Cutucaram a onça com vara curta
Eu vivia dias de mandar. Adivinhava e seguia pelo faro as fraquezas da
lama humana. Todos têm os pés enlameados, basta prestar atenção nas pisadas.
Ninguém fez isso melhor. A sujeira dessa gentarada comunista nunca foi o maior
perigo, mas, se é que me entende, o maior perigo foi o aborrecimento que sinto
por essa ralé, capaz de me obrigar a exercitar atos alucinados e inumanos. Eu
os culpo pelo meu descontrole. A bagunça que me obrigavam saborear
— A Segurança Nacional em
primeiro lugar!
As aparências enganam, mas não um bom soldado. Eu sabia onde estavam as
informações e como a asa-de-telha iria cantar. Nunca fez postura no próprio
ninho. Usava o ninho de outras aves. Era questão de tempo, dedicação e
oportunidade descobrir os cabarés da gentalha.
Mas Chupa-racha chega dessa conversa, quero mudar o assunto deste nosso
bate-papo amigável: eu adorava ficar olhando aquela gurizada, toda bonita de
uniforme e cabelo cortadinho, marchando, fortes, limpinhos
─ Direita, esquerda,
direita, esquerda...
Não perdiam o alinhamento
─ Barriga para dentro, peito
para fora, queixo esticado,cabelo cortado!
Gostavam de aparecer bem vestido nas roupas de fardamento.
Impecável.
Camisas e calças frisadas. E engomadas.
As botas eu deixava para o meu funcionário, sempre estiveram brilhando
─ Meus parabéns, soldado!
Bom trabalho.
A cadência se misturava com os toques de corneta
─ Um dois feijão com arroz:
três quatro panela no prato!
Quando vinha autoridade, a guarda formava em uma fileira no interior do quartel,
logo após o portão das armas, dando a direita para a sua direção.
O clarim e a Banda de Música eram posicionados no local mais adequado.
O forte apache estava pronto
— Chupa-racha isso não é
deboche!
Quando criança gostava muitíssimo de brincar com meus soldadinhos de
chumbo. Ficava por muito tempo montando a paisagem e o forte dos soldados.
Adorava lutar contra os índios. Era a minha revanche contra os peles-vermelhas.
Ali, não tinham qualquer chance, acabava com todos eles, um a um, sem nenhuma
pressa. Era o meu jogo.
A viatura chegava: a guarda do quartel fazia continência à
autoridade desembarcada, enquanto o comandante comandava
─ Atenção guarda, sentido!
─ Ombro-arma!
O corneteiro tocava o indicativo do posto e função da autoridade. A
insígnia da autoridade era hasteada quando da sua chegada e arriada logo após a
sua retirada. O comandante da guarda ordenava
─ Apresentar
as armas!
─ Olhar à direita!
A Banda de Música executava uma marcha batida.
A autoridade, ocupando o local demarcado, respondia à continência da
guarda e passava, silenciosamente, em revista pela guarda. Depois da revista
seguiam-se as apresentações e o comandante da guarda tornava a ordenar
─ Olhar frente!
─ Ombro-arma!
─ Descansar-arma!
─ Descansar!
─ Senhor General, o
Comandante Manco apresentando a sua tropa e pedindo permissão para embarcar!
─ Permissão concedida,
General!
─ Sim, senhor!
─ Dispensado, General!
─ Atenção tropa, ao meu comando,
embarcar!
Adoro isso, Chupa-racha. Fico daqui, lembrando e me babando todo. Tudo
certinho, passo por passo. Ninguém errava, cada soldado sabia que dependia do
outro para voltar lá da luta. E a luta era no mato. Sobe barco e desce barco.
Helicópteros. Avião anfíbio. Avião de bombardeio. Avião de caça. Só nos faltava
uma bomba atômica. Lindo. Uma lembrança que ninguém vai me tirar: nossos homens
desembarcando no mato. Fico todo arrepiado
─ O senhor foi junto?
─ Fui para dar a logística
dos interrogatórios.
O desapontamento foi o inimigo... Chupa-racha, aquela gente estava mais
pronta para morrer do que matar. Então, morreu
─ Muita luta, General?
─ Aquela gente lutava de
revólver.
─ O exército do inimigo era
muito grande?
─ Uns setenta...
─ Puxa, quanta gente,
setenta mil?
─ Chupa-racha, eram uns
setenta guerrilheiros!
─ E aí, General?
─ E aí, fodam-se. Não tinha
conversa, era na bala e na baioneta.
Não teve jeito, depois de começar só terminou quando caiu o último e foi
para na vala do pé de jatobá. Quase fico sem inimigo para interrogar. Até que
foi rápida a limpeza, se pensava que seria mais duro, mas não, correu tudo bem
─ O General saiu de lá, com
as mãos abanando?
─ A gente fez uma ou outra
coisinha.
─ O General não quer falar?
─ Peguei um daqueles
vagabundos e arrastei pelos matos amarrado no jipe.
Nada me relaxa da minha seriedade de interrogar.
Mas chega, soldado. Aquelas são lembranças que têm que ficar só na
lembrança. Na guerra alguém tem que morrer, então, que bom que foram eles e não
a gente
─ Vamos cabo!
Marchando.
Era bonito de se ver o destacamento no meio daquela selva, parecia
acampamento escoteiro. Tudo arrumado e no lugar acertado para o seu uso mais
certo.
Antes do sol, os acampados estavam em pé tomando café no rancho. Dali
todos seguiam para o hasteamento da bandeira
─ Chupa-racha, o Hino
Nacional no meio da selva fazia a gente chorar!
─ Acredito, General.
Quando terminavam as cerimônias, enxugava as lágrimas e cada um seguia o
seu rumo de missão
─ Aquela gurizada cutucou a
onça com vara curta.
_____________________
Leia também:
VIII - Quem fez de conta que não viu, também perdeu a alma
X - Apoiada em meus dedos vou para o banho
_____________________
Leia também:
VIII - Quem fez de conta que não viu, também perdeu a alma
X - Apoiada em meus dedos vou para o banho
Nenhum comentário:
Postar um comentário