozinha no camarote. Comprovou que às vezes saíam duas a tomar a fresca até muito tarde enquanto a terceira ficava cuidando da criança, mas certa noite de mais calor saíram as três juntas com o menino adormecido na gaiola de vime coberta com um toldo de gaze.

continua na página 109...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Dormiu sobressaltada
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

Histórias da Meia-Noite: Ponto de vista (VII)

Ponto de vista

Machado de Assis

Conto

PONTO DE VISTA

 

Capítulo VII
À MESMA

Corte, 20 de dezembro 


     Tem razão; pareço ingrata. Há quase um mês que lhe não escrevo, apesar de ter recebido já duas cartas. Seria longo explicar esta demora, e eu infelizmente não tenho tempo para tanto, porque estão aqui, alguns dias, as primas Alvarengas. 
     Com que então, você confessa que apenas me quis experimentar? Eu logo vi que ninguém lhe poderia dizer semelhante coisa a respeito do Dr. Alberto.
     O casamento da Mariquinhas está marcado para véspera de Reis. Iremos assistir ao sacrifício. Desculpe-me, Luísa; bem sabe como sou sarcástica, e às vezes... Desculpe-me, sim?
     E todavia, quer saber uma coisa? Mudei de opinião a certo respeito. Hoje penso que antes o pai que o filho. Que espírito frívolo! que sujeito superficial e tolo é o tal Alberto! O pai é grave e sabe ser amável; e é amável sem deixar de ser grave. Tem uma distinção própria, uma conversa animada, é engenhoso e sagaz.
     Mil vezes o velho... para ela.
     Pergunta-me o que farei eu no caso de nunca encontrar o ideal que procuro? Já lhe disse: nesse caso fico solteira. O casamento é uma grande coisa, é a flor dos estados, concordo; mas é mister que não seja um cativeiro, e cativeiro é tudo o que não realiza as nossas aspirações íntimas.
     Agradeço os seus conselhos, mas quer que lhe diga? Você fala como quem é feliz; parece-lhe que o casamento, quaisquer que sejam as condições, é um antegosto do paraíso.
     Creio que nem sempre há de ser assim.
     Verdade é que, dependendo as coisas das impressões de cada um, a Mariquinhas pode ser feliz, visto que o marido que escolheu parece falar lhe ao coração. Não o nego; mas, nesse caso, continuo a lastimá-la, porque (repito) não compreendo a união de uma flor com uma carapuça. E não escrevo mais por não dizer mal dela. Perdoe-me você estas tolices, e creia que sou amiga, agora e sempre.

RAQUEL
 
continua na página 95...
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Histórias da Meia-Noite: Ponto de vista (VII)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873 

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Expedição Moreira César: I - Primeira expedição regular

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1



Expedição Moreira César

continuando...

Primeira expedição regular  

     Deferindo ao convite que lhe fora feito, o coronel Moreira César seguiu a 3 de fevereiro para a Bahia, levando o batalhão que comandava, o 7.° de Infantaria, entregue à direção do major Rafael Augusto da Cunha Matos; uma bateria do 2.° Regimento de Artilharia, comandada pelo capitão José Agostinho Salomão da Rocha; e um esquadrão do 9.° de Cavalaria, do capitão Pedreira Franco.
     Era o núcleo da brigada de três armas, que se constituiu logo com a celeridade que as circunstâncias demandavam, ligando-se-lhe três outros corpos, desfalcados tolos: o 16.°, que estava em S. João d'El-Rei, de onde abalou dirigido pelo coronel Sousa Meneses, com 28 oficiais e 290 praças; cerca de 140 soldados do 33.°, o 9.°, de Infantaria, do coronel Pedro Nunes Tamarindo e pequenos contingentes da força estadual baiana. 
     O chefe expedicionário não se demorou na Bahia. Recolhida toda a força que lá estava, prosseguiu imediatamente para Queimadas, onde, cinco dias apenas depois que partira da capital da República, a 8 de fevereiro, estava toda a expedição reunida — quase 1.300 combatentes, fartamente municiados, com 15 milhões de cartuchos e setenta tiros de artilharia. 
     A mobilização fora, como se vê, um prodígio de rapidez. Continuou rápida. Deixando em Queimadas, "1.ª base de operações", sob o comando de um tenente, platônica guarnição de oitenta doentes e setenta crianças, que não suportavam o peso das mochilas, seguiu o grosso da tropa para a ''2.a base de operações", Monte Santo, onde a 20 estava pronta para a investida. 
     Chegara, porém, mal auspiciada. Um dia antes a enervação doentia do comandante explodira numa convulsão epileptiforme, em plena estrada, antes do sítio de Quirinquinquá; e fora de caráter tal que os cinco médicos do corpo de saúde previram uma reprodução de lastimáveis consequências. Os principais chefes de corpos, porém, bem que cientes de um diagnóstico, que implicava seriamente a firmeza e as responsabilidades do comando geral ante as condições severas da luta, forraram-se, cautelosos e tímidos, à menor deliberação a respeito.  
     O coronel Moreira César abeirava-se do objetivo da campanha condenado pelos próprios médicos que comandava.
     É natural que não fossem as operações concertadas com a indispensável lucidez e que as inquinassem, desde o primeiro passo nos caminhos, todos os erros e inexplicáveis descuidos e ine xplicável olvido de preceitos rudimentares, já rudemente corrigidos ou expostos com a maior clareza nos desastres anteriores. Nada se resolveu de acordo com as circunstâncias especialíssimas da empresa. Ficou dominando todas as decisões um plano único, um plano de delegado policial enérgico: lançar a marche-marche mil e tantas baionetas dentro de Canudos.
     Isto no menor tempo possível. Os engenheiros militares Domingos Alves Leite e Alfredo do Nascimento, tenentes do Estado-maior de 1ª classe, adidos à brigada, tiveram uma semana para reconhecer a paragem desconhecida e áspera. Na exiguidade de tal prazo não Ihes era possível a escolha de pontos estratégicos, que firmassem uma linha de operações indispensáveis. O vertiginoso mesmo dos levantamentos militares estava aquém dessa missão de afogadilho, adstrita a trianguladas fantásticas — bases medidas a olho, visadas divagantes pelos topos indistintos das serras, distâncias averbadas nos ponteiros dos podômetros presos às botas dos operadores apressados. Estes esclareciam-se inquirindo os raros habitantes dos lugares percorridos: era o arquivar longuras calcadas numa unidade traiçoeira, a légua, de estimativa exagerada pelo amor-próprio do matuto vezado às caminhadas longas; rumos desesperadamente embaralhados ou linhas de ensaios em que um erro de cinco graus era um primor de rigorismo; informes sobre acidentes, contextura do solo e aguadas, de existência problemática e dúbia.
     Subordinaram ao comandante o levantamento feito. Foi, sem maior exame, aprovado.
     De acordo com ele escolheu-se a nova estrada. Envolvente a do Cambaio, pelo levante, e mais longa de nove ou dez léguas, tinha, ao que se figurava, a vantagem de se arredar da zona montanhosa. Largando de Monte Santo, as forças demandariam o arraial do Cumbe no rumo seguro de ESE, e, atingindo este, infletindo, rota em cheio para o norte, fraldejando as abas da serra de Aracati, em marcha contornante, a pouco e pouco rumando a NNO, iriam interferir no sítio do Rosário a antiga estrada de Maçacará. Escolhido este caminho não se cogitou de o transformar em linha de operações, pela escolha de dois ou três pontos defensáveis, garantidos de guarnições que, mesmo diminutas, pudessem estear a resistência, dado que houvesse um insucesso, um recuo ou uma retirada.


Crítica

     Ninguém cogitava na mais passageira hipótese de um revés. A exploração realizada fora até um transigir dispensável com as velharias da estratégia: bastava o olhar perspícuo do guia, capitão Jesuíno, para aclarar a rota.
     Sabia-se, no entanto, que esta atravessaria longos trechos de caatingas exigindo aberturas de picadas, e extenso areal de quarenta quilômetros onde, naquela quadra, na plenitude do estio, não se compreendia a viagem sem que os combatentes fossem arcando sob carregamento de água, a exemplo das legiões romanas na Tunísia. Para obviar este inconveniente, levaram uma bomba artesiana, como se fossem conhecidas as camadas profundas da terra pelos que lhe ignoravam a própria superfície, e houvesse, entre as fileiras, argutos rabdomantes capazes de marcar, com a varinha misteriosa, o ponto exato em que existisse o lençol líquido a aproveitar-se. Veremos a sua função mais longe.
     Entretanto ia-se marchar o desconhecido, por veredas desfrequentadas, porque todas as travessias por ali se resumem no trecho de uma estrada secular, a de Bom Conselho a Jeremoabo, contornando e evitando pelo levante os agros tabuleiros que lhe demoram ao norte, e descem insensivelmente para o Vaza-Barris, formando no ligeiro divortium aquarum, entre este e o Itapicuru, desmedidos areais sem o mais exíguo regato, porque absorvem, numa sucção de esponja, os mais impetuosos aguaceiros.
     A jornada pressupunha-se longa e inçada de tropeços: 150 quilômetros, um mínimo de 25 léguas, que valiam por uma longura décupla, ante o despovoamento e a maninhez da terra. Era natural que se garantisse ao menos a pretensa base de operações, para que se não insulasse inteiramente a tropa no deserto. Apesar disto, Monte Santo, com as suas péssimas condições de defesa, dominada pela serrania a prumo, de onde meia dúzia de inimigos podiam batê-la toda, a salvo, ficaria sob o comando do coronel Meneses com uma guarnição deficiente de poucas dezenas de praças. De sorte que os jagunços poderiam facilmente tomá-la, enquanto o resto da tropa seguisse para Canudos. Não o fizeram. Mas era de presumir que o fizessem, porque lá chegavam informes acordes todos no assegurar que os sertanejos se aparelhavam fortemente para a luta.


Cresce a população de Canudos

     Eram certas as notícias.
     Canudos aumentara em três semanas de modo extraordinário. A nova do último triunfo sobre a expedição Febrônio, avolumada pelos que a espalhavam, romanceada já de numerosos episódios, destruíra as últimas vacilações dos crentes que até então tinham temido procurar o falanstério de Antônio Conselheiro.
     Como nos primeiros tempos da fundação, a todo o momento, pelo alto das colinas, apontavam grupos de peregrinos em demanda da paragem lendária — trazendo tudo, todos os haveres; muitos carregando em redes os parentes enfermos, moribundos ansiando pelo último sono naquele solo sacrossanto, ou cegos, paralíticos e lázaros, destinando-se ao milagre, à cura imediata, a um simples gesto de taumaturgo venerado. Eram, como sempre, toda a sorte de gente: pequenos criadores, vaqueiros crédulos e possantes, de parceria, na mesma congérie, com os vários tipos da mangalaça sertaneja; ingênuas mães de família, irmanadas a zabaneiras incorrigíveis e trêfegas. No coice dessas procissões, viam-se, invariavelmente, sem compartirem das litanias entoadas, estranhos, seguindo sós, como de sobre-rolda ao movimento dos fiéis, os bandidos soltos —capangas em disponibilidade, procurando um teatro maior à índole aventureira e à valentia impulsiva. No correr do dia pelas estradas de Calumbi, de Maçacará, de Jeremoabo e de Uauá, convergindo dos quadrantes, chegavam cargueiros repletos de toda a sorte de mantimentos, enviados diretamente a Canudos pelos adeptos que de longe o avitualhavam, em Vila Nova da Rainha, Alagoinhas, em todos os lugares. Havia abastança e um entusiasmo forte.


Como aguardam os jagunços a nova expedição 

     Logo ao apontar da manhã distribuíam-se os trabalhos. Não faltavam braços; havia-os até de sobra. Destacavam-se piquetes vigilantes, de vinte homens cada um, ao mando de cabecilha de confiança, para vários pontos de acesso — em Cocorobó, junto à confluência do Macambira, na baixada das Umburanas e no alto da Favela, a fim de renderem os que ali haviam atravessado a noite, velando. Seguiam para as insignificantes plantações, estiradas pelas duas margens do rio, os que na véspera já tinham pago o tributo de se entregarem ao serviço comum. Dirigiam-se para as obras da igreja, outro; e outros — os mais ardilosos e vivos — para mais longe, para Monte Santo, para o Cumbe, para Queimadas, em comissões delicadas, indagando acerca dos novos invasores, confabulando com os fiéis que naquelas localidades se afrontavam com a vigilância das autoridades, adquirindo armamentos, ajeitando contrabandos afinal fáceis de serem feitos, espiando tudo, de tudo inquirindo cautelosamente.
     E partiam felizes. Pelos caminhos fora passavam pequenos grupos ruidosos, carregando armas ou ferramentas de trabalho, cantando. Olvidavam os morticínios anteriores. No ânimo de muitos repontava a esperança de que os deixariam, afinal, na quietude da existência simples do sertão.


Trincheiras 

     Os chefes, porém, não se iludiam. Premunidos de cautelas, concertaram na defesa urgente. Pelos dias ardentes, viam-se os sertanejos esparsos sobre o alto dos cerros e à ourela dos caminhos, rolando, carregando ou amontoando pedras, rasgando a terra a picareta e a enxada numa faina incessante. Construíam trincheiras.
     O sistema era, pela rapidez, um ideal de fortificação passageira: aberta cavidade circular ou elíptica, em que pudesse ocultar-se e mover-se à vontade o atirador, bordavam-na de pequenos espaldões de pedras justapostas, com interstícios para se enfiar o cano das espingardas. As placas de talcoxisto, facilmente extraídas com todas as formas desejadas, facilitavam a tarefa. Explicam o extraordinário número desses fojos tremendos que progredindo, regularmente intervalados, para todos os rumos, crivando a terra toda em roda de Canudos, semelhavam canhoneiras incontáveis de uma fortaleza monstruosa e sem muros. Eram locadas, cruzando os fogos sobre as veredas, de tal modo que, sobretudo nos longos trechos onde aquelas seguem aproveitando o leito seco dos riachos, tornavam dificílima a travessia à tropa mais robusta e ligeira. E como previssem que esta, procurando escapar àquelas passagens perigosas, volvesse aos lados assaltando e conquistando as trincheiras que as orlavam, fizeram próximas, no alto das barrancas, outras mais distantes e identicamente dispostas, em que se pudessem acolher e continuar o combate os atiradores repelidos. De sorte que, seguindo pelos caminhos ou abandonando-os, os antagonistas seriam sempre colhidos numa rede de balas.
     É que os rebeldes dispensavam quaisquer ensinamentos para estes preparativos. A terra era um admirável modelo: serrotes empinando-se em redutos, rios escavando-se em passagens cobertas e fossos; e, por toda a parte, as caatingas trançadas em abatises naturais. Escolhiam os arbustos mais altos e frondosos. Trançavam-lhes jeitosamente os galhos interiores, sem lhes desfazer a fronde, de modo a se formar, dois metros sobre o chão, pequeno jirau, suspenso, capaz de suportar comodamente um ou dois atiradores invisíveis, ocultos na folhagem. Eram uma usança avoenga aqueles mirantes singulares com os quais desde muito vezavam tocaiar os canguçus bravios. Os mutãs dos indígenas intercalavam-se, deste modo, destacadamente , completando o alinhamento das trincheiras. Ou então dispositivos mais sérios. Descobriam um cerro coroado de grandes blocos redondos, em acervos. Desentupiam as suas junturas e as largas brechas, onde viçavam cardos e bromélias; abriam-nas como postigos estreitos, mascarados de espessos renques de gravatás; limpavam depois os repartimentos interiores; e moviam-se, por fim, folgadamente, entre os corredores do monstruoso blocausse dominante sobre as várzeas e os caminhos, e de onde podiam, sem riscos, alvejar os mais remotos pontos.


