quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

II - General Calçacurta


O homem da limpeza

baitasar

A bosta dessa merda de morrer é deixar a briga para os outros... E depender da vontade dos alheios é pedir para levar coice pelos fundilhos, se deixar encilhar pelos arreios com a chincha apertada nos bagos. Não dá pra confiar, quando menos se espera o feitiço da Cinderela alcança as tropas e os coturnos com sola grossa viram sapatinho de cristal
─         Soldado!
─         Sim senhor, General!
─         Antes de mandar o guri à merda, quero lembrar que ninguém obriga ninguém de ficar pra lá e cá. Não preciso de sentinela de segurança, ainda posso me cuidar!
─         Ta de brincadeira, General Calçacurta...

Não fui um soldado assustado, nem fico cadáver assombrado, a reação do cabo foi vexatória... resmunguei ─ Um pouco de silêncio e respeito, que um homem de bem acabou de morrer, ainda nem esfriei.
─         General, depois que se entra no serviço só se sai no tempo certo.
─         Não é bem assim, Chupa-racha, mas de qualquer jeito não me refiro ao serviço de Segurança Nacional, que esse é inacabável, mas deste tempo de ficar vigiando morto...
─         Ah, General! É um prazer... Mas o General já se aceita morto?
─         Cabo, eu morri, mas não estou morto... Entendeu?
─         Não entendi, senhor!
─         Eu lhe explico com mais tempo.
Rapaz... puxa uma cadeira mais para perto e me escuta. Não precisa ficar aí, em pé, feito um dois de paus, fingindo que não tem vontade de fechar esse olho arregalado ou arriar a bunda na cadeira estofada
─         Ouviu, Chupa-racha?
Male mal eu desencarnei e o cabrito já não me escuta. Bom, se é vontade do medo e da subordinação de milico, fica do jeito que cabe na cabeça de raso. Fica na sua vontade, aí em pé, que eu já perdi a minha.
Tenho ambição de fazer testamento de confessionário. Vontade de desmascarar um que outro fingido de mocinho, assim, se evitam os metidos que escavocam o passado sem rumo certo. Deixo a estrada sinalizada. Essa gente inventa invenciones de memória encarniçada e antiquada, têm a voz embaciada por palavras sem provas. Repetem de ouvido sem saber a verdade. Não quero nenhuma glória que não me são devidas nem a culpa desmedida da mentira. E conversa caluniosa nesse mundo de hoje, engraxado de gentinha suja e fedida, é que não falha. Povinho cabeçudo e estreito de vontade.
Queria que o raso fosse anotando na medida em que vou lembrando. Mas assim está muito afetado, o guri fica no jeito de conversar em pé e não sai da posição de guardamento de morto. Enfim, se vai ter que ser assim, assim que seja...
Anote de memória a minha retentiva das cinzas do passado, depois, se quiser, jogue no vento. Espere quando ele sopre do norte e, assim, leve tudo para os confins de Judas, lá pelas pregas do mundo. Cuidado para que num golpe de azar o vento não jogue tudo na cara.
Lembro daquele primeiro dia na caverna. Tinha nascido para esse destino.
Era um bom começo, mas apenas um primeiro ensaio.
Quase sempre a gente sabe que o primeiro dia é o primeiro dia, mas quase nunca que o último dia é o último dia. Nesse caso, o que chamou a atenção da minha memória foi àquela destruição no meu primeiro dia: último dia de vida daqueles desgraçados.
Uma casa mortuária com muito corpo presente.
Depois do costume de entrar e sair do casarão, o lugar passou a lembrar como se uma adega fosse. Já não disfarçava a sua vocação de uma caverna de aparência cansada e melancólica. Tinha cara de esconderijo de vinhos antigos roubados com a mão da gulodice. Fria e escura. Boa para tesouros amaldiçoados de piratas, cadáveres humanos. O buraco da fenda não se achava no interior da terra, estava ali, na superfície: uma paisagem embaçada de egoísmo e ganância. Ainda, não tinha reconhecido o medo do maricas. A minha ambição desenfreada de ficar rico procurava jeito de tomar posse daqueles despojos. Aos poucos descobria que cagão virava a cara, fingia não ver. Tudo ficava impenetrável pelo medo e a comodidade. A caverna de lona foi uma promessa protetora para acolhimento dos cegos das vontades. Construída com cimento e concreto era o cofre mais recuado da nossa guerra. Quem recebia permissão de alistamento junto a sua força padroeira se tornava um obcecado. Alucinado leal. E a caverna defensora, nessa troca de empréstimos doava benefícios de proteção.
A sobrenatural oportunidade que pode tudo e tem tudo.
Sempre tive uma visão de destino. Eu fui o futuro.
