Apolodoro[1] e um Companheiro
Tendo então tomado a palavra, continuou Aristodemo, disse
Aristófanes: - Bem que cessou! Não todavia, é verdade, antes
de lhe ter eu aplicado o espirro, a ponto de me admirar que a
boa ordem do corpo requeira tais ruídos e comichões como é o
espirro; pois logo o soluço parou, quando lhe apliquei o espirro.
E Erixímaco lhe disse: - Meu bom Aristófanes, vê o que fazes.
Estás a fazer graça, quando vais falar, e me forças a vigiar o teu
discurso, se porventura vais dizer algo risível, quando te é
permitido falar em paz.
Aristófanes riu e retomou: - Tens razão, Erixímaco! Fique-me o
dito pelo não dito. Mas não me vigies, que eu receio, a respeito
do que vai ser dito, que seja não engraçado o que vou dizer -
pois isso seria proveitoso e próprio da nossa musa - mas
ridículo.
- Pois sim! - disse o outro - lançada a tua seta, Aristófanes,
pensas em fugir; mas toma cuidado e fala como se fosses
prestar contas. Talvez todavia, se bem me parecer, eu te
largarei.
“Na verdade, Erixímaco, disse Aristófanes, é de outro modo que
tenho a intenção de falar, diferente do teu e do de Pausânias.
Com efeito, parece-me os homens absolutamente não terem
percebido o poder do amor, que se o percebessem, os maiores
templos e altares lhe preparariam, e os maiores sacrifícios lhe
fariam, não como agora que nada disso há em sua honra,
quando mais que tudo deve haver. É ele com efeito o deus mais
amigo do homem, protetor e médico desses males, de cuja cura
dependeria sem dúvida a maior felicidade para o gênero
humano. Tentarei eu portanto iniciar-vos em seu poder, e vós o
ensinareis aos outros. Mas é preciso primeiro aprenderdes a
natureza humana e as suas vicissitudes. Com efeito, nossa
natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas
diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da
humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino,
mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do
qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era
então um gênero distinto, tanto na forma como no nome
comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora
nada mais é que um nome posto em desonra. Depois, inteiriça
era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos
em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto
das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes
em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao
outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais
como desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu
andar, era também ereto como agora, em qualquer das duas
direções que quisesse; mas quando se lançavam a uma rápida
corrida, como os que cambalhotando e virando as pernas para
cima fazem uma roda, do mesmo modo, apoiando-se nos seus
oito membros de então, rapidamente eles se locomoviam em
círculo. Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua
constituição, porque o masculino de início era descendente do
sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois
também a lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto
eles próprios como a sua locomoção, por terem semelhantes
genitores. Eram por conseguinte de uma força e de um vigor
terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram
se contra os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Otes é a eles que se refere, a tentativa de fazer uma escalada ao céu,
para investir contra os deuses. Zeus então e os demais deuses
puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles, e
embaraçavam-se; não podiam nem matá-los e, após fulminá-los
como aos gigantes, fazer desaparecer-lhes a raça - pois as
honras e os templos que lhes vinham dos homens
desapareceriam — nem permitir-lhes que continuassem na
impiedade. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que
tenho um meio de fazer com que os homens possam existir,
mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora
com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao
mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para
nós, pelo fato de se terem tomado mais numerosos; e andarão
eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e
não quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os cortarei
em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando.”
Logo que o disse pôs-se a contar os homens em dois, como os
que cortam as sorvas para a conserva, ou como os que cortam
ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo voltar
lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de
que, contemplando a própria mutilação, fosse mais moderado o
homem, e quanto ao mais ele também mandava curar. Apolo
torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o
que agora se chama o ventre, como as bolsas que se
entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no
meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras pregas,
numerosas, ele se pôs a polir, e a articular os peitos, com um
instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo
na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as
que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para
lembrança da antiga condição. Por conseguinte, desde que a
nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua
própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e
enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem,
morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem
fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das
metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com
ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do todo que
era mulher - o que agora chamamos mulher — quer com a de
um homem; e assim iam-se destruindo. Tomado de compaixão,
Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para a
frente - pois até então eles o tinham para fora, e geravam e
reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras;
pondo assim o sexo na frente deles fez com que através dele se processasse a geração um no outro, o macho na fêmea, pelo
seguinte, para que no enlace, se fosse um homem a encontrar
uma mulher, que ao mesmo tempo gerassem e se fosse
constituindo a raça, mas se fosse um homem com um homem,
que pelo menos houvesse saciedade em seu convívio e
pudessem repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da
vida. E então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro
está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga
natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a
natureza humana. Cada um de nós portanto é uma téssera
complementar de um homem, porque cortado como os
linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu
próprio complemento. Por conseguinte, todos os homens que
são um corte do tipo comum, o que então se chamava
andrógino, gostam de mulheres, e a maioria dos adultérios
provém deste tipo, assim como também todas as mulheres que
gostam de homens e são adúlteras, é deste tipo que provêm.
