quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

IX - General Caçacurta


Cutucaram a onça com vara curta

baitasar

Eu vivia dias de mandar. Adivinhava e seguia pelo faro as fraquezas da lama humana. Todos têm os pés enlameados, basta prestar atenção nas pisadas. Ninguém fez isso melhor. A sujeira dessa gentarada comunista nunca foi o maior perigo, mas, se é que me entende, o maior perigo foi o aborrecimento que sinto por essa ralé, capaz de me obrigar a exercitar atos alucinados e inumanos. Eu os culpo pelo meu descontrole. A bagunça que me obrigavam saborear
—        A Segurança Nacional em primeiro lugar!
As aparências enganam, mas não um bom soldado. Eu sabia onde estavam as informações e como a asa-de-telha iria cantar. Nunca fez postura no próprio ninho. Usava o ninho de outras aves. Era questão de tempo, dedicação e oportunidade descobrir os cabarés da gentalha.
Mas Chupa-racha chega dessa conversa, quero mudar o assunto deste nosso bate-papo amigável: eu adorava ficar olhando aquela gurizada, toda bonita de uniforme e cabelo cortadinho, marchando, fortes, limpinhos
─         Direita, esquerda, direita, esquerda...
Não perdiam o alinhamento
─         Barriga para dentro, peito para fora, queixo esticado,cabelo cortado!
Gostavam de aparecer bem vestido nas roupas de fardamento.
Impecável.
Camisas e calças frisadas. E engomadas.
As botas eu deixava para o meu funcionário, sempre estiveram brilhando
─         Meus parabéns, soldado! Bom trabalho.
A cadência se misturava com os toques de corneta
─         Um dois feijão com arroz: três quatro panela no prato!
Quando vinha autoridade, a guarda formava em uma fileira no interior do quartel, logo após o portão das armas, dando a direita para a sua direção.
O clarim e a Banda de Música eram posicionados no local mais adequado.
O forte apache estava pronto
—        Chupa-racha isso não é deboche!
Quando criança gostava muitíssimo de brincar com meus soldadinhos de chumbo. Ficava por muito tempo montando a paisagem e o forte dos soldados. Adorava lutar contra os índios. Era a minha revanche contra os peles-vermelhas. Ali, não tinham qualquer chance, acabava com todos eles, um a um, sem nenhuma pressa. Era o meu jogo.
A viatura chegava: a guarda do quartel fazia continência à autoridade desembarcada, enquanto o comandante comandava
─         Atenção guarda, sentido!
─         Ombro-arma!
O corneteiro tocava o indicativo do posto e função da autoridade. A insígnia da autoridade era hasteada quando da sua chegada e arriada logo após a sua retirada. O comandante da guarda ordenava
 ─        Apresentar as armas!
─         Olhar à direita!
A Banda de Música executava uma marcha batida.
A autoridade, ocupando o local demarcado, respondia à continência da guarda e passava, silenciosamente, em revista pela guarda. Depois da revista seguiam-se as apresentações e o comandante da guarda tornava a ordenar
─         Olhar frente!
─         Ombro-arma!
─         Descansar-arma!
─         Descansar!
─         Senhor General, o Comandante Manco apresentando a sua tropa e pedindo permissão para embarcar!
─         Permissão concedida, General!
─         Sim, senhor!
─         Dispensado, General!
─         Atenção tropa, ao meu comando, embarcar!
Adoro isso, Chupa-racha. Fico daqui, lembrando e me babando todo. Tudo certinho, passo por passo. Ninguém errava, cada soldado sabia que dependia do outro para voltar lá da luta. E a luta era no mato. Sobe barco e desce barco. Helicópteros. Avião anfíbio. Avião de bombardeio. Avião de caça. Só nos faltava uma bomba atômica. Lindo. Uma lembrança que ninguém vai me tirar: nossos homens desembarcando no mato. Fico todo arrepiado
─         O senhor foi junto?
─         Fui para dar a logística dos interrogatórios.
O desapontamento foi o inimigo... Chupa-racha, aquela gente estava mais pronta para morrer do que matar. Então, morreu
─         Muita luta, General?
─         Aquela gente lutava de revólver.
─         O exército do inimigo era muito grande?
─         Uns setenta...
─         Puxa, quanta gente, setenta mil?
─         Chupa-racha, eram uns setenta guerrilheiros!
─         E aí, General?
─         E aí, fodam-se. Não tinha conversa, era na bala e na baioneta.
Não teve jeito, depois de começar só terminou quando caiu o último e foi para na vala do pé de jatobá. Quase fico sem inimigo para interrogar. Até que foi rápida a limpeza, se pensava que seria mais duro, mas não, correu tudo bem
─         O General saiu de lá, com as mãos abanando?
─         A gente fez uma ou outra coisinha.
─         O General não quer falar?
─         Peguei um daqueles vagabundos e arrastei pelos matos amarrado no jipe.
Nada me relaxa da minha seriedade de interrogar.
Mas chega, soldado. Aquelas são lembranças que têm que ficar só na lembrança. Na guerra alguém tem que morrer, então, que bom que foram eles e não a gente
─         Vamos cabo!
Marchando.
Era bonito de se ver o destacamento no meio daquela selva, parecia acampamento escoteiro. Tudo arrumado e no lugar acertado para o seu uso mais certo.
Antes do sol, os acampados estavam em pé tomando café no rancho. Dali todos seguiam para o hasteamento da bandeira
─         Chupa-racha, o Hino Nacional no meio da selva fazia a gente chorar!
─         Acredito, General.
Quando terminavam as cerimônias, enxugava as lágrimas e cada um seguia o seu rumo de missão
─         Aquela gurizada cutucou a onça com vara curta.

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