A nossa força defensora não se deixava ver, amortecia sobre a vida de todos no tempo em que planava como uma sombra. Luta armada de um exército invisível. Homens que se escondiam e não se deixavam ver, mas estávamos por tudo, por trás da estrada nacional. Mostramos que o moinho de vento é apenas uma máquina para aproveitar a força da ventania. A gente foi a ventaneira.
Tenho saudades do meu aprendizado. Todos temos dentro de nós uma crueldade humana, em espera apenas de um pretexto para torturar o encarcerado. A nossa natureza nos absolve. É nossa sina e nossa beleza. Marcamos nosso território com a lembrança da disciplina, suor e sofrimento
─         Ame-o ou deixe-o!
Fui o homem da limpeza.
Ali aprendi que o abuso dava molde à moral e o rebanho borrado de medo fortalecia qualquer faz de conta. Mas o que melhor se prestou em serventia foi descobrir que os homens de bem não gostam do voto quando não lhes fortalece o mando. Eu haveria de lhes robustecer o comando. Assim, eu me iniciava e ficava preparado para escorar o desmando. Minha colocação era encorajar e animar as imposições do nosso circo. Enquanto esperava, aprendia mais rápido que se via
─         Chupa-racha, quer saber o que eu vi?
─         O senhor é que sabe o que conta.
Quando entrei pelo portão de ferros retorcidos e farpados daqueles muros, meus passos estavam a ser dados por vez, um a um. Não levei sustos, talvez um pequeno receio de não saber como me tornar dono daquilo tudo
─         General, o senhor levando susto?
─         Rapaz, eu ainda não sabia no que me metia, desconfiava, mas tapeava pelo escuro, cuidava de não tropeçar nos próprios pés...
A juventude e a ignorância fazem a gente acreditar em bicho-papão.
Lá estava eu no centro dos mandos e desmandos. Ouvidos atentos e boca fechada, os olhos nem piscavam para não perder nenhuma minudência. Foi naquelas paredes que escutei o sentido geral da grande trama
─         Primeiro aprender como se faz, depois despojar para si e esparramar um pouquinho entre tantos que se deixavam trocar por pequenos favores.
Alguns não estavam convencidos
─         O ensinamento está bom, mas como é que faz?
Essa era a grande pergunta. E quem tivesse a resposta era o dono de tudo, ou pelo menos, bancava o jogo.
Não tinha nenhum colhudo.
Havia inquietação naquele ar vigiado de medo e ganância.
Mas, a verdade verdadeira, dita sem interesse escondido, só tem um caso que me vem nas lembranças, nem sei porque, é dessas coisas que não tem explicação. Os medíocres apontavam um gritão, um tal de Beijamim, que chamava todos à desobediência e violência no entorno da lona circense, como um problema a ser resolvido
─         Chupa-racha, o homem estava na procura de incomodamento.
─         Quem é esse?
─         Foi outro desocupado dos braços e nervoso das idéias, mas com um arpão nas palavras.
Aquele cabeludo respondia duramente ao controle geral, mas eu apostava que era mais um sem alguma coisa. Sabia que me chegava à ocasião por aí, olhava na volta e não via nenhum encrespado para agir, acabei dando voto de confiança num estagiário. Depositei o Beijamim nas mãos do guri. Foi muita porrada sem critério de ciência. O guri estava aprendendo, mas era só na vontade. Não funcionou. Precisei substituir o estagiário, então, havia chegado minha vez de enfiar as mãos na massa
─         Não se dê voz a este alvorotado.
─         Como é que é?
─         Agora, que todos concordam que tudo vai bem, surge este estorvo...
─         Qual a solução?
─         E tem solução?
─         Só tem uma saída deste embrulho...
Naquele momento, todos me olhavam, mas eles não sabiam o que eu sabia, eu estava disposto até o fim, qualquer que fosse
─         Calma, os anjos da decência e guardadores em velório da nossa ilha praticam um jornalismo insubstituível, têm lealdade caninana ao poder. Estalemos os dedos e amordaçam quem se revela contra. Basta que lhes oferecemos as rãs, pererecas, ratos e ovos.
Essa era a voz da controladora das ondas curtas, jornais e televisão, Safira. Nome bonito como as cadeiras da cadeiruda.
Barriga lisinha e anca redondinha, fico com vontade de respingar e tirar cria... Depois, deito a cabeça naqueles peitos de almofadas, pura pena de ganso
─         Guardem esses para o momento adequado.
─         Quem toma conta, antes dos descontroles, quis saber o dono, mas antes do meu oferecimento, o chefe do gabinete militar respondeu
─         Passa para o manco.
Eu era o manco, lá eles vinham, novamente.
Sempre achei que os iguais se encontram, bastavam os espíritos estarem disponíveis