Armas 

     Não ficavam nisto os preparativos. Reparavam-se as armas. No arraial estrugia a orquestra estridente das bigornas, à cadência dos malhos e marrões: enrijando e maleando as foices entortadas; aguçando e aceirando os ferrões buídos; temperando as laminas largas das facas de arrasto, compridas como espadas; retesando os arcos, que lembram uma transição entre as armas dos selvagens e a antiga besta de polé; consertando a fecharia perra das velhas espingardas e garruchas. E das tendas abrasantes irrompia um ressoar metálico de arsenais ativos.


Pólvora 

     Não era suficiente a pólvora adquirida nas vilas próximas, faziam-na: tinham o carvão, tinham o salitre, apanhado à flor da terra mais para o norte, junto ao S. Francisco, e tinham, desde muito, o enxofre. O explosivo surgia perfeito, de uma dosagem segura, rivalizando bem com os que adotavam nas caçadas.


Balas 

     Não faltavam balas. A goela larga dos bacamartes aceitava tudo: seixos rolados, pedaços de pregos, pontas de chifres, cacos de garrafas, esquírolas de pedras.


Lutadores 

     Por fim não faltavam lutadores famanazes cujas aventuras de pasmar corriam pelo sertão inteiro.
     Porque a universalidade do sentimento religioso, de par com O instinto da desordem, ali agremiara não baianos apenas senão filhos de todos os Estados limítrofes. Entre o jagunço do S. Francisco e o cangaceiro do Cariris, surgiam, sob todos os matizes, os valentões tradicionais dos conflitos sertanejos, variando até então apenas no nome, nas sedições parceladas, dos "calangros", dos "balaios" ou dos "cabanos".
     Correra nos sertões um toque de chamada...


João Abade

     Dia a dia chegavam ao arraial singulares recém-vindos, absolutamente desconhecidos. Vinham "debaixo do cangaço": a capanga atestada de balas e o polvarinho cheio; a garrucha de dois canos atravessada à cinta, de onde pendia a "parnaíba" inseparável; à bandoleira, o clavinote de boca-de-sino. Nada mais. Entravam pelo largo, sem que lhes indagassem a procedência, como se fossem antigos conhecidos. Recebia-os o astuto João Abade que, pleiteando-lhes parelhas na turbulência, tinha a ascendência de uma argúcia rara e uns laivos de superioridade mental, graças talvez à circunstância de haver estudado no liceu de uma das capitais do Norte, de onde fugira após haver assassinado a noiva, o seu primeiro crime. O certo é que os dominava e disciplinava. "Comandante da rua", título inexplicável naquele labirinto de bitesgas, sem abandonar o povoado exercia-lhe absoluto domínio que estendia pela redondeza, num raio de cinco léguas em volta, percorrida continuamente pelas rondas velozes dos piquetes.
     Obedeciam-no incondicionalmente. Naquela dispersão de ofícios, múltiplos e variáveis, onde ombreavam o tabaréu crendeiro e o facínora despejado, estabelecera-se raro entrelaçamento de esforços; e a mais perfeita conformidade de vistas volvidas para um objetivo único: reagir à invasão iminente.
     Houve, todavia, segundo o revelaram alguns prisioneiros no termo da campanha, uma parada súbita na azáfama guerreira, um como sobressalto, estuporando a grei revoltosa e pondo-a a pique de dissolução repentina: foi quando, voltando dos diversos pontos os emissários, que tinham ido indagar sobre a marcha invasora, trouxeram, a par de informações seguras quanto ao número e armamentos dos soldados, o renome do novo comandante.
     Imobilizou a atividade febril dos jagunços a síncope de um espanto extraordinário. Exagerara-se demais na distensão das mais extravagantes fantasias a temibilidade daquele. Era o anti-Cristo, vindo jungir à derradeira prova os penitentes infelizes. Imaginaram-no herói de grande número de batalhas, quatorze como especificou um rude poeta sertanejo, no canto que depois consagrou à campanha; e prefiguraram a devastação dos lares, dias de torturas sem nome, a par duríssimos tratos. Canudos dissolvido a bala, a fogo, e a espada...
     Deram-lhe um apelido lúgubre —"Corta-cabeças"...
     Segundo depois se soube, nenhuma das expedições foi aguardada com ansiedade igual. Houve mesmo algumas deserções, rareando principalmente as fileiras que deviam tornar-se mais fortes, a dos adventícios perigosos que para lá iam não já sob o estímulo de uma crença senão pelo anelo dos desmandos e dos conflitos. Os piquetes, ao tornarem dos arredores, chegavam desfalcados de alguns daqueles sinistros companheiros.
     Mas esse movimento de temor redundara em movimento seletivo. Expungira o arraial de incrédulos e tímidos. A grande maioria dos verdadeiros crentes permaneceu resignada.


Procissões 

     Desinfluído embora, o povo volvera-se para a última instância da fé religiosa. E não raro, então, atirando para o lado as armas emperradas, o arraial inteiro saía em longas procissões de penitência pelos descampados.
     Cessaram, de chofre, os contingentes de peregrinos. Cessou o mourejar febril dos preparativos bélicos. Os piquetes que diariamente, ao clarear das manhãs, seguiam para diversos pontos, não mais passavam pelas veredas entoando as cantigas altas e festivas; embrenhavam-se, cautos, pelas moitas, quedando-se largas horas, silenciosos, vigilantes.


Rezas

     Nesta situação aflitíssima, saiu a campo, alentando os combatentes robustos mas apreensivos, a legião fragílima da beataria numerosa. Ao anoitecer, acesas as fogueiras, a multidão, genuflexa, prolongava além do tempo consagrado, as rezas, dentro da latada.
     Esta, entressachada de ramas aromáticas de caçatinga, tinha, extremando-a, à porta do santuário, uma pequena mesa de pinho coberta de toalha alvíssima.
     Abeirava-a, ao findar dos terços, uma figura estranha.
     Revestido da longa camisa de azulão, que lhe descia, sem cintura, desgraciosamente, escorrida pelo corpo alquebrado abaixo; torso dobrado, fronte abatida e olhos baixos, Antônio Conselheiro aparecia. Quedava longo tempo, imóvel e mudo, ante a multidão silenciosa e queda. Erguia lentamente a face macilenta, de súbito iluminada por olhar fulgurante e fixo. E pregava.
     A noite descia de todo e o arraial repousava sob o império do evangelista humílimo e formidável...

continua na página 183...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

domingo, 29 de setembro de 2024

Conto: A criada

Clarice Lispector 


Comecemos a semana com Clarice 


Carlos Eduardo Valente




     Seu nome era Eremita. Tinha dezenove anos. Rosto confiante, algumas espinhas. Onde estava a sua beleza? Havia beleza nesse corpo que não era feio nem bonito, nesse rosto onde uma doçura ansiosa de doçuras maiores era o sinal da vida.
     Beleza, não sei. Possivelmente não havia, se bem que os traços indecisos atraíssem como água atrai. Havia, sim, substância viva, unhas, carnes, dentes, mistura de resistências e fraquezas, constituindo vaga presença que se concretizava porém imediatamente numa cabeça interrogativa e já prestimosa, mal se pronunciava um nome: Eremita. Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. Tão independentes como se fossem plantados na carne de um braço, e de lá nos olhassem - abertos, úmidos. Ela toda era de uma doçura próxima a lágrimas.
      Às vezes respondia com má-criação de criada mesmo. Desde pequena fora assim, explicou. Sem que isso viesse de seu caráter. Pois não havia no seu espírito nenhum endurecimento, nenhuma lei perceptível. "Eu tive medo", dizia com naturalidade. "Me deu uma fome", dizia, e era sempre incontestável o que dizia, não se sabe por quê. "Ele me respeita muito", dizia do noivo e, apesar da expressão emprestada e convencional, a pessoa que ouvia entrava num mundo delicado de bichos e aves, onde todos se respeitam. "Eu tenho vergonha", dizia, e sorria enredada nas próprias sombras. Se a fome era de pão - que ela comia depressa como se pudessem tirá-lo - o medo era de trovoadas, a vergonha era de falar. Ela era gentil, honesta. "Deus me livre, não é?", dizia ausente.
     Porque tinha suas ausências. O rosto se perdia numa tristeza impessoal e sem rugas. Uma tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos paravam vazios; diria mesmo um pouco ásperos. A pessoa que estivesse a seu lado sofria e nada podia fazer. Só esperar.
     Pois ela estava entregue a alguma coisa, a misteriosa infante. Ninguém ousaria tocá-la nesse momento. Esperava-se um pouco grave, de coração apertado, velando-a. Nada se poderia fazer por ela senão desejar que o perigo passasse. Até que num movimento sem pressa, quase um suspiro, ela acordava como um cabrito recém-nascido se ergue sobre as pernas. Voltara de seu repouso na tristeza.
     Voltava, não se pode dizer mais rica, porém mais garantida depois de ter bebido em não se sabe que fonte. O que se sabe é que a fonte devia ser antiga e pura. Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - a floresta.
      Ah, então devia ser esse o seu mistério: ela descobrira um atalho para a floresta. Decerto nas suas ausências era para lá que ia. Regressando com os olhos cheios de brandura e ignorância, olhos completos. Ignorância tão vasta que nela caberia e se perderia toda a sabedoria do mundo.
     Assim era Eremita. Que se subisse à tona com tudo o que encontrara na floresta seria queimada em fogueira. Mas o que vira - em que raízes mordera, com que espinhos sangrara, em que águas banhara os pés, que escuridão de ouro fora a luz que a envolvera - tudo isso ela não contava porque ignorava: fora percebido num só olhar, rápido demais para não ser senão um mistério.
     Assim, quando emergia, era uma criada. A quem chamavam constantemente da escuridão de seu atalho para funções menores, para lavar roupa, enxugar o chão, servir a uns e outros.
     Mas serviria mesmo? Pois se alguém prestasse atenção veria que ela lavava roupa - ao sol; que enxugava o chão - molhado pela chuva; que estendia lençóis - ao vento. Ela se arranjava para servir muito mais remotamente, e a outros deuses. Sempre com a inteireza de espírito que trouxera da floresta. Sem um pensamento: apenas corpo se movimentando calmo, rosto pleno de uma suave esperança que ninguém dá e ninguém tira.
     A única marca do perigo por que passara era o seu modo fugitivo de comer pão. No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera nas suas florestas.

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Por aqueles dias

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez


continuando...

      Por aqueles dias chegou um fotógrafo belga que instalou seu estúdio no Portal dos Escrivães, e quem quer que tivesse com que pagar-lhe o trabalho aproveitou a ocasião para tirar um retrato. Fermina e Hildebranda foram das primeiras. Esvaziaram o guarda-roupa de Fermina Sánchez, repartiram as roupas mais vistosas, as sombrinhas, os sapatos de festa, os chapéus, e se vestiram de damas da metade do século. Gala Placídia as ajudou a apertar os corpetes, ensinou-as a andar dentro das armações de arame das anquinhas, a calçar as luvas, a abotoar os botins de salto alto. Hildebranda preferiu um chapéu de abas grandes com penas de avestruz que lhe caíam sobre as costas. Fermina pôs um mais recente, enfeitado de frutas de gesso pintado e flores de crinolina. Acabaram troçando de si mesmas vendo-se no espelho tão semelhantes aos daguerreótipos das avós e saíram felizes, mortas de rir, para tirarem retrato de suas vidas. Gala Placídia as viu da sacada atravessando o parque com as sombrinhas abertas, se equilibrando como podiam nos saltos, e empurrando as anquinhas com o corpo inteiro feito criança aprendendo a andar com andadeiras, e lhes deu a bênção para que Deus as ajudasse em seus retratos.
      Havia um tumulto diante do estúdio do belga, porque estavam fotografando Beny Centeno, que naqueles dias tinha ganho o campeonato de boxe no Panamá. Estava de calções de luta, com as luvas calçadas e a coroa na cabeça, e não foi fácil fotografá-lo porque precisava ficar em posição de assalto durante um minuto e respirando o menos possível, mas logo que armava a guarda seus fanáticos prorrompiam em ovações, e ele não resistia à tentação de satisfazê-los exibindo suas artes. Quando chegou a vez das primas o céu nublara e a chuva parecia iminente, mas elas se deixaram enfarinhar a cara com polvilho e se apoiaram com tanta naturalidade numa coluna de alabastro que conseguiram ficar imóveis por mais tempo do que parecia racional. Foi um retrato eterno. Quando Hildebranda morreu, quase centenária em sua fazenda de Flores de Maria, encontraram sua cópia debaixo de chave no armário do quarto, escondida entre as dobras dos lençóis perfumados, junto com o fóssil de um pensamento numa carta apagada pelos anos. Fermina Daza guardou a sua muitos anos na primeira folha de um álbum de família, de onde desapareceu sem que se soubesse como, nem quando, e chegou às mãos de Florentino Ariza por uma série de casualidades inverossímeis, quando ambos já passavam dos sessenta anos.
     A praça diante do Portal dos Escrivães estava apinhada até os sobrados quando Fermina e Hildebranda saíram do estúdio do belga. Tinham esquecido que suas caras estavam brancas de polvilho e os lábios pintados com uma pomada cor de chocolate, e que suas roupas não eram apropriadas nem à hora nem à época. A rua as recebeu com vaias e apupos. Estavam acuadas, procurando escapar à zombaria pública, quando abriu caminho pelo tumulto o landô dos alazães dourados. A vaia cessou e os grupos hostis debandaram. Hildebranda não esqueceria jamais a primeira visão do homem que apareceu no estribo, o casaco de seda, o colete de brocado, seus ademanes sábios, a doçura dos olhos, a autoridade da presença.
     Embora nunca o tivesse visto, reconheceu-o logo. Fermina Daza tinha falado nele, quase por casualidade e sem nenhum interesse, uma tarde do mês anterior em que não tinha querido passar pela casa do Marquês de Casalduero porque o landô dos cavalos de ouro estava estacionado à porta. Disse a ela quem era o dono e procurou explicar as causas de sua antipatia, embora não dissesse palavra quanto às pretensões dele. Hildebranda esqueceu. Mas quando o identificou à porta do carro como uma aparição de fábula, um pé em terra outro no estribo, não compreendeu os motivos da prima.

 — Façam-me o favor de subir — disse o doutor Juvenal Urbino. — Levo-as para onde mandarem.

     Fermina Daza esboçou um gesto de dúvida, mas Hildebranda já havia aceito. O doutor Juvenal Urbino saltou, e com a ponta dos dedos, quase sem tocá-la, ajudou-a a subir no carro. Fermina, sem escolha, subiu depois dela, a cara ardendo de contrariedade.
      A casa ficava a apenas três quarteirões. As primas não notaram que o doutor Urbino tivesse entrado em acordo com o cocheiro, mas deve ter sido assim, porque o carro levou mais de meia hora para chegar. Iam sentadas no assento principal, e ele diante delas, de costas para o sentido da marcha do carro. Fermina virou a cara para a janela e mergulhou no vazio. Hildebranda, em compensação, estava encantada, e o doutor Urbino mais encantado ainda com o encantamento dela. Logo que o carro se pôs a andar, ela sentiu o cheiro cálido do couro natural dos assentos, a intimidade do interior acolchoado, e disse que aquilo lhe parecia um lugar bom da gente ficar vivendo. Começaram logo a rir, a trocar chistes de velhos amigos, e acabaram no jogo de um jargão inventado, que consistia em intercalar entre cada sílaba uma sílaba convencional. Fingiam acreditar que Fermina não compreendia o que diziam, embora não só soubessem que sim como que estava presa ao que diziam, e por isso insistiam. Ao fim de um momento, depois de muito rir, Hildebranda confessou que não aguentava mais o suplício dos botins.
     
 — Nada mais fácil — disse o doutor Urbino. — Vamos ver quem acaba primeiro.

      Começou a soltar o cordão das botas, e Hildebranda aceitou o repto. Não achou fácil, por causa do corpete de varetas que não permitiam que se curvasse, mas o doutor Urbino demorou de propósito, até que ela tirou os botins de debaixo das saias com uma gargalhada de triunfo, como se acabasse de pescá-los num tanque. Ambos olharam então para Fermina, e viram seu magnífico perfil de ave mais afiado do que nunca contra o incêndio do entardecer. Estava três vezes furiosa: pela situação imerecida em que se encontrava, pela conduta libertina de Hildebranda, e pela certeza de que o carro dava voltas sem sentido para retardar a chegada. Mas Hildebranda corria sem madrinha.

 — Agora estou vendo — disse — que o que me atrapalhava não eram os sapatos, e sim esta gaiola de arame.

     O doutor Urbino compreendeu que se referia às anquinhas, e pegou a ocasião no vôo. "Nada mais simples", disse. "Tire fora." Com um rápido passe de prestidigitador puxou o lenço do bolso e com ele vendou os olhos.

 — Não estou olhando — disse.

      A venda realçou a pureza dos seus lábios entre a barba redonda e negra e o bigode de guias afiadas, e ela se sentiu sacudida por uma vergastada de pânico. Olhou Fermina e agora não a viu furiosa e sim apavorada com a idéia de que ela fosse capaz de tirar a saia. Hildebranda ficou séria e lhe perguntou em linguagem de dedos: "Que fazemos?" Fermina Daza respondeu no mesmo código que se não fossem diretamente a casa se atiraria do carro em marcha.

 — Estou esperando — disse o médico.

 — Já pode olhar — disse Hildebranda.

     O doutor Juvenal Urbino a viu diferente quando tirou a venda, e compreendeu que o jogo tinha terminado, e terminado mal. A um sinal seu o cocheiro fez o carro dar uma volta completa, e entrou na praça dos Evangelhos no momento em que o acendedor municipal acendia as luminárias. Todas as igrejas deram o ângelus. Hildebranda desceu depressa, um pouco preocupada com a ideia de ter desgostado a prima, e se despediu do médico com um aperto de mãos sem cerimônias. Fermina a imitou, mas quando quis retirar a mão com a luva de seda, o doutor Urbino lhe apertou com força o dedo médio, o do coração.

— Estou esperando sua resposta — disse.

      Fermina deu então um puxão mais forte, e a luva vazia ficou pendurada da mão do médico, mas não esperou para recuperá-la. Foi se deitar sem comer. Hildebranda, como se nada houvesse acontecido, entrou no quarto depois de jantar com Gala Placídia na cozinha, e comentou com sua graça natural os incidentes da tarde. Não disfarçou seu entusiasmo pelo doutor Urbino, por sua elegância e sua simpatia, e Fermina não correspondeu com nenhum comentário, mas estava refeita do aborrecimento. A um certo momento, Hildebranda confessou: quando o doutor Juvenal Urbino vendou os olhos e ela viu o brilho dos seus dentes perfeitos entre os lábios rosados, tinha tido um desejo irresistível de comê-lo aos beijos. Fermina Daza se virou para a parede e pôs fim à conversa sem intuito de ofender, até sorrindo, mas com todo o coração.

— Que puta que você é! — disse.

continua na página 104...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Por aqueles dias
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

Histórias da Meia-Noite: Ponto de vista (VI)

Ponto de vista

Machado de Assis

Conto

PONTO DE VISTA

 

