quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

XVII - General Calçacurta


Um pau mandado

baitasar

Acordei as duas mulheres no amanhecer. Precisavam ter um tempo pra recompor a decência depois da noite mal dormida. Olhava a viúva como o senhor observava os amigos, indiretamente, pelos espelhos
—        General, eu não pude deixar de admirar dona Clara, desculpe — continua com o mesmo brilho que tinha quando o morto me convocou pra este tempo todo de mentiras
 — Baita papelão, seu velhaco, nunca foi milico e mandava como se as estrelas fossem de verdade.
—        Cuidado, soldado, estamos em público.
─         E eu, o que eu sou, General?
─         Um pau mandado.
─         Deixei de ser.
─         Nunca vai se livrar desta marca em brasa.
O senhor é mesmo um grande sacana, morre e quer me deixar com o carimbo de ajudante de torturador. O senhor sabe que nunca fui disso e se esse povo acorda, vão querer respostas
─         Tortura em tempo de guerra não é tortura.
─         General... de que guerra o senhor está falando?
Talvez, a guerra pudesse abrir os portões do inferno, mas não se pode depois fechá-los como se nada tivesse acontecido. Só posso afiançar que eu não sabia e nunca abati ninguém. Jamais desmanchei a bainha da cintura e a carabina nunca saiu do seu estojo de guarda, não tenho marcas de pólvora nos punhos nem cheiro de sangue nas mãos
─         O General poderia dar uma declaração dizendo isto?
─         Dizendo o quê?
No final das contas não fui torturador nem covarde, fui cabeça-seca do capitão-do-mato Calçacurta, e agora, me descubro como alguém que não existiu. Signifiquei um soldado que não viveu do mesmo jeito que não tem morto por tortura, foi tudo mentira
─         Bom dia, Himineu.
─         Vamos ver dona Clara, vamos ver.
─         Bom dia, Himineu.
─         Bom dia, Moriá.
Saíram juntas pro café e fiquei sozinho, novamente. Não consigo me livrar da solidão de servir esse morto. Acho que a exaustão alcança tudo, mais dia menos dia, nada tem jeito de ser pra sempre
—        O medo é pra sempre, guri.
─         Bom dia, General!
─         Chupa-racha, vamos ver... vamos ver.
Ainda não decidi se aceito continuar com esta cena de chocarreiro. Guarda de honra pra milico de faz de conta. Guarda de honra imaginário. Estou parado, olhando de frente o defunto diminuído de posto. Uma vida de calúnias, General. Não tenho mais confiança nesses fatos que saíram da sua boca, parece notícia de Zé Barriga querendo algum proveito do que aparece escrito no jornal ou fica escondido dentro da caneta. Discurso de um pesadelo.
Na verdade, o senhor poderia me fazer um favor e confessar que tudo foi mentira. Tudo feito por capricho e gula. Um grande filho-da-puta lambão. E quanto a mim, apenas outro fantoche. Boneco de engonço.
O Pedro Jacaré chega de mansinho, feito guri mijado
─         Bom dia, Himineu, tudo bem?
─         Isso são horas, Jacaré?
─         Cabo, deu confusão no quartel...
─         O que foi?
─         O tenente Rubão desmontou a guarda que eu já preparava para trazer para os serviços.
─         Tudo bem.
─         Como assim, tudo bem? A despedida do General sem salva de tiro?
─         Esse já deu muito tiro na vida, pode passar sem uns barulhinhos.
─         Não acredito.
─         Esquece, Jacaré, vamos nos concentrar em organizar os detalhes da cerimônia e o desfile, lá do quartel não vem reforço.
─         Só nós dois?
─         Não precisa mais.
─         Tem certeza?
─         Tenho.
Chamei o soldado Pedro Jacaré pro canto. Esse sim, um soldado de verdade. Coloquei no papel as providências que cabiam a mim e as medidas prévias que ele deveria desenredar. Tudo bem revisado e explicado
─         Sem desculpas, Jacaré.
─         A missão será cumprida.
─         Positivo!
─         Positivo operante.
Peço que fique um instante a guardar as honras do morto. Saio pra respirar aqueles ares matinais.
Vou até o jatobá e sento no banco. Está vazio. Noto que estou aborrecido, esperava encontrar os dois namorados. Incluo nos pensamentos um pequeno descontentamento. Estou ali sozinho, olhando paredes que escondem corpos desmanchando. Guardam aquilo que já foi cheio de vida um dia. Abro meus braços e os deixo estendidos sobre a madeira do acostamento. Olho pros armários encravados e não posso deixar de pensar que essas gavetas embutidas guardam segredos esfarelando das memórias. Os vermes desmatam ideias, impressões, imagens, consciência, lembranças do passado. Acho que não vai ter, pelo menos por esses dias, memorial pro senhor, General. Tudo pra estimular o seu esquecimento: no máximo, o senhor consegue pendurar seu nome em alguma rua perdida do mapa da cidade
─         Bom dia, moço.
Apenas respondi
─         Bom dia!
Não precisei olhar pra saber que era a moça da madrugada
─         Quem é você?
─         Himineu.
─         Ah...
Aquele olhar não era de uma guerrilheira ou morta-viva, mas de uma menina encantada
─         O que vocês fazem aqui?
─         Namoramos.
─         Num funeral?
─         Onde mais poderia ser?
Recolho meus braços e peço pra que sente. Ela apenas vai deslizando, se afasta sem despedidas. Não parece na vontade de sentar comigo. Desaparece entre as catacumbas. Volto a ficar sozinho e com a aflição da conversa interrompida. Na próxima agarro pelo braço e faço sentar.
Retorno pro meu serviço de guarda e rendo o Jacaré com saudação de continência, ele sai como chegou, pelas sombras.
A viúva e a filha voltam trazendo café e sanduíche. Devoro aquele pão e me aqueço com o café. Evito um bocejo e a vontade de abrir os braços em espreguiçamento. O sono está controlado. Passei minha vida de soldado - ex-soldado: paisano desconhecido de mim mesmo - ajuizando a sonolência. Ela vem, sempre vem, busca nos colocar na cabeça vontades de abandonar tudo e adormecer. Nunca me permitia cair nestas tentações. Jamais adormeci em ocupação de ficar de guarda. Fui criado pra cumprir ordens, numa família de militares.
Minha mãe cuidava do padre da nossa paróquia, dizem, eu não sei muito bem, nunca me falaram, mas ouvi histórias por aqui e ali, e alguma coisa que o General Calçacurta concordou em falar. Parece que ela cansou das neuroses de guerra do meu avô e fugiu com o padre.
O meu avô desfilava na parada militar da independência.
Quando fugiram levaram todo o vinho da missa e o pão das hóstias. Estavam em guerra com a igreja e os militares da família. Os dois foram excomungados e meu pai declarou minha mãe desertora. Em seguida, ele se alistou na marinha e jamais voltou. Nasci depois dessa fuga, acho que fui excomungado junto
─         Cabo Himineu, monte guarda! Ninguém passa!
─         Ninguém passa, General.
Descia do carro e ficava à porta do puteiro. Só puta bonita e alegre entrava. Essa era a senha. Quando alguma bruxa ficava descontente e criava confusão eu chamava o reforço pelo rádio. Lá vinha o Jacaré com uns brutamontes, membros da comunidade das cavernas. Rapaziada da polícia do exército, loucos pra liberar sua força desinfetante. Faziam a limpeza de pureza da putaria. Cafetão e puta feia levavam cacete e iam à cana. Não tinha conversa mole: bunda gostosa e boca carnuda, hálito de menta com os dentes limpinhos eram a senha.
As visitas de condolência começam a chegar
─         Cabo Himineu... monte guarda!
─         Sim senhor, General!
─         Hoje, não tem senha.
─         Entendi, senhor, todo mundo passa.
─         Isso mesmo.
