Choupana
onde se ri, vale mais que palácio onde se chora
A vila
Boa Esperança estava no meio daquelas discussões: desocupa ou não desocupa. Atravancava
a parte de baixo de uma área aristocrática. Barracões e carroças por certo
teriam por destino desaparecer. Infalível. Indigência e penúria não combinam
com creme firmador para o corpo.
Ninguém
tinha futuro com eles ali, na porta de entrada, pobreza atrai mendicância, que
alicia tudo que é ruim e machuca o nariz. Essa gente maconheira fede. Tapuios de pele
avermelhada e cabelo tição escorrido, brancos viajantes, alguns
contrabandistas, outros traficantes, e pretos, muitos pretos
─ Aquela gentarada feia e esparramada
entristece a vista — esse era o nomeado para cuidar das benfeitorias na cidade.
Venhamim. Sonha
com o poder como precisa do ar para respirar. É um lobisomem com a necessidade
do sangue dos seus beatos. O povo não tem alma, não são pessoas, mas os apertos
de mãos ordinários, os sorrisos e as poses, os fingimentos de bondade. Tudo
encenado onde só existe a indiferença. A ambição cerra o coração, não tem outro
jeito. Ele não conhece outro jeito ─ ali, não tem nada, não tem vida.
Em meio as opiniões e
saudações o Homem foi puxado pelo braço, afastado dos gritos e alaridos. O
Mormaço o levou até a sacada de tantos discursos e mentiras. Eu e o Consumo os
seguimos, vigiamos a retaguarda. As ruas estão vazias e a noite cobre aquela
terra com sono. Uma cidade banhada por rios de águas sacrificadas pelo homem.
Ainda estou com a caderneta de anotamentos
— Não podemos deixar que tudo se quebre por ganâncias
apressadas.
— Constantino, precisamos cuidar dos nossos!...
— Eu sei, eu sei... vocês mais que os outros deviam saber que
os amigos dos meus amigos, são meus amigos.
— Chefe, tem muita gente ansiosa na volta...
— Estão se queixando que foram esquecidos.
— Merda, digam aos que têm a nervura agitada, que depois de
quebrada, a taça não consegue colar...
— Mas...
— ... Esses entendimentos são remendos que precisam de tempo
para acontecer.
— E o que dizemos?
— Paciência.
Voltamos para o ninho da
discussão. No caminho da sacada até a sala recheada com estofados de couro, vou
pensando que não quero o emprego do Venhamim, não levo jeito e nem tenho tanta
conversa mole. São muitos os candidatos que não se elegeram e precisam se
colocar a receber dos cofres do dinheiro público. Nunca fui homem de deixar os
meus na mão, mas quem parte e reparte e não fica com a melhor parte tem falta
de alguma inteligência
— Precisamos de medidas protetivas — voltamos
ao assunto
— Quero abrir as janelas do meu
apartamento sem o risco de assistir cenas constrangedoras — o nomeado não ia
deixar por menos — sonho com casarões
construídos em pedras francesas ou portuguesas, solários voltados para as
margens, oferecendo vista panorâmica.
O Concreteiro
se apressa na solução. É o homem do governo civil que cuida de construir e
desmanchar, escolhido no dedo pelo Prefeito Venhamim
─ Desmontamos tudo e armamos o feiúme em
outro lugar.
─ Mais adequado, espero.
Não fiquem assombrados,
cada qual é para o que nasce: eu da porrada e sei que todos vão me trair no
primeiro desânimo da derrota — tenho que concordar com o Venhamim: os pecados e
as mentiras se misturam às virtudes
─ Longe das vistas e do nariz —
reafirmava o homem das obras públicas do Prefeito Venhamim.
Eu
continuava observando os urubus-reais de cabeça pelada. Anotava lembretes entre
seus nomes. Fraquezas e virtudes. As imperfeições e as debilidades me punham
alertado
─ Se eu pudesse os exportaria para a
caatinga e o sertão.
─ Algum lugar bem longe — me sugere o
Concreteiro, depois de um sorriso cúmplice atirado em meu colo.
E
sinceramente eu também não ligo a mínima para essa gente que não é gente.
Assim, o meu circo foi inventado. E quando o assunto era perder a alma,
chamavam o manco do Calçacurta. E eu já entrava no cardume com a cara fechada,
experimentavam a força do medo.
Tinha
suposições e começava a me por em prática.
A caverna lonada verde-oliva protegia, mas só aos que
se dispunham pagar o preço de ficar em silêncio sobre o que viam. Adorava
aquele jogo: ver e não ver tudo que enxergavam e não queriam explicar.
Mas só o medo não funcionava, com alguns o silêncio da
mudez e a cegueira da visão eram comprados com pequenos favores, diminutos
cargos de confiança, faltas abonadas, cargos preenchidos no afastamento da
lonjura, até mesmo bundas foram usadas
─ Chupa-racha!
─ Sim
senhor, General!
─ Todos
têm um preço.
No final, tudo ficava acomodado e apenas existia esse
mundo das chantagens e sumiços. Dava um pouco de trabalho, mas nada que não
pudesse ser combinado ou consertado.
Gostava do meu cassaco de couro. Marrom com muitas
costuras. Comprido até quase os joelhos. Arrastava um dos pés para lá, enquanto
marchava com o outro para cá. O casaco me disfarçava. O boné foi uma invenção para
anoitecer os olhos. Fazia uso de um boné de lã em estilo italiano, estampado
xadrez, no tom do casaco de couro, com cobertura, forro e cobertura para orelha
que mantinha sempre presa acima do boné.
Quando anoiteceu a madrugada, encostamos os caminhões.
Os coitados não entendiam o que acontecia. Não conversamos, tínhamos ordens
para executar com precisão de cumprimento imediato. E assim foi feito
─ Subindo
no caminhão!
─ O que
está acontecendo?
─ Não
interessa, sobe logo!
─ Mas...
─ Sobe
depressa que o pau vai descer!
— Por que?
— Não
complica e escuta com atenção: choupana
onde se ri, vale mais que palácio onde se chora — adorava essa frase, li num
pedaço de jornal enquanto cagava. Saber ler é muito importante.
Subiram... foi fácil demais. Não conseguiam seguir
para lugar algum parecia que afundavam em areia movediça.
Na pressa uns ficaram para trás e se perderam.
Acontece.
A gente da imprensa foi avisada para ficar em casa.
Velhos e velhas foram empurrados para cima, bêbados
arrastados, mulheres e crianças atirados para dentro, ninguém tinha autorização
de permanência. Nem havia tempo para alguma explicação. O último passageiro
subiu na boléia dos caminhões e partiu. Os arames farpados e as barracas de
lona seguiam atrás.
Depois, os motores das máquinas e tratores foram
ligados e avançaram sobre a Vila Boa Esperança que se mudava. O show do
quebra-nozes foi rápido. Nada ficou em pé. A Esperança estava no chão,
arriada em palitos queimados
─ Chupa-racha,
o que tinha que ser feito foi feito.
─ Não lembro
dessa ação, senhor!
─ Foi
antes, meu primeiro trabalho de relevância...
A turma da limpeza chegou com pás e vassouras. Era a
operação rescaldo. Fizeram tudo desaparecer
─ Nunca
houve uma Vila Esperança, nem boa nem má.
Já no amanhecer chegou o pessoal do ajardinamento.
Aquela grama bem verdinha ficou muito bem. As flores, os bancos, o balanço,
tudo perfeito
─ Chupa-racha,
assim nasceu o Parque Jardim da Paz!
Já
não consigo abrir os olhos, a voz não me sai, mas sinto meus pés úmidos. Sujos
do sangue que escorreu pelo chão do matadouro.
Pressinto que nem a morte vai me parar.
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