Capítulo VI
À MESMA

Corte, 27 de novembro 


     A sua carta chegou quando estávamos almoçando, e foi bom tê-la lido depois, porque se a leio antes não acabava de almoçar. Que história é essa, e quem lhe meteu na cabeça semelhante coisa? Eu, namorada do Alberto! Isso é caçoada de mau gosto, Luísa! Se alguém lhe mandou dizer tal, teve certamente intenção de me envergonhar. Se você o conhecesse, não era necessário este meu protesto. Já lhe disse as boas qualidades dele, mas os seus defeitos são para mim superiores às qualidades. Você bem sabe como eu sou; para mim a menor nódoa destrói a maior alvura. Uma estátua... estátua é o termo próprio, porque o tal Alberto tem certa rigidez escultural.
     Ah! Luísa, o homem que o céu me destina ainda não veio. Sei que não veio porque ainda não senti dentro de mim aquele estremecimento simpático que indica a harmonia de duas almas. Quando ele vier, fique certa de que será a primeira a quem eu confiarei tudo. 
     Dir-me-á que, se eu sou assim fatalista, devo admitir a possibilidade de um marido sem todas as condições que exijo. 
     Engano.
     Deus que me fez assim, e me deu esta percepção íntima para conhecer e amar a superioridade, Deus me há de deparar uma criatura digna de mim.
     E agora que me expliquei deixe-me ralhar-lhe um pouco. Por que motivo dá tão facilmente ouvidos a uma calúnia contra mim? Você que me conhece há tanto devia ser a primeira a pôr de quarentena esses ditos sem senso comum. Por que o não faz?
     Gastou você duas páginas para defender a Mariquinhas. Eu não a acuso; deploro-a. Pode ser que o noivo venha a ser um excelente marido, mas não creio que esteja na altura dela. E é neste sentido que eu a deploro.
     A nossa divergência tem natural explicação. Eu sou uma moça solteira, cheia de caraminholas, sonhos, ambições e poesia; você é já uma dona de casa, esposa tranquila e feliz, mãe de família dentro de pouco tempo; vê a coisa por outro prisma.
     Será isto?
     Parece que a companhia lírica não vem. A cidade está hoje muito alegre; andam bandas de música nas ruas; chegaram boas notícias do Paraguai. Naturalmente sairemos hoje; não tem saudades de cá?
     Adeus.
     Lembranças de todos a seu marido.

RAQUEL
       
continua na página 94...
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Histórias da Meia-Noite: Ponto de vista (VI)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873 

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Expedição Moreira César: I - O coronel e o meio que o celebrizou

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1



Expedição Moreira César



Preliminares

I.    O coronel Antônio Moreira César e o meio que o celebrizou. Primeira expedição regular. Como a aguardam os jagunços.
II.   Partida de Monte Santo. Primeiros erros. Nova estrada. Psicologia do soldado.
III. O primeiro encontro. Pitombas. "Em acelerado!" Dois cartões de visita a Antônio Conselheiro. No alto da Favela. Um olhar sobre Canudos.
IV.  A ordem de batalha e o terreno. Cidadela-mundéu. Ataques. Saques antes do triunfo. Recuo. Ao bater da Ave-Maria.
V.   Sobre o Alto do Mário.
VI. Retirada; debandada; fuga. Um arsenal ao ar livre e uma diversão cruel.



I - 

Moreira César e o meio que o celebrizou 

     O novo insucesso das armas legais, imprevisto para toda a gente, coincidia com uma fase crítica da nossa história.
     A pique ainda das lamentáveis consequências de sanguinolenta guerra civil, que rematara ininterrupta série de sedições e revoltas, emergentes desde os primeiros dias do novo regímen, a sociedade brasileira, em 1897, tinha alto grau de receptividade para a intrusão de todos os elementos revolucionários e dispersivos. E quando mais tarde alguém se abalançar a definir, à luz de expressivos documentos, a sua psicologia interessante naquela quadra, demonstrará a inadaptabilidade do povo à legislação superior do sistema político recém-inaugurado, como se este, pelo avantajar-se em demasia ao curso de uma evolução vagarosa, tivesse, como efeito predominante, alastrar sobre o país, que se amolentara no marasmo monárquico, intenso espírito de desordem, precipitando a República por um declive onde os desastres repontavam, ritmicamente, delatando a marcha cíclica de uma moléstia.
     O governo civil, iniciado em 1894, não tivera a base essencial de uma opinião pública organizada. Encontrara o país dividido em vitoriosos e vencidos. E quedara na impotência de corrigir uma situação que, não sendo francamente revolucionária e não sendo também normal, repelia por igual os recursos extremos da forca e o influxo sereno das leis. Estava defronte de uma sociedade que, progredindo em saltos, da máxima frouxidão ao rigorismo máximo, das conspirações incessantes aos estados de sítio repetidos, parecia espelhar incisivo contraste entre a sua organização intelectual imperfeita e a organização política incompreendida.
     De sorte que, lhe sendo impossível substituir o lento trabalho de evolução para alevantar a primeira ao nível da última, deixava que se verificasse o fenômeno inverso: a significação superior dos princípios democráticos decaía — sofismada, invertida, anulada.


Floriano Peixoto

     Não havia obstar essa descensão. O governo anterior, do marechal Floriano Peixoto, tivera, pelas circunstâncias especialíssimas que o rodearam, função combatente e demolidora. Mas, no abater a indisciplina emergente de sucessivas sedições, agravara a instabilidade social e fora de algum modo contraproducente, violando flagrantemente um programa preestabelecido. Assim é que, nascendo do revide triunfante contra um golpe de Estado violador das garantias constitucionais, criara o processo da suspensão de garantias; abraçado tenazmente à Constituição, afogava-a; fazendo da legalidade a maior síntese de seus desígnios, aquela palavra, distendida à consagração de todos os crimes, transmudara-se na fórmula antinômica de uma terra sem leis. De sorte que o inflexível Marechal de Ferro tivera, talvez involuntariamente, porque a sua figura original é ainda um intricado enigma, desfeita a missão a que se devotara. Apelando, nas aperturas das crises que o assoberbaram, incondicionalmente, para todos os recursos, para todos os meios e para todos os adeptos, surgissem de onde surgissem, agia inteiramente fora da amplitude da opinião nacional, entre as paixões e interesses de um partido que, salvante bem raras exceções, congregava todos os medíocres ambiciosos que, por instinto natural de defesa, evitam as imposições severas de um meio social mais culto. E ao debelar, nos últimos dias de seu governo, a Revolta de Setembro, que enfeixara todas as rebeldias contrariadas e todos os tumultos dos anos anteriores, formara, latentes, prestes a explodir, os germens de mais perigosos levantes.
     Destruíra e criara revoltosos. Abatera a desordem com a desordem. Ao deixar o poder não levara todos os que o haviam acompanhado nos transes dificílimos do governo. Ficaram muitos agitadores, robustecidos numa intensa aprendizagem de tropelias, e estes viam-se contrafeitos no plano secundário a que naturalmente volviam. Traziam o movimento irreprimível de uma carreira fácil e vertiginosa demais para estacar de súbito: dilataram-na pela nova situação adentro.
     Viu-se, então, um caso vulgaríssimo de psicologia coletiva: colhida de surpresa, a maioria do país inerte e absolutamente neutral constituiu-se veículo propício à transmissão de todos os elementos condenáveis que cada cidadão, isoladamente, deplorava. Segundo o processo instintivo, que lembra na esfera social a herança de remotíssima predisposição biológica, tão bem expressa no "mimetismo" psíquico de que nos fala Scipio Sighele, as maiorias conscientes, mas tímidas, revestiam-se, em parte, da mesma feição moral dos medíocres atrevidos que Ihes tomavam a frente. Surgiram, então, na tribuna, na imprensa e nas ruas — sobretudo nas ruas —, individualidades que nas situações normais tombariam à pressão do próprio ridículo. Sem ideais, sem orientação nobilitadora, peados num estreito círculo de ideias, em que o entusiasmo suspeito pela República se aliava a nativismo extemporâneo e à cópia grosseira de um jacobinismo pouco lisonjeiro à história — aqueles agitadores começaram a viver da exploração pecaminosa de um cadáver. O túmulo do marechal Floriano Peixoto foi transmudado na arca de aliança da rebeldia impenitente e o nome do grande homem fez-se a palavra de ordem da desordem.
     A retração criminosa da maioria pensante do país permitia todos os excessos; e no meio da indiferença geral todas as mediocridades irritadiças conseguiram imprimir àquela quadra, felizmente transitória e breve, o traço mais vivo que a caracteriza. Não lhes bastavam as cisões remanescentes, nem os assustava uma situação econômica desesperadora: anelavam avolumar aquelas e tornar a última insolúvel. E como o exército se erigia, ilogicamente, desde o movimento abolicionista até à proclamação da República, em elemento ponderador das agitações nacionais, cortejavam-no, captavam-no, atraíam-no afanosa e imprudentemente.
     Ora, de todo o exército, um coronel de infantaria, Antônio Moreira César, era quem parecia haver herdado a tenacidade rara do grande debelador de revoltas.
     O feiticismo político exigia manipansos de farda.
     Escolheram-no para novo ídolo.


