segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

VII - General Calçacurta


Onde estão nossos filhos?

baitasar

Os movimentos de entrada e saída do velório não são dos vivos, nem dos mortos. A notícia ainda não se alastrou, mas já se percebe que as coisas no cemitério não são normais. O vento que venta já não assobia. Um bando de sabiá-laranjeira começa a se chegar às árvores sem alaridos. As rolinhas e os pardais também se abaixam dos seus voos: em silêncio. O trânsito de tico-tico está normal pra um horário em que sempre está caótico. Os aperitivos dos bares, cafés, padarias e restaurantes que funcionam dia e noite, longe dos escritórios, estão vazios.
Acho que as pessoas ficaram em suas casas com medo da desordem dos últimos anos e a perda do general da guerra. Um conquistador de terras e destruidor de vontades. Por suas mãos e botas passaram jovens que nunca irão envelhecer, jamais deixarão de serem moços. Calados pra sempre.
Um anoitecer diferente.
Menos mal que os barzinhos do cemitério seguem o seu ritmo normal de anoitecer. A chaleira com água e o bule com café esquentando na chapa. Os cafezinhos acordarão os poucos que ficarem à noite fria: os préstimos ao defunto estrelado. São nas madrugadas que se conhecem os amigos mais chegados. Gente de confiança pra guardar o morto ilustre das guerras contra os civis desalmados
─         Ai ai ai, deixa isso para lá, já passou.
─         Já sei, General, nada de espantar as visitas.
Continuo de sentinela. Olho atrás da porta e procuro por alguma vassoura, nenhuma em pé ou de cabeça virada. Nada espanta as visitas, só o defunto do falecido. Ele virou coisa desnecessária nesse tempo de abundância: muita quietude e pouco inimigo pra assombrar. Ninguém há de querer retirar na força o morto. Os jovens que escaparam das suas botas, não resistiram ao tempo. Perderam a frescura e tornaram-se desusados e inúteis pra os jovens desinconformados destes dias. Outros tempos, outras mortes, outras inconformidades
─         Mentira! As mesmas mortes estão insepultas!
─         Quem é essa, General Calçacurta?
─         Nunca vi mais gorda e velha, Chupa-racha.
Olho pros lados procurando pela mulher
─         O senhor tem alguma notícia do paradeiro do meu filho?
─         Minha nossa, mas quem é essa? Como se atreve?
─         Estou aqui, sempre estive aqui implorando aos seus pés.
Trás na voz o olhar suplicante de todas as mães com filhos desaparecidos, aqueles foram anos de sumiços descontrolados e na vontade do chefe
─         O que essa outra quer?
─         Não sei, General.
─         Estou procurando meu filho... desaparecido nas suas prisões.
─         Deve haver algum engano, não temos nenhum desaparecido.
─         Não têm nenhum desaparecido?
─         Não.
─         Parece então, que vou ter que chamar um a um pelos seus nomes.
Aquela conversa estava tomando um rumo que não era apropriada para o velório do general-herói
─         General Calçacurta?
─         O que foi, Chupa-racha?
─         Isso tudo está ficando muito desconfortável...
─         Desconfortável, rapaz?
─         É sim, minha senhora.
─         Não me fale com se soubesse da minha agonia, não me olhe como se reconhecesse minha dor.
─         Minha senhora...
─         Fique calado garotinho que leva e traz, fingido de cego, deixe que o defunto torturador responda se tem alguma notícia do paradeiro do meu filho.
Pela primeira vez reconheci que aqueles gritos ouvidos na Adega chamavam por ela, e só por ela. É sempre a mãe o conforto que procura a luz pra sombra da vida: enfrenta sem medo a tortura, os castigos ao corpo e as punições ao espírito. Não podia ajudá-la. Perdera meu espírito pra conservar meu corpo, enquanto ficava sentado naquele carro
─         Moço, desencanta esse daí a tempo de contar das covas sem nome.
─         Ele se nega, afirma que não sabe de nada.
─         Rapaz, essa ferida não cicatriza enquanto cada um deles não aparecer. Mesmo quando o tempo afastar nossas vozes, elas continuaram perguntando...
─         Perguntar sobre o quê?
─         Onde estão nossos filhos?
Um calafrio percorre meu corpo ainda vivo, carrego esse desconforto permanente. Parece que o defunto do General Calçacurta se vai e deixa uma espada apontando minha cabeça. Só me falta responder pelos desatinos do filho-da-puta.

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VI - Envelhecer deveria ser coisa de pobre
VIII - Quem fez de conta que não viu, também perdeu a alma

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