Eu sou a sua cela
Acordo no meio da noite. Imagino ter ouvido meus gritos. Tenho a garganta
seca e dolorida. Existo com sede. Sinto vontade de saborear as águas que
escorrem da bica. Muita água. Muito fluido de macho e a despedida sem
vulgaridades ─ Boa noite, Clara. ─ Boa noite, querido — talvez fosse bom ter o
Himineu nesta cama, alguém que já me conhece e sabe o seu lugar... depois eu
resolvo. Um passo de cada vez, águas passadas não movem moinhos. Ele é a minha
sela.
A imobilidade me impede de sair logo da cama. Olho no relógio e lá se vão
duas horas da madrugada, estou cansada e sonolenta. Pensei que está seria uma
noite de sono profundo, mas aqui estou acordada e precisando de ajuda.
Aproveito e vou ao banheiro, sento na bacia sanitária e espero pelo xixi. Abro
a torneira, o ruído da água sempre dá jeito. É como um ligar e desligar.
Estou suando.
Lembro que as pílulas para dormir acabaram. Vai ser uma longa noite.
Nenhuma ponta de esperança.
Olho na volta e as memórias me provocam, apareço num pequeno sorriso.
Ainda queimam as lembranças do fogo descarado. As toalhas estão jogadas. O chão
está molhado pelas águas da banheira. Amanhã a camareira esvazia e arruma as
provas da delinquência. Pronto, agora lavo as mãos visto um roupão e vou até a
cozinha, passo em frente ao espelho. Não consigo me impedir de perguntar a
imagem do cristal ─ Como me sai — vejo um pequeno sorriso no amigo
─ Bem, muito bem!
─ Obrigada...
─ Deveria se deixar
enlouquecer mais seguido.
─ Você acha?
─ Por que não?
─ Sei lá, é complicado achar
um homem.
─ E esse?
─ Por favor, é apenas um
soldado...
─ E daí, ele não tem aquela
espada?
─ Ei, ei, chega.
─ Tá bom, tá bom.
Saio. Sinto que o olhar dele me acompanha. Caminho pelo túnel em
escuridão profunda. Não quero acordar Moriá, que pelo menos ela tenha um sono
justo. Não quero abrir os olhos e descobrir que tudo são invenções do
travesseiro de penas.
Levo em uma das mãos o espadim que descobri entre as coisas do General: é
útil nos passeios da madrugada. Os olhos já começam o costume de ver na
ausência de qualquer luz. Lembro das matinês de cinema, passeio vesperal com
minha blusa solta e folgada. O pronto socorro do lanternista, todo empenhado em
acomodar os atrasados. Chegava retardada à sessão de cinema e ficava parada no
escuro, em pé, com os olhos fechados, era o meu truque para acostumar com o
negrume do cinema. O lanternista chegava quase correndo no auxílio, iluminando
os pés que se moviam vacilantes e confusos, até alguma poltrona desocupada.
Depois que o visitante sentava, ele fechava a luz da lanterna com a palma da
outra mão e saia na proteção de outro atendimento. Um iluminador de caminhos.
A sala de cinema sobrevivia da penumbra e resistia nas claridades
refletidas na tela de pano. Quando o filme se mostrava aborrecido erguia meus
olhos e acompanhava aquele cordão umbilical iluminado que ia do aparelho
projetor à tela. Lá atrás, protegido dos nossos ruídos, o cinematógrafo
trabalhava como um parteiro para garantir o divertimento de alguns minutos. Não
vou mais aos cinemas, mas o lanternista deixou de existir antes da minha
desistência. O cuidado de iluminar caminhos perdeu importância para a
prioridade de gastar menos. O lanternista foi trocado pelo pipoqueiro das
máquinas automáticas. Largou as lanternas para estalar milhos.
Uma tênue pista de luz clareia meus pés, escapa por baixo da porta do
quarto da menina Moriá. Deve estar sem sono ou dorme com o televisor ligado. Encosto-me
na porta. Murmúrios escapam junto com a réstia iluminada. Por certo, a televisão
ficou funcionando.
Pego suavemente a maçaneta da porta e giro, não quero acordar a menina.
Entro e não consigo conter o meu grito de surpresa e ódio
─ General! Saia de cima da
menina!
Não há tempo para respostas inúteis ou conversas fúteis. É tempo de agir.
Atravesso o quarto em passos rápidos e em desconserto de ódio faço uso do
espadim. Sinto pela força da mão a maneira gentil como as carnes do General
recebem a lâmina. Coloco-a toda dentro do homem, enquanto o sangue verte e
escorre sobre as pernas abertas da menina Moriá
─ Mãe, o que você fez?
─ Matei esse monstro
torturador!
─ Mãe, é o Himineu!
─ O quê?
─ Mãe, enlouqueceu? A
senhora matou o Himineu!
Não e não, isso é um pesadelo. Eu vou acordar, eu sei que vou...
Os suores do pavor me percorrem o corpo. Para fugir da demência me atiro
dormindo dentro daquele pesadelo. Durmo dentro do sono. Estou com frio. Como se
a cada sono inventado estivesse soltando demônios de olhos tristes. Queria
poder inventar um sono de fugir para sempre. Um dormir com sonos de amor.
Parece que ao meu dormir não me foi dado realizar desejos de amor. Envelheço
antes do corpo, pulando os maus sonhos, apenas num pé.
Eu sou a minha cela.
Na hora de fechar o caixão não houve maiores ataques de choro. Foi tudo
muito comedido. A viúva e a filha estavam contidas, repetia que já haviam
chorado o bastante durante a noite de vigília. Agora, seria outra demonstração
de tristeza inútil, todos estavam cansados.
Na verdade, o General morreu mesmo foi lá atrás, quando sofreu aquele
derrame. Nunca mais se recuperou, aliás, ali começou o declínio da verdade.
Perdeu a disposição pra continuar lutando e pediu trégua pros moços. Passou a
se preocupar com os soldos devidos pelos senhores. Esses novos senhores não têm
cuidados com os velhos — General, quem não pode mais correr vira estorvo.
Os preparativos pra levar o general pra solidão daquelas gavetas estavam
terminados. O capelão já se fora, depois de cumprimentar pessoas que nada tinham
de iminência com o morto. A confusão era grande. Não me entendam mal, não havia
desordem, apenas não acreditei que esse homem morto tivesse tantos influenciados
— E benza Deus, Chupa-racha, ainda somos muitos.
Gente que influi e decide. O General morreu sem ter morrido. O mundo
estancou de repente e o destino que roda a todo instante tem medo de viver sem
ele. Já estão com saudades do homem. Nesse podiam confiar, desde que não se
metessem à besta. Esse foi o último canalha romântico que nos tomou a vida como
se a nossa vida fosse dele.
Faço sinal pro Jacaré e ele se aproxima
─ O que falta?
Pergunta já na intenção de prosseguimento das homenagens
─ Agora fazemos o desfile a
pé do corpo do General.
─ Já aluguei a força de
carregamento de uns sujeitos reforçados.
Como devo ter feito cara de não saber, e não gosto de subalterno me
deixar desentendido das novidades, ele acrescentou enquanto subia e descia os
ombros sem estrelas
─ Para ajudar a carregar o
corpo.
─ Gente nova?
─ Claro, os conhecidos de
antigamente do General não aguentam mais.
─ Tudo bem, vamos tomar
posição.
Ele permanece me olhando, decidindo se havia mais alguma coisa pra dizer
─ Desembucha, Jacaré.
─ Precisei molhar a mãos dos
caras...
─ O quê?
─ Hora-extra, cabo. Hoje em
dia é tudo com o encosto do dinheiro.
─ Tudo bem.
─ Tem mais uma coisa...
─ O que, Jacaré?
Confesso que a paciência estava ficando perdida em algum canto do
cansaço. É dura essa vida de comandar. Ninguém tem iniciativa, estão sempre
esperando um passo atrás
─ Faltou gente para carregar
a cruz.
─ Vou pensar em algo.
Volto pra cabeceira do morto. Fazer a guarda funerária do General Calçacurta
deveria ser motivo de orgulho pra todo soldado. O homem foi lenda ainda em
vida. Extraordinário por seus feitos guerreiros e durante o tempo mais duro foi
o centro das atenções na luta contra a guerrilha ─ Obrigado, cabo Himineu.
─ Não há do quê, General Calçacurta
— estendo a mão em continência
─ Banquei as decisões de sobrevoar
as águas do nosso oceano com aquela carga inútil, deveria ter descarregado os
carregamentos no pátio das suas casas.
─ Do que o senhor ta
falando?
─ Nada... nada, apenas
desabafo.
O Jacaré sai da minha visão, enquanto dona Clara se aproxima: está linda
de preto
─ Himineu, o que acontece
agora?
─ Senhora, fazemos uma
caminhada até o local do sepultamento.
─ Onde eu fico?
─ Venha com a menina Moriá
logo atrás do esquife.
─ Tudo bem.
O Jacaré me chega com a ajudância paga, tudo novinho em folha. Mercenários
de funeral. Última geração de brutamontes. Altos, corpulentos, monstruosos e cobiçosos.
Não precisam chorar, apenas carregar o defunto. Tenho a impressão que somente
um desses monstros leva o General. São seis asas do caixão a serem preenchidas
por mãos que suportem o peso de tantos anos. Três alças de cada lado. Eu e o
Jacaré seguramos as argolas que ficam do lado da cabeça do General. Ele ao lado
esquerdo e eu no andamento direito. Reina o silêncio quando erguemos o ataúde e
começamos a caminhada fúnebre.
A cruz das almas vai à frente, carregada pelo General cadeirante.
O Parque Jardim em Paz está em silêncio. É o minuto de silêncio de
referência dos mortos, fazem mudez o mais alto que podem.
Sinto orgulho de fazer parte deste momento e colaborar de alguma maneira
pra tudo sair perfeito. Gosto dos desfiles militares
─ General, estamos saindo...
─ Vamos acabar logo com
isso.
Na medida em que nos retiramos da câmara mortuária as pessoas vão se
afastando e se colocam naturalmente atrás da viúva e da filha, acompanhando
esse último passeio do General. Procuro manter o ritmo do andar do Jacaré,
passo a passo, lentamente. Mas é a cruz das almas que dá cadência à marcha. Vai
à frente como nosso estandarte. Vai empurrada por mais um desses amigos
anônimos. Direita, esquerda, direita, esquerda. Viramos à direita saindo da
sede social do velório e depois de alguns passos viramos à direita no rumo dos
apartamentos. Um caminho de guinadas à direita, como a ecoar que a história se
repete. O condomínio está em silêncio. Apenas nossos passos são ouvidos e um
pequeno rangido que começa a sair da roda direita do nosso guia, como se
estivesse se lamentando. Começo a chorar.
Uma pequena subida em nosso trajeto, mas o braço movedor da cadeira pede
socorro. Está cansado. Um suspiro de espanto e terror na caravana de carga.
Paramos. A cruz das almas impede nosso avanço. Um dos convidados sai do
anonimato da tropa e carregado por seu cajado chega até a cadeira agonizante.
Um pequeno empurrão na cadeira e voltamos a arremeter. A ladeira foi vencida. O
novo ajudante-de-ordens vai o restante do caminho um passo atrás da cruz das almas,
por via das dúvidas. Tropa de reforço.
Estamos passando por um gramado muito verde à esquerda e um lago à nossa
direita. Olho pelo canto do olho e vejo muitos cisnes naquele lago. Deslizam
suavemente por sobre águas tranquilas. Enfiam suas cabeças na água. Parecem
envergonhados. A exuberância da sua beleza aparece quando deslizam erguidos
pelas águas, com seus alongados pescoços sustentando suas cabeças bem acima dos
seus regaços. Tenho curiosidade de saber o que estariam pensando.
Ergo o meu gargalo de soldado. Deslizo minha marcha fúnebre sob meus
passos de direita, esquerda, direita, esquerda. Não posso me esconder. Não
tenho onde enfiar a cabeça.
Naquele amplo gramado à esquerda vão se aglomerando pessoas. Chegam de todos
os lados em silêncio. Meus
olhos voltam a ficarem úmidos. O General ainda é muito desejado pela sua gente:
seu povo querido que defendeu com unhas e dentes e cacete.
Aqueles dois também estão aqui, ali no jatobá. A jovem carrega uma
barriga imensa, com certeza irá parir o filho por essa vida afora, mas está
avelhantada e descascada. O juvenil se ajoelha na frente da jovem velha e
acaricia seu ventre curvo, todo arredondado. Tem a bunda caída. O rapaz está
sujo, com a roupa malroupida, assim de longe me parece que se meteu em confusão. Sussurra
algumas palavras que não consigo distinguir. Ela está chorando, parece se
despedindo e não fosse mais vê-lo. Engraçado, mas essa envelhecida parece ser a
única cara viva por aqui. Tudo mais parece buscando algum perdão que jamais
conseguirá.
De repente, as pessoas aglomeradas no gramado, ao comando da velha
barriguda, abrem cartazes com palavras de ordem que jamais pensei tornar a ver.
Olho pro Jacaré, ele me olha perguntando sobre o que fazer. Virei os olhos no
contorno da tripa amiga que nos seguia e só reconheci velhos. Gente de muito
tempo de existência, gastos pelo uso. Todos pouco dispostos em revidar,
velhuscos do tempo que não volta e abandona a todos a sua própria sorte
─ Chupa-racha, não vai fazer
nada?
Já estava esperando pela intervenção do morto, estava preparado
─ General, os camaradas de
armas envelheceram e não têm saúde pra correr atrás de comunistas.
─ Pelo amor de Deus, Chupa-racha
faça alguma coisa!
─ General, pra fazer alguma
coisa tenho que largar o senhor no chão.
─ Isso não!
─ Eu sei, então o senhor vai
ter que se aguentar.
─ Caralho! Essa gente fede!
─ Calma, General, são as
suas exéquias, não vá dar vexame.
─ Porra, mas que merda é
essa?
─ Frieza, General, agora é
hora de descansar.
─ Mas de que jeito? Esse
cheiro de carne podre me entra pelas ventas! É repugnante!
─ Esquece, General. Faça de
conta que não é com o senhor. Melhor ainda, General Calçacurta, pense que
qualquer grosseria é melhor que o silêncio de ser ignorado...
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