sábado, 21 de janeiro de 2012

XX - General Calçacurta


Eu sou a sua cela

baitasar 

Acordo no meio da noite. Imagino ter ouvido meus gritos. Tenho a garganta seca e dolorida. Existo com sede. Sinto vontade de saborear as águas que escorrem da bica. Muita água. Muito fluido de macho e a despedida sem vulgaridades ─ Boa noite, Clara. ─ Boa noite, querido — talvez fosse bom ter o Himineu nesta cama, alguém que já me conhece e sabe o seu lugar... depois eu resolvo. Um passo de cada vez, águas passadas não movem moinhos. Ele é a minha sela.
A imobilidade me impede de sair logo da cama. Olho no relógio e lá se vão duas horas da madrugada, estou cansada e sonolenta. Pensei que está seria uma noite de sono profundo, mas aqui estou acordada e precisando de ajuda. Aproveito e vou ao banheiro, sento na bacia sanitária e espero pelo xixi. Abro a torneira, o ruído da água sempre dá jeito. É como um ligar e desligar.
Estou suando.
Lembro que as pílulas para dormir acabaram. Vai ser uma longa noite. Nenhuma ponta de esperança.
Olho na volta e as memórias me provocam, apareço num pequeno sorriso. Ainda queimam as lembranças do fogo descarado. As toalhas estão jogadas. O chão está molhado pelas águas da banheira. Amanhã a camareira esvazia e arruma as provas da delinquência. Pronto, agora lavo as mãos visto um roupão e vou até a cozinha, passo em frente ao espelho. Não consigo me impedir de perguntar a imagem do cristal ─ Como me sai — vejo um pequeno sorriso no amigo
─         Bem, muito bem!
─         Obrigada...
─         Deveria se deixar enlouquecer mais seguido.
─         Você acha?
─         Por que não?
─         Sei lá, é complicado achar um homem.
─         E esse?
─         Por favor, é apenas um soldado...
─         E daí, ele não tem aquela espada?
─         Ei, ei, chega.
─         Tá bom, tá bom.
Saio. Sinto que o olhar dele me acompanha. Caminho pelo túnel em escuridão profunda. Não quero acordar Moriá, que pelo menos ela tenha um sono justo. Não quero abrir os olhos e descobrir que tudo são invenções do travesseiro de penas.
Levo em uma das mãos o espadim que descobri entre as coisas do General: é útil nos passeios da madrugada. Os olhos já começam o costume de ver na ausência de qualquer luz. Lembro das matinês de cinema, passeio vesperal com minha blusa solta e folgada. O pronto socorro do lanternista, todo empenhado em acomodar os atrasados. Chegava retardada à sessão de cinema e ficava parada no escuro, em pé, com os olhos fechados, era o meu truque para acostumar com o negrume do cinema. O lanternista chegava quase correndo no auxílio, iluminando os pés que se moviam vacilantes e confusos, até alguma poltrona desocupada. Depois que o visitante sentava, ele fechava a luz da lanterna com a palma da outra mão e saia na proteção de outro atendimento. Um iluminador de caminhos.
A sala de cinema sobrevivia da penumbra e resistia nas claridades refletidas na tela de pano. Quando o filme se mostrava aborrecido erguia meus olhos e acompanhava aquele cordão umbilical iluminado que ia do aparelho projetor à tela. Lá atrás, protegido dos nossos ruídos, o cinematógrafo trabalhava como um parteiro para garantir o divertimento de alguns minutos. Não vou mais aos cinemas, mas o lanternista deixou de existir antes da minha desistência. O cuidado de iluminar caminhos perdeu importância para a prioridade de gastar menos. O lanternista foi trocado pelo pipoqueiro das máquinas automáticas. Largou as lanternas para estalar milhos.
Uma tênue pista de luz clareia meus pés, escapa por baixo da porta do quarto da menina Moriá. Deve estar sem sono ou dorme com o televisor ligado. Encosto-me na porta. Murmúrios escapam junto com a réstia iluminada. Por certo, a televisão ficou funcionando.
Pego suavemente a maçaneta da porta e giro, não quero acordar a menina.
Entro e não consigo conter o meu grito de surpresa e ódio
─         General! Saia de cima da menina!
Não há tempo para respostas inúteis ou conversas fúteis. É tempo de agir. Atravesso o quarto em passos rápidos e em desconserto de ódio faço uso do espadim. Sinto pela força da mão a maneira gentil como as carnes do General recebem a lâmina. Coloco-a toda dentro do homem, enquanto o sangue verte e escorre sobre as pernas abertas da menina Moriá
─         Mãe, o que você fez?
─         Matei esse monstro torturador!
─         Mãe, é o Himineu!
─         O quê?
─         Mãe, enlouqueceu? A senhora matou o Himineu!
Não e não, isso é um pesadelo. Eu vou acordar, eu sei que vou...
Os suores do pavor me percorrem o corpo. Para fugir da demência me atiro dormindo dentro daquele pesadelo. Durmo dentro do sono. Estou com frio. Como se a cada sono inventado estivesse soltando demônios de olhos tristes. Queria poder inventar um sono de fugir para sempre. Um dormir com sonos de amor. Parece que ao meu dormir não me foi dado realizar desejos de amor. Envelheço antes do corpo, pulando os maus sonhos, apenas num pé.
Eu sou a minha cela.

Na hora de fechar o caixão não houve maiores ataques de choro. Foi tudo muito comedido. A viúva e a filha estavam contidas, repetia que já haviam chorado o bastante durante a noite de vigília. Agora, seria outra demonstração de tristeza inútil, todos estavam cansados.
Na verdade, o General morreu mesmo foi lá atrás, quando sofreu aquele derrame. Nunca mais se recuperou, aliás, ali começou o declínio da verdade. Perdeu a disposição pra continuar lutando e pediu trégua pros moços. Passou a se preocupar com os soldos devidos pelos senhores. Esses novos senhores não têm cuidados com os velhos — General, quem não pode mais correr vira estorvo.
Os preparativos pra levar o general pra solidão daquelas gavetas estavam terminados. O capelão já se fora, depois de cumprimentar pessoas que nada tinham de iminência com o morto. A confusão era grande. Não me entendam mal, não havia desordem, apenas não acreditei que esse homem morto tivesse tantos influenciados — E benza Deus, Chupa-racha, ainda somos muitos.
Gente que influi e decide. O General morreu sem ter morrido. O mundo estancou de repente e o destino que roda a todo instante tem medo de viver sem ele. Já estão com saudades do homem. Nesse podiam confiar, desde que não se metessem à besta. Esse foi o último canalha romântico que nos tomou a vida como se a nossa vida fosse dele.
Faço sinal pro Jacaré e ele se aproxima
─         O que falta?
Pergunta já na intenção de prosseguimento das homenagens
─         Agora fazemos o desfile a pé do corpo do General.
─         Já aluguei a força de carregamento de uns sujeitos reforçados.
Como devo ter feito cara de não saber, e não gosto de subalterno me deixar desentendido das novidades, ele acrescentou enquanto subia e descia os ombros sem estrelas
─         Para ajudar a carregar o corpo.
─         Gente nova?
─         Claro, os conhecidos de antigamente do General não aguentam mais.
─         Tudo bem, vamos tomar posição.
Ele permanece me olhando, decidindo se havia mais alguma coisa pra dizer
─         Desembucha, Jacaré.
─         Precisei molhar a mãos dos caras...
─         O quê?
─         Hora-extra, cabo. Hoje em dia é tudo com o encosto do dinheiro.
─         Tudo bem.
─         Tem mais uma coisa...
─         O que, Jacaré?
Confesso que a paciência estava ficando perdida em algum canto do cansaço. É dura essa vida de comandar. Ninguém tem iniciativa, estão sempre esperando um passo atrás
─         Faltou gente para carregar a cruz.
─         Vou pensar em algo.
Volto pra cabeceira do morto. Fazer a guarda funerária do General Calçacurta deveria ser motivo de orgulho pra todo soldado. O homem foi lenda ainda em vida. Extraordinário por seus feitos guerreiros e durante o tempo mais duro foi o centro das atenções na luta contra a guerrilha ─  Obrigado, cabo Himineu.
─         Não há do quê, General Calçacurta — estendo a mão em continência
─         Banquei as decisões de sobrevoar as águas do nosso oceano com aquela carga inútil, deveria ter descarregado os carregamentos no pátio das suas casas.
─         Do que o senhor ta falando?
─         Nada... nada, apenas desabafo.
O Jacaré sai da minha visão, enquanto dona Clara se aproxima: está linda de preto
─         Himineu, o que acontece agora?
─         Senhora, fazemos uma caminhada até o local do sepultamento.
─         Onde eu fico?
─         Venha com a menina Moriá logo atrás do esquife.
─         Tudo bem.
O Jacaré me chega com a ajudância paga, tudo novinho em folha. Mercenários de funeral. Última geração de brutamontes. Altos, corpulentos, monstruosos e cobiçosos. Não precisam chorar, apenas carregar o defunto. Tenho a impressão que somente um desses monstros leva o General. São seis asas do caixão a serem preenchidas por mãos que suportem o peso de tantos anos. Três alças de cada lado. Eu e o Jacaré seguramos as argolas que ficam do lado da cabeça do General. Ele ao lado esquerdo e eu no andamento direito. Reina o silêncio quando erguemos o ataúde e começamos a caminhada fúnebre.
A cruz das almas vai à frente, carregada pelo General cadeirante.
O Parque Jardim em Paz está em silêncio. É o minuto de silêncio de referência dos mortos, fazem mudez o mais alto que podem.
Sinto orgulho de fazer parte deste momento e colaborar de alguma maneira pra tudo sair perfeito. Gosto dos desfiles militares
─         General, estamos saindo...
─         Vamos acabar logo com isso.
Na medida em que nos retiramos da câmara mortuária as pessoas vão se afastando e se colocam naturalmente atrás da viúva e da filha, acompanhando esse último passeio do General. Procuro manter o ritmo do andar do Jacaré, passo a passo, lentamente. Mas é a cruz das almas que dá cadência à marcha. Vai à frente como nosso estandarte. Vai empurrada por mais um desses amigos anônimos. Direita, esquerda, direita, esquerda. Viramos à direita saindo da sede social do velório e depois de alguns passos viramos à direita no rumo dos apartamentos. Um caminho de guinadas à direita, como a ecoar que a história se repete. O condomínio está em silêncio. Apenas nossos passos são ouvidos e um pequeno rangido que começa a sair da roda direita do nosso guia, como se estivesse se lamentando. Começo a chorar.
Uma pequena subida em nosso trajeto, mas o braço movedor da cadeira pede socorro. Está cansado. Um suspiro de espanto e terror na caravana de carga. Paramos. A cruz das almas impede nosso avanço. Um dos convidados sai do anonimato da tropa e carregado por seu cajado chega até a cadeira agonizante. Um pequeno empurrão na cadeira e voltamos a arremeter. A ladeira foi vencida. O novo ajudante-de-ordens vai o restante do caminho um passo atrás da cruz das almas, por via das dúvidas. Tropa de reforço.
Estamos passando por um gramado muito verde à esquerda e um lago à nossa direita. Olho pelo canto do olho e vejo muitos cisnes naquele lago. Deslizam suavemente por sobre águas tranquilas. Enfiam suas cabeças na água. Parecem envergonhados. A exuberância da sua beleza aparece quando deslizam erguidos pelas águas, com seus alongados pescoços sustentando suas cabeças bem acima dos seus regaços. Tenho curiosidade de saber o que estariam pensando.
Ergo o meu gargalo de soldado. Deslizo minha marcha fúnebre sob meus passos de direita, esquerda, direita, esquerda. Não posso me esconder. Não tenho onde enfiar a cabeça.
Naquele amplo gramado à esquerda vão se aglomerando pessoas. Chegam de todos os lados em silêncio. Meus olhos voltam a ficarem úmidos. O General ainda é muito desejado pela sua gente: seu povo querido que defendeu com unhas e dentes e cacete.
Aqueles dois também estão aqui, ali no jatobá. A jovem carrega uma barriga imensa, com certeza irá parir o filho por essa vida afora, mas está avelhantada e descascada. O juvenil se ajoelha na frente da jovem velha e acaricia seu ventre curvo, todo arredondado. Tem a bunda caída. O rapaz está sujo, com a roupa malroupida, assim de longe me parece que se meteu em confusão. Sussurra algumas palavras que não consigo distinguir. Ela está chorando, parece se despedindo e não fosse mais vê-lo. Engraçado, mas essa envelhecida parece ser a única cara viva por aqui. Tudo mais parece buscando algum perdão que jamais conseguirá.
De repente, as pessoas aglomeradas no gramado, ao comando da velha barriguda, abrem cartazes com palavras de ordem que jamais pensei tornar a ver. Olho pro Jacaré, ele me olha perguntando sobre o que fazer. Virei os olhos no contorno da tripa amiga que nos seguia e só reconheci velhos. Gente de muito tempo de existência, gastos pelo uso. Todos pouco dispostos em revidar, velhuscos do tempo que não volta e abandona a todos a sua própria sorte
─         Chupa-racha, não vai fazer nada?
Já estava esperando pela intervenção do morto, estava preparado
─         General, os camaradas de armas envelheceram e não têm saúde pra correr atrás de comunistas.
─         Pelo amor de Deus, Chupa-racha faça alguma coisa!
─         General, pra fazer alguma coisa tenho que largar o senhor no chão.
─         Isso não!
─         Eu sei, então o senhor vai ter que se aguentar.
─         Caralho! Essa gente fede!
─         Calma, General, são as suas exéquias, não vá dar vexame.
─         Porra, mas que merda é essa?
─         Frieza, General, agora é hora de descansar. 
─         Mas de que jeito? Esse cheiro de carne podre me entra pelas ventas! É repugnante!
─         Esquece, General. Faça de conta que não é com o senhor. Melhor ainda, General Calçacurta, pense que qualquer grosseria é melhor que o silêncio de ser ignorado...

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