sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

XIX - General Calçacurta


Fico na posição de sentido

baitasar

Está chegando a hora das despedidas derradeiras. O término de tudo. A última olhadinha, mais um suspiro, uma gotinha de lágrima, um sorriso encoberto pelo véu da lamúria. Mas antes, tem a tal missa com o corpo presente — Santo Deus, não imaginava que o General tivesse tanto apreciador — isso aqui está insuportável: metediços, delator, abelhudos, falsários, informante, a imprensa do país está presente — É o mínimo, depois de tudo que o senhor fez — chega o momento do encerramento, sinto uma mistura de pena e alívio
─         Até pro senhor foi uma surpresa, hein... General?
─         Engana-se quem me pensa morto.
Tenho certeza que o senhor não vai confessar isso, mas sua morte de homem não foi prematura: foi espremida até a última gotinha
─         Chupa-racha, ainda tinha muito por fazer.
─         Só se é pra ficar cagando e mijando nas fraldas.
─         Chupa-racha!
─         Desculpe, General, mas é isso: quando acaba... acabou.
Reconheço que a casa ainda não está arrumada. Tem muito desordeiro solto. A corrupção corre e come solta. A mão do General vai fazer falta. Admito que algumas vezes ela desceu muito pesada, mas não tem como medir a força da mão quando se está em estado raivoso. Ela simplesmente bate.
Penso cá com meus botões: vou perder as simpatias de muita gente, as portas vão se fechar depois do confinamento do General Calçacurta no buraco de concreto
─         General, não sei se estaremos vivendo uma democracia no futuro, mas...
─         Soldado, talvez chegue o dia que a nossa gloriosa legião vá para as ruas garantir a segurança das pessoas de bem, defender os nossos valores de vida, colocando essa gentinha no seu devido lugar.
─         Quem sabe, General...
─         Chupa-racha, ficar engraxando fuzil e botina enche a paciência e o saco.
─         Como as pessoas vão entender o que o senhor fez?
─         Muitas coisas sobre esses anos serão descritas de forma invertida!
─         Seremos os vilões?
─         Isso, Chupa-racha, e não teremos como contestar. A verdade é que não há provas concretas acerca das torturas.
Baixa a voz e sussurra pra não ser ouvido
─         Falácias não são provas e as evidências se houveram... sumiram.
Espero que o Jacaré não tenha esquecido de buscar o padre. Coisa de ficção pro General. Enquanto viveu não respeitou nenhum padre, se tivesse que baixar o porrete não era algum eclesiástico que o impediria. O religioso que abandonou a fé e a razão levou cacete — Chupa-racha, quem mandou colaborar com os comunistas que não tinham fé e pensavam terem razão, mandei descer o cacete — não tinha jeito, com batina ou sem batina a madeira cantava.
Vejo, lá pelos meios do povaréu, o Jacaré trazendo o padre. Espero que o discurso seja pequeno. Sem provocações.
Junto com o Jacaré chegou o casal de namorados. Ficam pra trás, à sombra do jatobá de mãos dadas, olham pro funeral
─         Beijamim, acho que todos vão gostar.
─         Vamos festejar isto...
─         Mas ninguém sabe quem somos.
─         A gente precisa se organizar e lutar pelos nossos direitos.
─         Precisamos da ajuda do povo.
─         Não dá, tá tudo censurado.
─         Beijamim, o que estamos fazendo com a nossa vida?
─         Usamos a nossa vida na luta para acabar com a miséria, a injustiça e o sofrimento do povo.
─         Amor, essa luta já ta perdida. É a guerra do pobre contra o rico.
─         Pois que seja.
─         Amorzinho, estou grávida.
Estico o pescoço no tempo de ver o rapaz abraçar a menina e ergue-la do chão
—        O amor é lindo — tenho a boca amarga e com gosto de esgoto. Não deveria ter dito nada, minha voz soou traidora e velhaca. Recebo um pezão no pé e não disfarço a dor — Merda! Olha por onde pisa — já tenho muito disfarce pela cara, chega um tempo que qualquer motivo é motivo — Desculpe, coronel U — esse foi mais sinistro que o General, não ganhou sua estrela porque tem muito sangue nas mãos.
Gente, o que já estava ruim, pela multidão que se via, ficou pior. As pessoas perceberam que a tal missa com o corpo presente as despedidas finais estavam pra começar, como rastilho de pólvora o aviso da missa do General se espalha. Aquela gente toda adiantava e recuava em movimento de pinça: compartilhava da maneira mais próxima àquela cena de adeus e indulto. Como se as gotas da benção sobre o morto pudessem se estender a todos os presentes
—        Chupa-racha, a alma do negócio foi o segredo, não é preciso perdão.
—        O problema não é esse, General.
—        Desembucha, soldado.
—        Não se fala em perdão, mas em prisão — de repente, lembrei que não treinei o Jacaré sobre o assunto do padre. Não sei o que esse padreco tem pra falar do General, não conheceu o cadáver em vida, com toda certeza não o conheceu o nosso morto. Espero que o Jacaré tenha instruído bem o eclesiástico.
Já passamos a metade da manhã e a hora se aproxima. O calor fica a cada minuto mais intolerável. O Jacaré me acena de longe, não consegue se aproximar. Peço que as peças do tabuleiro se afastem um pouquinho pra que o padre possa chegar perto do morto
─         Por favor, um pouquinho de paciência.
─         Está muito desorganizado.
─         É muita gente, senhor.
─         Isso é para mostrar que não terminou.
─         O que não terminou, senhor?
─         A nossa luta pela liberdade e contra a corrupção.
Estou atropelando os fãs suavemente, empurro o general-de-exército e a sua cadeira de rodas entre os que ficam no caminho até o esquife do General Calçacurta
─         Não poderia deixar de vir e render minhas homenagens a esse camarada de armas.
─         Por certo, onde quer que o General esteja ele está agradecido.
─         Não fala bobagem soldado, o homem está morto.
─         Mas senhor...
─         Soldado!
─         Sim, senhor! — parei de empurrar a cadeira rolante e me coloquei à sua frente, em posição de sentido, aguardando o que tinha pra me dizer
─         Eu venho me mostrar para os vivos.
Decido fazer silêncio e volto pra minha posição de guardar o defunto.
Com o padre já em posição, todos fazem o sinal da cruz e rezam. Eu continuo na dúvida se saio da minha atitude de guarda-costas e participo junto das benzeduras ou faço de conta que é mais importante manter meu posto de sentinela. Merda, não tem ninguém pra me mandar. Tem certas coisas que tenho que decidir sozinho. É a vida. Meu Senhor me perdoe, mas o ritualístico da guarda de honra não pode se misturar com essas coisas de religião. Fico na posição de sentido
─         E que Deus me perdoe! — sussurro para que o menino Jesus me escute e perdoe.
 O capelão começa a falar depois das rezas
─         Meus queridos irmãos e irmãs, estamos aqui para honrar a memória deste ente querido que se foi, atendendo ao chamado do Senhor...
A voz do capelão se vem e se vai, resolvi que não quero estar mais ali.
Este é o meu inferno, o que decido não vale, não tem importância pra ninguém, nem pra mim. Por isso, continuo em pé, imóvel, aguardando as ordens de avançar e dispersar
─         Irmãos e irmãs, o inferno de cada um por certo é carregado em vida...
—        E o paraíso podemos carregar em vida — como um ladrão disfarçado, procuro pelo Jacaré. O diabo sumiu.
Lá estão os dois mancebos doidos do jatobá
─         Precisamos de ajuda pra tirar ela daqui.
─         Estou grávida.
─         Que encrenca, menina...
─         Essa criança vai viver numa terra de gente livre.
A voz do capelão some e retorna. Vai e vem em ondas. Olho pras pessoas e as vejo em total concentração, como se cada palavra ali pronunciada fosse a redenção, e assim, pudesse justificar nossas vidas, mentem pra si mesmas, nenhuma lágrima
─         Irmãs e irmãos, não existe maior tortura que vivermos longe do Senhor...
Talvez o capelão tenha razão ou minta pra si mesmo. Talvez não tenha assistido nenhuma tortura, nem mesmo eu assisti, mas os gritos eu não posso negar. Ficava sentado no carro enquanto aquelas súplicas desesperadas saiam pelas frestas da Adega. Folheava nervoso o gibi do Super-Homem e enfiava chicles na boca até quase não respirar. Não posso recusar a minha culpa de eliminação. Eu ouvi e fiz que não ouvi, mas pelo jeito não foi só eu
─         Chupa-racha, não fraqueja1 Era uma guerra!
─         Mas, General, mulheres grávidas...
─         Ah, por acaso queria que aqueles pequenos comunistas nascessem?
─         O senhor não está dizendo isto.
─         Mataram e mutilaram quem os combatia. Muitos outros inocentes foram mortos.
A voz do capelão volta a se fazer insinuante
─         É hora de se virar a página do livro definitivamente, já é hora de esquecer. Perdoar. Amém — uma salva de palmas agradece as palavras do eclesiástico e um coro entusiasmado responde ─ Amém!
─         Oremos, irmãos.
O Jacaré me olha pedindo aprovação... ergo o polegar.

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