Moreira César

     E à nova do desastre, avolumando a gravidade da luta nos sertões, o governo não descobriu quem melhor lhe pudesse balancear as exigências gravíssimas. Escolheu-o para chefe da expedição vingadora.
     Em torno do nomeado criara-se uma legenda de bravura.
     Recém-vindo de Santa Catarina, onde fora o principal ator no epílogo da campanha federalista do Rio Grande, tinha excepcional renome feito de aclamações e apodos, consoante o modo de julgar incoerente e extremado da época em que eram vivos os mínimos incidentes da guerra civil distendida da baía do Rio de Janeiro para o Sul, pela Revolta da Esquadra.
     Entre dois extremos, do arrojo de Gumercindo Saraiva à abnegação de Gomes Carneiro, a opinião nacional oscilava espelhando os mais díspares conceitos no aquilatar vitoriosos e vencidos; e nessa instabilidade, nesse baralhamento, nesse afogueado expandir da nossa sentimentalidade suspeita, o que de fato se fazia em todos os tons, com. todas as cores e sob aspectos vários — era a caricatura do heroísmo. Os heróis imortais de quarto de hora, destinados a suprema consagração de uma placa à esquina das ruas, entravam, surpreendidos e de repente, pela história dentro, aos encontrões, como intrusos desapontados, sem que se pudesse saber se eram bandidos ou santos, envoltos de panegíricos e convícios, surgindo entre detirambos ferventes, ironias e invectivas despiedadas, da sangueira de Inhanduí, da chacina de Campo Osório, do cerco memorável da Lapa, dos barrocais do pico do Diabo, ou do platonismo marcial de Itararé.
     Irrompiam a granel. Eram legião. Todos saudados; amaldiçoados todos.
     Ora, entre eles, o coronel Moreira César era figura à parte.
     Surpreendiam-se igualmente ao vê-lo admiradores e adversários. O aspecto reduzia-lhe a fama. De figura diminuta — um tórax desfibrado sobre pernas arcadas em parêntesis — era organicamente inapto para a carreira que abraçara.
     Faltava-lhe esse aprumo e competição inteiriça que no soldado são a base física da coragem.
     Apertado na farda, que raro deixava, o dólmã feito para ombros de adolescente frágil agravava-lhe a postura.
     A fisionomia inexpressiva e mórbida completava-lhe o porte desgracioso e exíguo. Nada, absolutamente, traía a energia surpreendedora e temibilidade rara de que dera provas, naquele rosto de convalescente sem uma linha original e firme: pálido, alongado pela calva em que se expandia a fronte bombeada, e mal alumiado por olhar mortiço, velado de tristeza permanente.
     Era uma face imóvel como um molde de cera, tendo a impenetrabilidade oriunda da própria atonia muscular. Os grandes paroxismos da cólera, e a alacridade mais forte, ali deviam amortecer-se inapercebidos, na lassidão dos tecidos, deixando-a sempre fixamente impassível e rígida.
     Aos que pela primeira vez o viam custava-lhes admitir que estivesse naquele homem de gesto lento e frio, maneiras corteses e algo tímidas, o campeador brilhante, ou o demônio crudelíssimo que idealizavam. Não tinha os traços característicos nem de um, nem de outro. Isto, talvez, porque fosse as duas coisas ao mesmo tempo.
     Justificam-se os que o aplaudiam e os que o invectivavam. Naquela individualidade singular entrechocavam-se, antinômicas, tendências monstruosas e qualidades superiores, umas e outras no máximo grau de intensidade. Era tenaz, paciente, dedicado, leal, impávido, cruel, vingativo, ambicioso. Uma alma proteiforme constrangida em organização fragílima.
     percebeu ou decifrou bem, o marechal Floriano Peixoto. Tinha para isto a afinidade de inclinações idênticas. Aproveitou-o, na ocasião oportuna, como Luís XI aproveitaria Bayard, se pudesse enxertar na bravura romanesca do cavaleiro sem máculas as astúcias de Fra Diávolo.
     Moreira César estava longe da altitude do primeiro e mais longe ainda da depressão moral do último. Não seria, entretanto, imperdoável exagero considerá-lo misto reduzido de ambos. Alguma coisa de grande e incompleto, como se a evolução prodigiosa do predestinado parasse, antes da seleção final dos requisitos raros com que o aparelhara, precisamente na fase crítica em que ele fosse definir-se como herói ou como facínora. Assim, era um desequilibrado. Em sua alma a extrema dedicação esvaía-se no extremo ódio, a calma soberana em desabrimentos repentinos e a bravura cavalheiresca na barbaridade revoltante. 
     Tinha o temperamento desigual e bizarro de um epilético provado, encobrindo a instabilidade nervosa de doente em placidez enganadora.
     Entretanto, não raro, a sua serenidade partia-se rota pelos movimentos impulsivos da moléstia, que somente mais tarde, mercê de comoções violentas, se desvendou inteiramente nas manifestações físicas dos ataques. E se pudéssemos acompanhar a sua vida assistiríamos ao desdobramento contínuo do mal, que lhe imprimiu, como a outros sócios de desdita, um feitio original e interessante, definido por uma sucessão por demais eloquente de atos que, aparecendo intercalados por períodos de calma crescentemente reduzidos, constituem os pontos determinantes da curva inflexível em que o arrebatava a fatalidade biológica.
     De feito, eram correntes entre os seus companheiros de armas os episódios frisantes que, de tempos a tempos, com ritmo inabalável, lhe interferiam a linha de uma carreira militar correta como poucas.
     Fora longo rememorá-los, além do perigo de incidirmos no arquivar versões exageradas ou falsas.
     À parte, porém, todos os casos duvidosos, definidos sempre pelo traço preponderante de vias de fato violentíssimas — aqui o ultraje, a rebencadas, de um médico militar, além a arremetida a faca, felizmente tolhida em tempo, contra um oficial argentino, por certa palavra mal compreendida —, apontamos, de relance, os mais geralmente conhecidos.
     Um, sobretudo, dera relevo à sua energia selvagem.
     Foi em 1884, no Rio de Janeiro. Um jornalista, ou melhor, um alucinado, criara, agindo libérrimo graças à frouxidão das leis repressivas, escândalo permanente de insultos intoleráveis na corte do antigo Império; e tendo respingado sobre o Exército parte das alusões indecorosas, que por igual abrangiam todas as classes, do último cidadão ao monarca, foi infelizmente resolvido por alguns oficiais, como supremo recurso, a justiça fulminante e desesperadora do linchamento.
     Assim se fez. E entre os subalternos encarregados de executar a sentença — em plena rua, em pleno dia, diante da justiça armada pelos Comblains de toda a força policial em armas — figurava, mais graduado, o capitão Moreira César, ainda moço, à volta dos trinta anos, e tendo já em seus assentamentos, averbados, merecidos elogios por várias comissões exemplarmente cumpridas. E foi o mais afoito, o mais impiedoso, o primeiro talvez no esfaquear pelas costas a vítima, exatamente na ocasião em que ela, num carro, sentado ao lado de autoridade superior do próprio Exército, se acolhera ao patrocínio imediato das leis...