Todas as mulheres que são o corte de uma mulher não dirige
muito sua atenção aos homens, mas antes estão voltadas para
as mulheres e as amiguinhas provêm deste tipo. E todos os que
são corte de um macho perseguem o macho, e enquanto são
crianças, como cortículos do macho, gostam dos homens e se
comprazem em deitar-se com os homens e a eles se enlaçar, e
são estes os melhores meninos e adolescentes, os de natural
mais corajoso. Dizem alguns, é verdade, que eles são
despudorados, mas estão mentindo; pois não é por despudor
que fazem isso, mas por audácia, coragem e masculinidade,
porque acolhem o que lhes é semelhante. Uma prova disso é
que, uma vez amadurecidos, são os únicos que chegam a ser
homens para a política, os que são desse tipo. E quando se
tornam homens, são os jovens que eles amam, e a casamentos
e procriação naturalmente eles não lhes dão atenção, embora
por lei a isso sejam forçados, mas se contentam em passar a
vida um com o outro, solteiros. Assim é que, em geral, tal tipo
torna-se amante e amigo do amante, porque está sempre
acolhendo o que lhe é aparentado. Quando então se encontra
com aquele mesmo que é a sua própria metade, tanto o amante
do jovem como qualquer outro, então extraordinárias são as
emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto
de não quererem por assim dizer separar-se um do outro nem
por um pequeno momento. E os que continuam um com o outro
pela vida afora são estes, os quais nem saberiam dizer o que
querem que lhes venha da parte de um ao outro. A ninguém
com efeito pareceria que se trata de união sexual, e que é porventura em vista disso que um gosta da companhia do outro
assim com tanto interesse; ao contrário, que uma coisa quer a
alma de cada um, é evidente, a qual coisa ela não pode dizer,
mas adivinha o que quer e o indica por enigmas. Se diante
deles, deitados no mesmo leito, surgisse Hefesto e com seus
instrumentos lhes perguntasse: Que é que quereis, ó homens,
ter um do outro?, e se, diante do seu embaraço, de novo lhes
perguntasse: Porventura é isso que desejais, ficardes no mesmo
lugar o mais possível um para o outro, de modo que nem de
noite nem de dia vos separeis um do outro? Pois se é isso que
desejais, quero fundir-vos e forjar-vos numa mesma pessoa, de
modo que de dois vos tomeis um só e, enquanto viverdes, como
uma só pessoa, possais viver ambos em comum, e depois que
morrerdes, lá no Hades, em vez de dois ser um só, mortos os
dois numa morte comum; mas vede se é isso o vosso amor, e
se vos contentais se conseguirdes isso. Depois de ouvir essas
palavras, sabemos que nem um só diria que não, ou
demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria
ter ouvido o que há muito estava desejando, sim, unir-se e
confundir-se com o amado e de dois ficarem um só. O motivo
disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um
todo; é portanto ao desejo e procura do todo que se dá o nome
de amor. Anteriormente, como estou dizendo, nós éramos um
só, e agora é que, por causa da nossa injustiça, fomos
separados pelo deus, e como o foram os árcades pelos
lacedemônios; é de temer então, se não formos moderados
para com os deuses, que de novo sejamos fendidos em dois, e
perambulemos tais quais os que nas estelas estão talhados de
perfil, serrados na linha do nariz, como os ossos que se fendem.
Pois bem, em vista dessas eventualidades todo homem deve a
todos exortar à piedade para com os deuses, a fim de que
evitemos uma e alcancemos a outra, na medida em que o Amor
nos dirige e comanda. Que ninguém em sua ação se lhe oponha - e se opõe todo aquele que aos deuses se torna odioso - pois
amigos do deus e com ele reconciliados descobriremos e
conseguiremos o nosso próprio amado, o que agora poucos
fazem. E que não me suspeite Erixímaco, fazendo comédia de
meu discurso, que é a Pausânias e Agatão que me estou
referindo talvez também estes se encontrem no número desses
e são ambos de natureza máscula mas eu no entanto estou
dizendo a respeito de todos, homens e mulheres, que é assim
que nossa raça se tornaria feliz, se plenamente realizássemos o
amor, e o seu próprio amado cada um encontrasse, tornado à
sua primitiva natureza. E se isso é o melhor, é forçoso que dos casos atuais o que mais se lhe avizinha é o melhor, e é este o
conseguir um bem amado de natureza conforme ao seu gosto; e
se disso fôssemos glorificar o deus responsável, merecidamente
glorificaríamos o Amor, que agora nos é de máxima utilidade,
levando-nos ao que nos é familiar, e que para o futuro nos dá
as maiores esperanças, se formos piedosos para com os deuses,
de restabelecer-nos em nossa primitiva natureza e, depois de
nos curar, fazer-nos bem aventurados e felizes.
Eis, Erixímaco, disse ele, o meu discurso sobre o Amor,
diferente do teu. Conforme eu te pedi, não faças comédia dele,
a fim de que possamos ouvir também os restantes, que dirá
cada um deles, ou antes cada um dos dois; pois restam Agatão
e Sócrates."
continua página 19...
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Apolodoro e um Companheiro(e)
Apolodoro e um Companheiro(f)
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Platão (428/7-348/7 a.C.)
Nasceu em Atenas, por volta de 428/7, e era membro de uma aristocrática e ilustre família. Descendia dos antigos reis de Atenas, de Sólon e era também sobrinho de Crítias (460/403) e Cármides, dois dos "Trinta Tiranos" que governaram Atenas em -404. Lutou na Guerra do Peloponeso entre 409 e 404, e a admiração por Sócrates, que conheceu em algum momento desse período, foi decisiva em sua vida.
O seu verdadeiro nome era Arístocles, mas devido à sua compleição física recebeu a alcunha de Platão (significa literalmente "ombros largos"). Frequentou com assiduidade os ginásios, obtendo prêmios por duas vezes nos Jogos Istímicos. Começou por seguir as lições de Crátilo, discípulo de Heraclito, e as de Hermógenes, discípulo de Parménides. Em princípio, por tradição familiar deveria seguir a vida política. Contudo, a experiência do governo dos trinta tiranos que governaram Atenas por imposição de Esparta (404-403 a.C.), e da qual fazia parte dois dos seus tios Crístias e Cármides, distanciaram-no desta opção de vida, pelo menos do modo como a política era exercida. O fato que mais o marcou foi a influência que sobre ele exerceu Sócrates, tendo-se feito seu discípulo por volta de 408, quando contava vinte anos. Nele encontrou o mestre, que veio a homenagear na sua obra, fazendo-o interlocutor principal da quase totalidade dos seus diálogos.
Após a morte de Sócrates, em 399 a.C., Platão realizou inúmeras viagens, travando contato com importantes filósofos e escolas de pensamento suas contemporâneas. Em Megara, travou contato com Euclides e sua escola; no Egito, Sicília e Magna Grécia, aprofundou seus conhecimentos através do contato com a sabedoria egípcia e os ensinamentos eleáticos e pitagóricos, este último especialmente através do encontro com Arquitas de Tarento. De passagem por Siracusa, ligou-se a Díon e Dionísio, tirano de Siracusa. Estas duas personagens desempenharam papel fundamental na posterior vida política de Platão.
De volta a Atenas, fundou em 387 a Academia, passando a dedicar-se ao ensino e à composição de sua obra filosófica.
Em 365 e em 361 esteve novamente em Siracusa, a pedido do amigo Díon, numa tentativa inútil de transformar o jovem Dionísios II (-367/-342), filho e sucessor de Dionísios I, no "reifilósofo" que idealizara.
Desiludido com a dificuldade de colocar em prática suas idéias filosóficas, Platão não mais saiu de Atenas.
Durante o ultimo período da sua vida continuou a dirigir a Academia, e escreveu o Timeu, O Crítias e As Leis ,que não chegou a acabar falecendo por volta de 347.
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[1] O interlocutor de Sócrates não está só (N.T.)
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