─         Sem brutalidades ou selvageria, ficava na recomendação o chefe de todos.
Esse era criado e feito à imagem e semelhança dos assanhados pelo direito que mandam sempre à puta que os pariu, no momento certo da sua conveniência
─         Não se preocupe, senhor Venhamim, acusemos esse tal Beijamim de infidelidade no amor.
─         Mas essa coisa não pega mais, reagiu Safira
─         Tudo bem, o acusaremos apenas de traição, sem mais detalhes, nenhuma minudência.
─         Deslealdade a quem?
─         Então... que tal isso, falta de decoro?
─         Isso, soa como algo misterioso, incompreensível, um jogo de palavras.
─         Manipulável.
─         Levamos pro lado que nos apetece na hora.
A reunião de gabinete da caverna, metida acima da terra, convocada nas pressas para avaliar os últimos acontecimentos, reunia o homem forte das obras públicas, Laborão Concreteiro; o homem dos cofres enterrados, Adoniran; a chefe mediadora da imprensa midiática, Safira; o chefe do gabinete confidencial, Labão; e o usuário da cheiradeira, o recém-fabricado pelo voto indicado: Venhamim. A quadrilha parecia estar em bons termos entre si e com o mundo, perficiente lua-de-mel. O recém-admitido Venhamim, depois de chamar o manco, eu, a presença de todos, me passa o abreviamento atualizado daquele meu ofício de serventia
─         General...
Fui promovido.
Percebi a gravidade do momento e o alcance do que se esperava de mim. Jamais decepcionei
─         Você é pago para tornar quieto qualquer movimento agitado, entendido?
─         Sim, senhor!
─         Calar as bocas aborrecidas e ignorantes, me permitir viver sossegado.
─         Entendido, senhor Venhamim, respondi como um bom manco em equilíbrio torto
─         Todo cuidado é pouco, o mundo está cheio de armadilhas, tornava a falar um Venhamim desconfiado, habituado em enganar e fazer de conta
─         Devemos ser cuidadosos com os negócios, alertava o homem das obras, o tal Laborão Concreteiro
─         Senhor Venhamim, temos a esperança de colhermos juntas as sementes que já lançamos, orava Labão, outro chefete, convidado a patrão do gabinete confidencial, na verdade, superintendente político de todos aqueles que cuidavam da intimidade reservada ao nicho da chefia ilhada.
Queria sair dali ou iria vomitar nos pés daqueles bajuladores. Aturo bala e porrada, mas mão aguento carga de trabalho com baba-ovo, isso é gente perigosa que balança o rabo preso pra qualquer lado
─         Se me permitem, era a voz da dona Safira, de novo
Lembro que aquele traseiro de jaca era muito gostoso e deveria cheirar bem, além de ser dono de olhos verdes inesquecidos. Uma puta loira gostosa. Calma, Calçacurta, por enquanto esse rabo não é pra você
─         Um momento, por favor, interrompe o guardião Adoniran
Todos silenciam para escutá-lo, eu me faço de mudo. Reconheço os perigos da boca solta
─         Caso não tenhamos mais nada a tratar com as forças da segurança...
Entendi a minha deixa, mas me compromissei que essa era a última vez que sou o primeiro a sair
─         Com a permissão dos senhores e da senhora...
Levei os dedos ao bigode. A chefe midiática acusou o golpe, instinto
─         Contamos com os seus serviços.
─         Farei o meu melhor.
O soldado manco deles se ia. Fechei a porta atrás de mim, não sem antes bater os calcanhares em respeitosa e defeituosa reverência. Não me queriam servindo jantares ou chás, mas informações sigilosas e a execução de qualquer coisa difícil, muitas vezes, às pressas, mas nunca descuidadamente. Assim, passava o serviço secreto das informações com seus interrogatórios, confessamentos e denunciamentos de crimes do pensamento nas minhas mãos e andar manco. As minhas obrigações do ofício a ser cumprida com rapidez e eficiência eram as vigilâncias dos edifícios, residências, as vias de acesso, eventualmente, assassinar alguém por empreitada. Não podia desperdiçar oportunidades ou perder tempo, nem reclamar do serviço complicado, penoso ou desagradável. Tudo rachado em defesa da grande cavidade afundada nas aparências da ilha.
Meus passos imperfeitos retiravam a fanfarra da cadência, mas de qualquer jeito não se faziam mais ouvir entre os ruídos da governança, nem eu conseguia escutar os planos de piratagem. Preparava meu barco de pirata. Bucaneiro privatista.
Afinal, já tinha a perna de pau, um olho de vidro e a cara de mau.

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Leia também: 

I - O cadáver do Calçacurta 
III - General! Sinto saudades!

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