     O crime acarretou-lhe a transferência para Mato Grosso, e dessa Sibéria canicular do nosso Exército tornou somente após a proclamação da República.
     Vimo-lo nessa época.
     Era ainda capitão e embora nunca houvesse arrancado da espada em combate, recordava um triunfador. Nos dias ainda vacilantes do novo regímen, o governo parecia desejar ter perto de si aquele esteio firme — o homem para as crises perigosas e para as grandes temeridades. A sua figura de menino atravessava os quartéis e as ruas envolta de murmúrio simpático e louvaminheiro, comentando-lhe em lisonjarias os lances capitais da vida, acerca dos quais, entretanto, era de todo muda uma fé de ofício de burocracia inofensivo e tímido, repleta de encômios ao desempenho de missões pacíficas.
     Por um contraste expressivo, nos documentos da profissão guerreira é que estava a placabilidade de uma existência acidentada, revolta e turbulenta em que, não raro, relampagueara a faca, ao lado da espada inteiramente virgem.
     Esta saiu-lhe da bainha, afinal, nos últimos anos da existência. Em 1893, já coronel, porque galgara velozmente três postos em dois anos, ao declarar-se a Revolta da Armada o marechal Floriano Peixoto destacou-o armado de poderes discricionários para Santa Catarina, como uma barreira à conflagração que se reanimara no sul e ameaçava os Estados limítrofes. Seguiu; e em ponto algum do nosso território pesou tão firme e tão estrangulador o guante dos estados de sítios.
     Os fuzilamentos que ali se fizeram, com triste aparato de imperdoável maldade, dizem-no de sobra. Abalaram tanto a opinião nacional que, ao terminar a revolta, o governo civil, recém-inaugurado, pediu contas de tais sucessos ao principal responsável. A resposta, pelo telégrafo, foi pronta. Um "não", simples, seco, atrevido, cortante, um dardo batendo em cheio a curiosidade imprudente dos poderes constituídos, sem o atavio, sem o rodeio, sem a ressalva da explicação mais breve.
     Meses depois chamaram-no ao Rio de Janeiro.
     Embarca com o seu batalhão, o 7.°, num navio mercante; e em pleno mar, com surpresa dos próprios companheiros prende o comandante. Assaltara-o — sem que para tal houvesse o mínimo pretexto — a suspeita de uma traição, um desvio na rota, adrede disposto para o prender e aos soldados. O ato seria absolutamente inexplicável se não o caracterizássemos como aspecto particular da desorganização psíquica que o vitimava.
     Não lhe diminuiu, contudo, o prestígio. Fez-se dono do batalhão que comandava; deu-lhe um pessoal que ultrapassava, de muito, o número regulamentar de praças, entre as quais — em manifesta violação da lei — dezenas de crianças que não podiam carregar as armas; e, imperando incondicionalmente, organizou o melhor corpo do Exército, porque nos longos intervalos lúcidos patenteava, francas, qualidades eminentes e raras de chefe disciplinador e inteligente, contrastando com os paroxismos da exaltação intermitente.
     Estes tomaram-se, por fim, mais ostensivos e repetidos — num crescendo inflexível.
     Nomeado para a expedição contra Canudos, estadeou-os numa série de desatinos, culminados afinal por uma catástrofe.
     Vê-los-emos em breve, extremados por dois ímpetos de impulsivo: a partida caprichosa de Monte Santo, de improviso, com espanto de seu próprio Estado-maior, precisamente na véspera do dia prefixo em detalhe para a marcha; e, três dias mais tarde, o arremesso contra o arraial, de mil e tantos homens exaustos de uma carreira de léguas, precisamente na véspera do dia marcado para o assalto.
     Estes últimos fatos, e a sua identidade está no objetivarem a mesma nevrose, tiveram a intercorrência dos ataques.
     Foram uma revelação.
     Todos os acidentes singulares de sua existência desconexa, viu-se afinal que eram sinais comemorativos enfeixando uma diagnose única e segura...
     Realmente, a epilepsia alimenta-se de paixões; avoluma-se no próprio expandir das emoções subitâneas e fortes; mas, quando, ainda larvada, ou traduzindo-se em uma alienação apenas afetiva, solapa surdamente as consciências, parece ter na livre manifestação daquelas um derivativo salvador atenuando os seus efeitos. De sorte que, sem exagero de frase, se pode dizer que há muitas vezes num crime, ou num lance raro de heroísmo, o equivalente mecânico de um ataque. Contido o braço homicida, ou imobilizado, de chofre, o herói no arremesso glorioso, o doente pode surgir, ex-abrupto, sucumbindo ao acesso. Daí esses atos inesperados, incompreensíveis ou brutais, em que a vítima procura iludir instintivamente o próprio mal, buscando muitas vezes o crime como um derivativo à loucura.
     Durante longo tempo numa semiconsciência de seu estado, numa série de delírios breves e fugazes, que ninguém percebe, que nem ela às vezes percebe, sente crescer a instabilidade da vida. E luta tenazmente. Os intervalos lúcidos fazem-se-lhe ponto de apoio à consciência vacilante à procura de motivos inibitórios numa ponderação cada vez mais penosa das condições normais ambientes. Aqueles, entretanto, a pouco e pouco se enfraquecem. A inteligência abalada afinal mal se subordina às condições exteriores ou relaciona os fatos e, em contínuo descair, baralha-os, perturba-os, inverte-os, deforma-os. O doente cai, então, no estado crepuscular, segundo uma expressão feliz, e condensa no cérebro, como se fosse a soma de todos os delírios anteriores, instável, pronto a desencadear-se em ações violentas, que o podem atirar no crime ou, acidentalmente, na glória, o potencial da loucura.
     Cabe à sociedade, nessa ocasião, dar-lhe a camisa de força ou a púrpura. Porque o princípio geral da relatividade abrange as mesmas paixões coletivas. Se um grande homem pode impor-se a um grande povo pela influência deslumbradora do gênio, os degenerados perigosos fascinam com igual vigor as multidões tacanhas.
     Ora, entre nós, se exercitava o domínio do caput mortuum das sociedades. Despontavam efêmeras individualidades singulares; e entre elas o coronel César destacava-se em relevo forte, como se a niilidade do seu passado salientasse melhor a energia feroz que desdobrara nos últimos tempos.
     É cedo ainda para que se lhe defina a altitude relativa e a depressão do meio em que surgiu. Na apreciação dos fatos o tempo substitui o espaço para a focalização das imagens: o historiador precisa de certo afastamento dos quadros que contempla.
     Cerremos esta página perigosa.

continua na página 176...
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.