Volto a fazer o meu papel de fantasia. A diferença é que agora eu sei que é tudo fingimento. Preferia que a dona Clara tivesse feito silêncio e contado as invenções do General depois das cerimônias. Não estou confortável no papel de bobo da corte. É melhor quando a gente faz o que tem que fazer sem saber das razões. Cumprimento do dever: execução das ordens e pronto, sem necessidades de explicações nem culpas de remorso. O álibi de estar cumprindo a burocracia. Perfeito. Manda quem pode, obedece quem precisa.
Estou no lugar da guarda de honra. Viro o canto do olho pro morto
─         General, está me ouvindo?
─         Desembucha, Chupa-racha...
─         Senhor, eu não gostei dos esclarecimentos da dona Clara.
─         Sei, foram inoportunos.
─         Pois é, General...
─         Tem ocorrência que soldado não precisa conhecer, a cabeça fica confusa.
─         Isso mesmo, senhor.
─         Subordinado não tem que pensar se deve ou não cumprir o comando superior.
─         Senhor, ordens são pra serem cumpridas.
─         Isso, cabo, milico não pensa. O subalterno cumpre a ordenação motivada pelo superior.
─         Positivo, General.
O General viveu como milico, pois vai ser enterrado como milico. Com direito a guarda de honra de um homem só, se o Jacaré chegar no tempo certo terá dois sentinelas. Só vai faltar a salva de tiros, mas todos concordaram que seria um exagero. Inclusive, o Pedro Jacaré aderiu ao silêncio na cerimônia
─         Bom, já que somos apenas nós a tal da guarda, vamos esquecer de fazer barulho de pólvora.
─         Isso, Jacaré, vamos manter a desafetação.
O calabouço em sossego será nossa homenagem.
As horas do dia estão se enchendo e a câmara mortuária está abarrotando de gente. O prestígio do General ainda existe. Pelo menos, entre aqueles que conviveram com o morto e lhe devem um ou outro favor. No negócio de deixar que os outros lhe ficassem a dever alguma graça, o General foi sempre muito bom. Coisa simples ou complicada
—        Não interessa, sempre procuro resolver. — mas ficava com a conta na mão, nunca apresentava o título de crédito pelo serviço executado
─         Isso é poupança, generosidade do General.
Paro meus devaneios, pois parece que chegaram os graúdos. Opa, esse eu conheço, tá na reserva, mas tem mais estrelas que o deitado. É bem mais velho. Vem em cadeiras de rodas. Ex-General de exército
—        Respeito, soldadinho de merda, por aqui não tem ex de nada, uma vez quem foi... vai ser sempre.
—        Entendi, senhor. Não tem desistência.
—        Sem trânsfuga.
—        Mudar é crime e ninguém vai desertar das fileiras do passado.
 De repente me dou conta, porra meu, nunca mais vou ter outra chance de oferecer continência a prumo. Ergo a mão toda retesada e a levo a testa. Mantenho a palma da mão pra baixo. Faço a saudação militar de prestar continência. O aceno amigável que recebo é a senha que tudo continua como antes. No fundo da minha alma eu sou um milico. Não tem jeito, vivi a omissão de quem sabia e fez de conta que nunca soube, não segurei o porrete ou dei o choque
─         Isso mesmo, soldado...
─         Não to confessando nada.
─         Nem precisa!
─         Quem é você?
─         Por quê?
Olho na volta e não encontro ninguém perturbando o sossego do morto. O General mantém silêncio. Levanto a olhada acima das cabeças, na direção do jatobá: ele está lá. Olhar arrogante
─         Estamos chegando.
─         Quem está chegando?
─         Estamos chegando!
O burburinho é mais forte que as minhas forças de ouvir aquele jovem. Acho que desiste de continuar por aqui. Não o vejo mais. De qualquer maneira, o meu tempo de segurança está ficando escasso, mais um pouco e tudo isso acaba.

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