Vim ajudar a morte
Naquela manhã dolorida já havia tomado minha decisão. O tormento estava
por terminar ─ Bom dia, Calçacurta! — abro as cortinas e aquele quarto mal
iluminado, com cheiro de carne humana podre, se torna claro como a decisão que
já tomei
─ E aí, Calçacurta, ainda
não vieram trocar as fraldas?
Não responde.
Não quer ou não pode, pouco importa, quase sinto ternura por aquele ali
─ Falta pouco, meu marido.
Botei a propósito esta fina transparência sobre meu corpo nu. A luz me
passa e fico nua para aqueles olhos inválidos de contemplação. Isso é o mais
perto que vai chegar de tocar e comer alguém, seu filho-da-puta. Estou adorando
esta tortura, quase que o espasmo me pega, ele chega dos seus olhos que me
perseguem pelo aposento. O ódio mantém muitos de nós vivos.
Hoje, esse tempo termina.
Tenho tudo preparado ─ Hum, Calçacurta, triste fim... hein — respiro
profundo e aproximo meu corpo do homem que deixou de ser homem e não se
conforma
─ Cheguei para lhe ajudar...
Estou com o travesseiro de penas nas mãos. No derradeiro minuto o General
muda as ideias, solta um assopro de ar e se caga todo ─ General, não adianta,
levo a incumbência até o fim — muito tarde para mudanças repentinas.
Vim ajudar a morte.
O travesseiro de penas é a última visão da vida de farras e suplícios.
Vida dedicada à aplicação do castigo corporal duro, impiedoso, sistemático e
calibrado para infligir fundo no espírito e na carne. Possuía tudo do
atormentado. Estava abatendo o corpo e não estava lá, mas além, estava no
pensamento do torturado
─ Vou esquecê-lo, Calçacurta.—
os tempos mudaram de dono — Nunca mais me possuir, nem matar, nem foder a
paciência dos outros — as suas artes acabaram, menos violência, menos sangue,
menos mentiras, menos merda.
Enquanto seguro o travesseiro de penas, olho para minhas unhas bem
vermelhas. Reparo que estão curtas. Tomo a decisão de deixá-las crescer. Como
são surpreendentes os momentos que escolhemos para cogitar bobagens em nossa
vida. Queria ter um espelho para olhar e ver de mim o olhar.
Durante o andamento do passeio funéreo ouvia palavras de ordem e via
cartazes saudando a morte da ditadura. Frases e mais frases
(Abaixo a ditadura)
(A rebelião vai tomar conta do mundo)
(O povo somos nós, abaixo a repressão)
─ Mamãe olha aquele ali, o
que quer dizer...
(Brasil, nunca mais espancamentos, torturas, gente desaparecida ou no
exílio)
─ Nada, minha filha, são só
uns baderneiros! — a viúva parecia intrigar nos ouvidos da filha manca
(Contra a censura)
(Édson Luis de Lima Souto)
─ Mamãe, quem é esse? —
apenas mais uma cara e um nome sem sentido, sem memória, sem necessidade de
lembrar — Pra quê? Não vai mudar nada! — bem isso, dona Clara, o que se passou
é passado
(Bala mata fome?)
─ Não sei, minha filha. Só
sei que nunca passamos fome.
(Mataram um estudante, podia ser seu filho)
─ Será que foi dos que papai
matou? — o morto para, nunca admitir... negar sempre
(É proibido proibir)
─ Minha filha, não olha — se
eu pudesse aconselhar a menina, lhe diria que a dona Clara está certa — Faça de
conta que nada aconteceu
(Pai afasta de mim este cálice, de vinho tinto de sangue)
(Não queremos liberdade pela metade)
Aumento a velocidade da marcha, corro o risco de matar alguns dos velhos
amigos. Dois ajudantes de ordens do cadeirante empurram o engenho e a cruz das
almas. Apenas um não deu conta da missão: empurrar o cadeirante e segurar-se na
bengala. Uma retirada de velhinhos.
Não está bem claro, se estamos em acuamento ou movimento de avançar, mas
de todas as maneiras o pânico está batendo à porta e não podemos ficar parados
— Jacaré, amigo que é amigo haveria de entender, o homem precisa do sossego
daquela gaveta — Cabo, acho que o melhor é o ataque. — nós precisamos de
serenidade e viver a vida daqui pra frente. Esquecer esses erros do passado — Gente,
todos erraram e precisamos perdoar! — fazem ouvidos de mouco.
A multidão de desgraçados vem junta. Num súbito de arrojamento me
desprendo de mim mesmo, caminho para a aquela multidão de sem nada, tenho o fuzil
na mão e a baioneta calada ─ Aqui, se tem alguém que nunca pecou que atire a
primeira pedra! — foi o que pensei... esse chamado fode com todo mundo. Para
alguma coisa houve de servir aquelas aulas de catequese.
