sábado, 21 de janeiro de 2012

XXI - General Calçacurta


Vim ajudar a morte
baitasar

Naquela manhã dolorida já havia tomado minha decisão. O tormento estava por terminar ─ Bom dia, Calçacurta! — abro as cortinas e aquele quarto mal iluminado, com cheiro de carne humana podre, se torna claro como a decisão que já tomei
─         E aí, Calçacurta, ainda não vieram trocar as fraldas?
Não responde.
Não quer ou não pode, pouco importa, quase sinto ternura por aquele ali
─         Falta pouco, meu marido.
Botei a propósito esta fina transparência sobre meu corpo nu. A luz me passa e fico nua para aqueles olhos inválidos de contemplação. Isso é o mais perto que vai chegar de tocar e comer alguém, seu filho-da-puta. Estou adorando esta tortura, quase que o espasmo me pega, ele chega dos seus olhos que me perseguem pelo aposento. O ódio mantém muitos de nós vivos.
Hoje, esse tempo termina.
Tenho tudo preparado ─ Hum, Calçacurta, triste fim... hein — respiro profundo e aproximo meu corpo do homem que deixou de ser homem e não se conforma
─         Cheguei para lhe ajudar...
Estou com o travesseiro de penas nas mãos. No derradeiro minuto o General muda as ideias, solta um assopro de ar e se caga todo ─ General, não adianta, levo a incumbência até o fim — muito tarde para mudanças repentinas.
Vim ajudar a morte.
O travesseiro de penas é a última visão da vida de farras e suplícios. Vida dedicada à aplicação do castigo corporal duro, impiedoso, sistemático e calibrado para infligir fundo no espírito e na carne. Possuía tudo do atormentado. Estava abatendo o corpo e não estava lá, mas além, estava no pensamento do torturado
─         Vou esquecê-lo, Calçacurta.— os tempos mudaram de dono — Nunca mais me possuir, nem matar, nem foder a paciência dos outros — as suas artes acabaram, menos violência, menos sangue, menos mentiras, menos merda.
Enquanto seguro o travesseiro de penas, olho para minhas unhas bem vermelhas. Reparo que estão curtas. Tomo a decisão de deixá-las crescer. Como são surpreendentes os momentos que escolhemos para cogitar bobagens em nossa vida. Queria ter um espelho para olhar e ver de mim o olhar.

Durante o andamento do passeio funéreo ouvia palavras de ordem e via cartazes saudando a morte da ditadura. Frases e mais frases
(Abaixo a ditadura)
(A rebelião vai tomar conta do mundo)
(O povo somos nós, abaixo a repressão)
─         Mamãe olha aquele ali, o que quer dizer...
(Brasil, nunca mais espancamentos, torturas, gente desaparecida ou no exílio)
─         Nada, minha filha, são só uns baderneiros! — a viúva parecia intrigar nos ouvidos da filha manca
(Contra a censura)
(Édson Luis de Lima Souto)
─         Mamãe, quem é esse? — apenas mais uma cara e um nome sem sentido, sem memória, sem necessidade de lembrar — Pra quê? Não vai mudar nada! — bem isso, dona Clara, o que se passou é passado
(Bala mata fome?)
─         Não sei, minha filha. Só sei que nunca passamos fome.
(Mataram um estudante, podia ser seu filho)
─         Será que foi dos que papai matou? — o morto para, nunca admitir... negar sempre
(É proibido proibir)
─         Minha filha, não olha — se eu pudesse aconselhar a menina, lhe diria que a dona Clara está certa — Faça de conta que nada aconteceu
(Pai afasta de mim este cálice, de vinho tinto de sangue)
(Não queremos liberdade pela metade)
Aumento a velocidade da marcha, corro o risco de matar alguns dos velhos amigos. Dois ajudantes de ordens do cadeirante empurram o engenho e a cruz das almas. Apenas um não deu conta da missão: empurrar o cadeirante e segurar-se na bengala. Uma retirada de velhinhos.
Não está bem claro, se estamos em acuamento ou movimento de avançar, mas de todas as maneiras o pânico está batendo à porta e não podemos ficar parados — Jacaré, amigo que é amigo haveria de entender, o homem precisa do sossego daquela gaveta — Cabo, acho que o melhor é o ataque. — nós precisamos de serenidade e viver a vida daqui pra frente. Esquecer esses erros do passado — Gente, todos erraram e precisamos perdoar! — fazem ouvidos de mouco.
A multidão de desgraçados vem junta. Num súbito de arrojamento me desprendo de mim mesmo, caminho para a aquela multidão de sem nada, tenho o fuzil na mão e a baioneta calada ─ Aqui, se tem alguém que nunca pecou que atire a primeira pedra! — foi o que pensei... esse chamado fode com todo mundo. Para alguma coisa houve de servir aquelas aulas de catequese.
Uma pedra passa pelo meu capacete e me atravessa, faz um buraco em minha testa. Ergo as vistas na procura do meliante. Lá está àquela velha grávida de quem ninguém jamais irá nascer
─         Foi o que pensei mesmo, gente como essa só matando!
Ela se abaixa e recarrega o seu armamento, tem outra pedra na mão
─         Essa barriga não se desmancha mais, são os teus ódios que te incham!
Outro míssil de curto alcance se aproxima, não tenho tempo de desviar e me pega em cheio. Outro buraco ─ Velha estúpida, grávida de memórias!
Ela procura no seu chão de mortos mais munição.
Com essa não tem jeito mesmo, pulo em cima da velhota parda e bato até ter os nós dos dedos molhados de sangue, dou-lhe as costas e volto para as fileiras da marcha fúnebre. Ao silêncio junta-se o medo. Os velhos estão acuados e amedrontados, não parece, mas estão. Olho pelos cantos da vista e caminhamos de olhos abaixados ─ General, pena que seja curta a vida, seria bom conferir as decorrências das merdas que fazemos.
─         Chupa-racha, pobre daqueles que ficam — acho que entendo o General: teremos que usar as próprias mãos — Sofreremos pelos que se foram...
─         Sentiram saudades!
─         Valeu a pena, General? — junto com a dúvida, a vergonha disfarçada, nada pode justificar tantos crimes ─ Lutamos em nome da pacificação.
─         E General, quem estava certo? — quem pode quer estar certo
─         Não foi possível acabar com as mazelas — interrompo antes que o General declare que faltou um tempo mais de tirania ─ E nós, como vamos ficar?
─         Chupa-racha me escuta!
─         Fala, General...
─         Chupa-racha, ainda vão sentir saudades do AI-5, das baionetas e da tortura — lembro-me dos discursos do General: tempos difíceis requerem medidas duras
─         General, escuta: essa gente não me parece com saudades — coloco os fones no General e aumento o volume até o máximo — Assassino! Ditador! Canalha mentiroso!
─         Esses não contam: fedem mais que cavalo.
Quase chegando. E a marcha se desmancha da direita que não é mais direita nem a esquerda se reconhece. Os passos não se combinam para o mesmo tempo. Balançam por não estarem firmes e fixos na mesma andadura. Mesmo assim, estamos pouco menos a cada passo de lá e a cruz das almas seguem à frente.

Eu perdoo todos.
Quiseram de mim uma violência passageira, como se fosse possível deter a mão depois que o braço desce com a vontade de destruir. Eu não consigo e não quero me adaptar aos novos tempos. Fui julgado descartável. Um funcionário obsoleto para as novas tarefas de fingir e dominar sem o uso das minhas forças físicas. Idiotas, este País não pode abrir mão do chicote. A bigorna deve estar sempre em posição de uso. É inevitável ─ Por que abrir mão desse domínio e poder?
─         General, as pessoas se revoltaram...
─         Quem se revoltou, Chupa-racha?
─         O povo...
─         O povo é o gado que empurramos de acordo com nossa vontade.
─         Nem sempre, General.
─         Bobagem, é somente uma questão de inspiração da pena do Zé Barriga — esses medíocres ficaram com medo de continuar a fazer da minha força a sua autoridade. E me vieram com essa conversa de não é mais momento de descer o cacete e o diabo a quatro. Queriam me instruir nas virtudes da diplomacia
─         Calçacurta, não podemos perder o tempo das mudanças — as mudanças que eles queriam não me disseram, estavam ocupados apagando os próprios vestígios colaboracionistas — Eu me retiro.
Não era mais suficiente ser bom, precisava ser bom para outra coisa além de torturar de maneira implacável ─  Calçacurta, chegou ao fim o tempo das torturas.
─         E vocês acreditam nisso?
─         Não se trata mais em que acreditamos, mas naquilo que não pode mais ser feito.
Fiquei em silêncio, essas estratégias me escapavam da compreensão
─         Precisamos preparar a saída e a nossa permanência.
É duro descobrir que não sou mais adequado. Virei estorvo. Minha arte provoca constrangimentos. Começam a sugerir que aquela guerra não foi bem uma guerra. Para bom entendedor, piscada de olho é ordem mandada — Chupa-racha... vou ser sacrificado — mas quero que seja impondo o controle ─ A dúvida da vida é a morte.
Não quero abrir meus arquivos: a menos que forcem o uso do meu ventilador.
Enfio as mãos no bolso e abandono essa conversa de desfile, a certeza do caminho diminui a canseira.
Saio à rua em passos lentos.
É um fim de tarde frio e chuvoso. Caminho pelas ruas lentamente, quero me despedir. Renuncio às despedidas das pessoas, mas preciso dizer adeus às alamedas e avenidas que foram decoradas como meus caminhos de retiradas e entregas em domicílio.
Bons tempos.

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