Onde estão nossos filhos?
Os movimentos de entrada e saída do velório não são dos vivos, nem dos
mortos. A notícia ainda não se alastrou, mas já se percebe que as coisas no
cemitério não são normais. O vento que venta já não assobia. Um bando de
sabiá-laranjeira começa a se chegar às árvores sem alaridos. As rolinhas e os
pardais também se abaixam dos seus voos: em silêncio. O trânsito
de tico-tico está normal pra um horário em que sempre está caótico. Os
aperitivos dos bares, cafés, padarias e restaurantes que funcionam dia e noite,
longe dos escritórios, estão vazios.
Acho que as pessoas ficaram em suas casas com medo da desordem dos
últimos anos e a perda do general da guerra. Um conquistador de terras e
destruidor de vontades. Por suas mãos e botas passaram jovens que nunca irão
envelhecer, jamais deixarão de serem moços. Calados pra sempre.
Um anoitecer diferente.
Menos mal que os barzinhos do cemitério seguem o seu ritmo normal de
anoitecer. A chaleira com água e o bule com café esquentando na chapa. Os
cafezinhos acordarão os poucos que ficarem à noite fria: os préstimos ao
defunto estrelado. São nas madrugadas que se conhecem os amigos mais chegados.
Gente de confiança pra guardar o morto ilustre das guerras contra os civis
desalmados
─ Ai ai ai, deixa isso para
lá, já passou.
─ Já sei, General, nada de
espantar as visitas.
Continuo de sentinela. Olho atrás da porta e procuro por alguma vassoura,
nenhuma em pé ou de cabeça virada. Nada espanta as visitas, só o defunto do
falecido. Ele virou coisa desnecessária nesse tempo de abundância: muita quietude
e pouco inimigo pra assombrar. Ninguém há de querer retirar na força o morto.
Os jovens que escaparam das suas botas, não resistiram ao tempo. Perderam a
frescura e tornaram-se desusados e inúteis pra os jovens desinconformados destes dias. Outros tempos, outras mortes, outras
inconformidades
─ Mentira! As mesmas mortes
estão insepultas!
─ Quem é essa, General Calçacurta?
─ Nunca vi mais gorda e
velha, Chupa-racha.
Olho pros lados procurando pela mulher
─ O senhor tem alguma
notícia do paradeiro do meu filho?
─ Minha nossa, mas quem é
essa? Como se atreve?
─ Estou aqui, sempre estive
aqui implorando aos seus pés.
Trás na voz o olhar suplicante de todas as mães com filhos desaparecidos,
aqueles foram anos de sumiços descontrolados e na vontade do chefe
─ O que essa outra quer?
─ Não sei, General.
─ Estou procurando meu filho...
desaparecido nas suas prisões.
─ Deve haver algum engano,
não temos nenhum desaparecido.
─ Não têm nenhum
desaparecido?
─ Não.
─ Parece então, que vou ter
que chamar um a um pelos seus nomes.
Aquela conversa estava tomando um rumo que não era apropriada para o
velório do general-herói
─ General Calçacurta?
─ O que foi, Chupa-racha?
─ Isso tudo está ficando
muito desconfortável...
─ Desconfortável, rapaz?
─ É sim, minha senhora.
─ Não me fale com se
soubesse da minha agonia, não me olhe como se reconhecesse minha dor.
─ Minha senhora...
─ Fique calado garotinho que
leva e traz, fingido de cego, deixe que o defunto torturador responda se tem
alguma notícia do paradeiro do meu filho.
Pela primeira vez reconheci que aqueles gritos ouvidos na Adega chamavam
por ela, e só por ela. É sempre a mãe o conforto que procura a luz pra sombra
da vida: enfrenta sem medo a tortura, os castigos ao corpo e as punições ao
espírito. Não podia ajudá-la. Perdera meu espírito pra conservar meu corpo,
enquanto ficava sentado naquele carro
─ Moço, desencanta esse daí
a tempo de contar das covas sem nome.
─ Ele se nega, afirma que
não sabe de nada.
─ Rapaz, essa ferida não
cicatriza enquanto cada um deles não aparecer. Mesmo quando o tempo afastar
nossas vozes, elas continuaram perguntando...
─ Perguntar sobre o quê?
─ Onde estão nossos filhos?
Um calafrio percorre meu corpo ainda vivo, carrego esse desconforto
permanente. Parece que o defunto do General Calçacurta se vai e deixa uma
espada apontando minha cabeça. Só me falta responder pelos desatinos do
filho-da-puta.
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Leia também:
VI - Envelhecer deveria ser coisa de pobre
VIII - Quem fez de conta que não viu, também perdeu a alma
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