Uma pedra passa pelo meu capacete e me atravessa, faz um buraco em minha
testa. Ergo as vistas na procura do meliante. Lá está àquela velha grávida de
quem ninguém jamais irá nascer
─ Foi o que pensei mesmo,
gente como essa só matando!
Ela se abaixa e recarrega o seu armamento, tem outra pedra na mão
─ Essa barriga não se
desmancha mais, são os teus ódios que te incham!
Outro míssil de curto alcance se aproxima, não tenho tempo de desviar e
me pega em cheio. Outro buraco ─ Velha estúpida, grávida de memórias!
Ela procura no seu chão de mortos mais munição.
Com essa não tem jeito mesmo, pulo em cima da velhota parda e bato até
ter os nós dos dedos molhados de sangue, dou-lhe as costas e volto para as
fileiras da marcha fúnebre. Ao silêncio junta-se o medo. Os velhos estão acuados
e amedrontados, não parece, mas estão. Olho pelos cantos da vista e caminhamos
de olhos abaixados ─ General, pena que seja curta a vida, seria bom conferir as
decorrências das merdas que fazemos.
─ Chupa-racha, pobre daqueles
que ficam — acho que entendo o General: teremos que usar as próprias mãos — Sofreremos
pelos que se foram...
─ Sentiram saudades!
─ Valeu a pena, General? —
junto com a dúvida, a vergonha disfarçada, nada pode justificar tantos crimes ─
Lutamos em nome da pacificação.
─ E General, quem estava certo?
— quem pode quer estar certo
─ Não foi possível acabar
com as mazelas — interrompo antes que o General declare que faltou um tempo
mais de tirania ─ E nós, como vamos ficar?
─ Chupa-racha me escuta!
─ Fala, General...
─ Chupa-racha, ainda vão
sentir saudades do AI-5, das baionetas e da tortura — lembro-me dos discursos
do General: tempos difíceis requerem medidas duras
─ General, escuta: essa
gente não me parece com saudades — coloco os fones no General e aumento o
volume até o máximo — Assassino! Ditador! Canalha mentiroso!
─ Esses não contam: fedem
mais que cavalo.
Quase chegando. E a marcha se desmancha da direita que não é mais direita
nem a esquerda se reconhece. Os passos não se combinam para o mesmo tempo.
Balançam por não estarem firmes e fixos na mesma andadura. Mesmo assim, estamos
pouco menos a cada passo de lá e a cruz das almas seguem à frente.
Eu perdoo todos.
Quiseram de mim uma violência passageira, como se fosse possível deter a
mão depois que o braço desce com a vontade de destruir. Eu não consigo e não
quero me adaptar aos novos tempos. Fui julgado descartável. Um funcionário
obsoleto para as novas tarefas de fingir e dominar sem o uso das minhas forças
físicas. Idiotas, este País não pode abrir mão do chicote. A bigorna deve estar
sempre em posição de uso. É inevitável ─ Por que abrir mão desse domínio e
poder?
─ General, as pessoas se revoltaram...
─ Quem se revoltou, Chupa-racha?
─ O povo...
─ O povo é o gado que
empurramos de acordo com nossa vontade.
─ Nem sempre, General.
─ Bobagem, é somente uma
questão de inspiração da pena do Zé Barriga — esses medíocres ficaram com medo
de continuar a fazer da minha força a sua autoridade. E me vieram com essa
conversa de não é mais momento de descer o cacete e o diabo a quatro. Queriam
me instruir nas virtudes da diplomacia
─ Calçacurta, não podemos
perder o tempo das mudanças — as mudanças que eles queriam não me disseram,
estavam ocupados apagando os próprios vestígios colaboracionistas — Eu me
retiro.
Não era mais suficiente ser bom, precisava ser bom para outra coisa além
de torturar de maneira implacável ─ Calçacurta,
chegou ao fim o tempo das torturas.
─ E vocês acreditam nisso?
─ Não se trata mais em que
acreditamos, mas naquilo que não pode mais ser feito.
Fiquei em silêncio, essas estratégias me escapavam da compreensão
─ Precisamos preparar a
saída e a nossa permanência.
É duro descobrir que não sou mais adequado. Virei estorvo. Minha arte
provoca constrangimentos. Começam a sugerir que aquela guerra não foi bem uma
guerra. Para bom entendedor, piscada de olho é ordem mandada — Chupa-racha...
vou ser sacrificado — mas quero que seja impondo o controle ─ A dúvida da vida
é a morte.
Não quero abrir meus arquivos: a menos que forcem o uso do meu
ventilador.
Enfio as mãos no bolso e abandono essa conversa de desfile, a certeza do
caminho diminui a canseira.
Saio à rua em passos lentos.
É um fim de tarde frio e chuvoso. Caminho pelas ruas lentamente, quero me
despedir. Renuncio às despedidas das pessoas, mas preciso dizer adeus às
alamedas e avenidas que foram decoradas como meus caminhos de retiradas e
entregas em domicílio.
Bons tempos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário