sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

XI - General Calçacurta


Choupana onde se ri, vale mais que palácio onde se chora

baitasar 

A vila Boa Esperança estava no meio daquelas discussões: desocupa ou não desocupa. Atravancava a parte de baixo de uma área aristocrática. Barracões e carroças por certo teriam por destino desaparecer. Infalível. Indigência e penúria não combinam com creme firmador para o corpo.
Ninguém tinha futuro com eles ali, na porta de entrada, pobreza atrai mendicância, que alicia tudo que é ruim e machuca o nariz. Essa gente maconheira fede. Tapuios de pele avermelhada e cabelo tição escorrido, brancos viajantes, alguns contrabandistas, outros traficantes, e pretos, muitos pretos
─         Aquela gentarada feia e esparramada entristece a vista — esse era o nomeado para cuidar das benfeitorias na cidade. Venhamim. Sonha com o poder como precisa do ar para respirar. É um lobisomem com a necessidade do sangue dos seus beatos. O povo não tem alma, não são pessoas, mas os apertos de mãos ordinários, os sorrisos e as poses, os fingimentos de bondade. Tudo encenado onde só existe a indiferença. A ambição cerra o coração, não tem outro jeito. Ele não conhece outro jeito ─ ali, não tem nada, não tem vida.
Em meio as opiniões e saudações o Homem foi puxado pelo braço, afastado dos gritos e alaridos. O Mormaço o levou até a sacada de tantos discursos e mentiras. Eu e o Consumo os seguimos, vigiamos a retaguarda. As ruas estão vazias e a noite cobre aquela terra com sono. Uma cidade banhada por rios de águas sacrificadas pelo homem. Ainda estou com a caderneta de anotamentos
—        Não podemos deixar que tudo se quebre por ganâncias apressadas.
—        Constantino, precisamos cuidar dos nossos!...
—        Eu sei, eu sei... vocês mais que os outros deviam saber que os amigos dos meus amigos, são meus amigos.
—        Chefe, tem muita gente ansiosa na volta...
—        Estão se queixando que foram esquecidos.
—        Merda, digam aos que têm a nervura agitada, que depois de quebrada, a taça não consegue colar...
—        Mas...
—        ... Esses entendimentos são remendos que precisam de tempo para acontecer.
—        E o que dizemos?
—        Paciência.
Voltamos para o ninho da discussão. No caminho da sacada até a sala recheada com estofados de couro, vou pensando que não quero o emprego do Venhamim, não levo jeito e nem tenho tanta conversa mole. São muitos os candidatos que não se elegeram e precisam se colocar a receber dos cofres do dinheiro público. Nunca fui homem de deixar os meus na mão, mas quem parte e reparte e não fica com a melhor parte tem falta de alguma inteligência
—        Precisamos de medidas protetivas — voltamos ao assunto
—        Quero abrir as janelas do meu apartamento sem o risco de assistir cenas constrangedoras — o nomeado não ia deixar por menos — sonho com casarões construídos em pedras francesas ou portuguesas, solários voltados para as margens, oferecendo vista panorâmica.
O Concreteiro se apressa na solução. É o homem do governo civil que cuida de construir e desmanchar, escolhido no dedo pelo Prefeito Venhamim
─         Desmontamos tudo e armamos o feiúme em outro lugar.
─         Mais adequado, espero.
Não fiquem assombrados, cada qual é para o que nasce: eu da porrada e sei que todos vão me trair no primeiro desânimo da derrota — tenho que concordar com o Venhamim: os pecados e as mentiras se misturam às virtudes
─         Longe das vistas e do nariz — reafirmava o homem das obras públicas do Prefeito Venhamim.
Eu continuava observando os urubus-reais de cabeça pelada. Anotava lembretes entre seus nomes. Fraquezas e virtudes. As imperfeições e as debilidades me punham alertado
─         Se eu pudesse os exportaria para a caatinga e o sertão.
─         Algum lugar bem longe — me sugere o Concreteiro, depois de um sorriso cúmplice atirado em meu colo.
E sinceramente eu também não ligo a mínima para essa gente que não é gente. Assim, o meu circo foi inventado. E quando o assunto era perder a alma, chamavam o manco do Calçacurta. E eu já entrava no cardume com a cara fechada, experimentavam a força do medo.
Tinha suposições e começava a me por em prática.
A caverna lonada verde-oliva protegia, mas só aos que se dispunham pagar o preço de ficar em silêncio sobre o que viam. Adorava aquele jogo: ver e não ver tudo que enxergavam e não queriam explicar.
Mas só o medo não funcionava, com alguns o silêncio da mudez e a cegueira da visão eram comprados com pequenos favores, diminutos cargos de confiança, faltas abonadas, cargos preenchidos no afastamento da lonjura, até mesmo bundas foram usadas
─         Chupa-racha!
─         Sim senhor, General!
─         Todos têm um preço.
No final, tudo ficava acomodado e apenas existia esse mundo das chantagens e sumiços. Dava um pouco de trabalho, mas nada que não pudesse ser combinado ou consertado.
Gostava do meu cassaco de couro. Marrom com muitas costuras. Comprido até quase os joelhos. Arrastava um dos pés para lá, enquanto marchava com o outro para cá. O casaco me disfarçava. O boné foi uma invenção para anoitecer os olhos. Fazia uso de um boné de lã em estilo italiano, estampado xadrez, no tom do casaco de couro, com cobertura, forro e cobertura para orelha que mantinha sempre presa acima do boné.
Quando anoiteceu a madrugada, encostamos os caminhões. Os coitados não entendiam o que acontecia. Não conversamos, tínhamos ordens para executar com precisão de cumprimento imediato. E assim foi feito
─         Subindo no caminhão!
─         O que está acontecendo?
─         Não interessa, sobe logo!
─         Mas...
─         Sobe depressa que o pau vai descer!
—        Por que?
—        Não complica e escuta com atenção: choupana onde se ri, vale mais que palácio onde se chora — adorava essa frase, li num pedaço de jornal enquanto cagava. Saber ler é muito importante.
Subiram... foi fácil demais. Não conseguiam seguir para lugar algum parecia que afundavam em areia movediça.
Na pressa uns ficaram para trás e se perderam. Acontece.
A gente da imprensa foi avisada para ficar em casa.
Velhos e velhas foram empurrados para cima, bêbados arrastados, mulheres e crianças atirados para dentro, ninguém tinha autorização de permanência. Nem havia tempo para alguma explicação. O último passageiro subiu na boléia dos caminhões e partiu. Os arames farpados e as barracas de lona seguiam atrás.
Depois, os motores das máquinas e tratores foram ligados e avançaram sobre a Vila Boa Esperança que se mudava. O show do quebra-nozes foi rápido. Nada ficou em pé. A Esperança estava no chão, arriada em palitos queimados
─         Chupa-racha, o que tinha que ser feito foi feito.
─         Não lembro dessa ação, senhor!
─         Foi antes, meu primeiro trabalho de relevância...
A turma da limpeza chegou com pás e vassouras. Era a operação rescaldo. Fizeram tudo desaparecer
─         Nunca houve uma Vila Esperança, nem boa nem má.
Já no amanhecer chegou o pessoal do ajardinamento. Aquela grama bem verdinha ficou muito bem. As flores, os bancos, o balanço, tudo perfeito
─         Chupa-racha, assim nasceu o Parque Jardim da Paz!
Já não consigo abrir os olhos, a voz não me sai, mas sinto meus pés úmidos. Sujos do sangue que escorreu pelo chão do matadouro.
Pressinto que nem a morte vai me parar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário