domingo, 22 de janeiro de 2012

XXII - General Calçacurta

Essa gente não sabe lamber as feridas em silêncio
baitasar

Eu e o Jacaré nos olhamos, estamos acertando o andamento pra sepultar o General. O Cemitério do Arrependimento.

A situação tornou-se irrefreável. O ruído das pessoas que estão do nosso lado são as suas vontades de gritar e balançar as mãos pra que todos voltem, sigam pra suas casas. Um dos carregadores da alça de caixão, devidamente pago com horas-extras, me chega por trás e segreda

─         Esse povinho tem muitas cabeças e nenhum miolo.

Continuo controlado.

Num dado momento, aqueles comunistas desgraçados começam a cravar cruzes brancas pelo campo verde daquela alameda amarelada com folhas mortas. Carregam uma faixa

(Desaparecidos políticos desde 1964)

Ficaram mudos, não xingam, não gritam, apenas vazam o gramado com suas cruzes. O cortejo segue em passos lentos e graduais, as ordens são pra não acelerar nada. O General nunca correu em vida e, por certo, não vai querer correr depois de morto. Enquanto vou lendo aqueles nomes minha memória de motorista de prostíbulo não me faz dizer nada. Percebo que o general-de-exército tem ganas de sair passando por cima de todos empunhando nosso estandarte, mas a cadeira de rodas o prende. As suas pernas imprestáveis, as suas mãos agarradas e enterradas na madeira da cruz fazem um último ataque: atira o estandarte naquelas cruzes fincadas na carne da terra.

Vamos caminhando e os nomes vão sendo cravados

(Adriano Fonseca Fernandes Filho – 1973/Araguaia, Aluízio Palhano Pedreira Ferreira – 1971, Ana Rosa Kucinski Silva – 1974, André Gabois – 1973/Araguaia, Antônio “Alfaiate” – 1974/Araguaia, Antônio Alfredo Campos – 1973/Araguaia, Antônio Carlos Monteiro Teixeira – 1972/Araguaia, Antônio Guilherme Ribeiro Ribas – 1973/Araguaia, Antônio Joaquim Machado – 1971, Antônio de Pádua Costa – 1974/Araguaia, Antônio Teodoro de Castro – 1973/Araguaia, Arildo Valadão – 1973/Araguaia, Armando Teixeira Frutuoso – 1975, Áurea Eliza Pereira Valadão – 1974/ Araguaia, Ayrton Adalberto Mortati – 1971, Bérgson Gurjão de Farias – 1972/Araguaia, Caiuby Alves de Castro – 1973, Carlos Alberto Soares de Freitas – 1971, Celso Gilberto de Oliveira – 1970, Cilon da Cunha Brun – 1973/Araguaia, Ciro Flávio Oliveira Salazar – 1972/Araguaia, Custódio Saraiva Neto - 1974/ Araguaia, Daniel José de Carvalho – 1973, Daniel Ribeiro Calado – 1973/Araguaia, David Capistrano da Costa – 1974, Denis Antônio Casemiro – 1971, Dermeval da Silva Pereira – 1974/Araguaia, Dinaelsa Soares Santana Coqueiro – 1973/ Araguaia, Dinalva Oliveira Teixeira – 1973/Araguaia, Divino Ferreira de Souza - 1973/Araguaia, Durvalino de Souza – 1973, Edgar de Aquino Duarte – 1974, Eduardo Collier Filho – 1974, Elmo Corrêa – 1974/Araguaia, Élson Costa – 1975, Ezequias Bezerra da Rocha – 1973, Félix Escobar Sobrinho – 1971, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira – 1974, Gilberto Olímpio Maria – 1973/Araguaia, Guilherme Gomes Lund – 1973/Araguaia, Heleni Pereira Teles Guariba – 1971, Helenira Rezende de Souza Nazareth – 1972/Araguaia, Hélio Luiz Navarro de Magalhães – 1974/Araguaia, Hiram de Lima Pereira – 1975, Honestino Monteiro Guimarães – 1973, Humberto Albuquerque Câmara Neto – 1973, Idalísio Soares Aranha Filho – 1972/Araguaia, Ieda Santos Delgado – 1974, Isís Dias de Oliveira – 1972, Issami Nakamura Okano – 1974, Itair José Veloso – 1975, Ivan Mota Dias - 1971, Jaime Petit da Silva – 1973/Araguaia, Jana Moroni Barroso – 1974/ Araguaia, Jayme Amorim de Miranda – 1975, João Alfredo – 1964, João Batista Rita Pereda – 1973, João Carlos Haas Sobrinho – 1972/Araguaia, João Gualberto – 1973/Araguaia, João Massena Melo – 1974, Joaquim Pires Cerveira – 1973, Joel José de Carvalho – 1973, Joel Vasconcelos dos Santos – 1971, Jorge Leal Gonçalves Pereira – 1970, José Francisco Chaves – 1972/Araguaia, José Humberto Bronca – 1973/ Araguaia, José Lavechia – 1973, José Lima Piauhy Dourado – 1973/Araguaia, José Maurílio Patrício – 1974/Araguaia, José Montenegro de Lima – 1975, José Porfírio de Souza – 1973, José Romam – 1974, José Toledo de Oliveira – 1972/Araguaia, Kleber Lemos da Silva – 1972/Araguaia, Líbero Giancarlo Castiglia – 1973/Araguaia, Lúcia Maria de Souza – 1973/Araguaia, Lúcio Petit da Silva – 1974/Araguaia, Luís de Almeida Araújo – 1971, Luís Inácio Maranhão Filho – 1974, Luiz Renê Silveira e Silva – 1974/Araguaia, Luíza Augusta Garlippe – 1973/Araguaia, Lourival Paulino – 1972/Araguaia, Manuel José Murchis – 1972/Araguaia, Márcio Beck Machado – 1973, Marco Antônio Dias Batista – 1970, Maria Augusta Thomaz – 1973, Maria Célia Corrêa – 1974/Araguaia, Maria Lúcia Petit da Silva – 1972/Araguaia, Mariano Joaquim da Silva – 1971, Mário Alves de Souza Vieira – 1970, Maurício Grabois – 1973/Araguaia, Miguel Pereira dos Santos – 1972/ Araguaia, Nélson de Lima Piahuy Dourado – 1974/Araguaia, Nestor Veras – 1975, Orlando Momente – 1974/Araguaia, Orlando Rosa Bonfim Júnior – 1975, Osvaldo Orlando da Costa – 1974/Araguaia, Paulo César Botelho Massa – 1972, Paulo costa Ribeiro Bastos – 1972, Paulo Mendes Rodrigues – 1973/Araguaia, Paulo Roberto Pereira Marques – 1973/Araguaia, Paulo Stuart Wright – 1973, Paulo de Tarso Celestino da Silva – 1971, Pedro Alexandrino de Oliveira – 1974/Araguaia, Pedro Inácio de Araújo – 1964, Ramires Maranhão do Valle – 1973, Rodolfo de Carvalho Troiano – 1974/Araguaia, Rosalindo Souza – 1973/Araguaia, Rubens Beirodt Paiva – 1971, Rui Carlos Vieira Berbert – 1971, Rui Frazão Soares – 1974, Sérgio Landulfo Furtado – 1972, Stuart Edgar Angel Jones – 1971, Suely Yomiko Kanayama – 1974/Araguaia, Telma Regina Cordeiro Corrêa – 1974/Araguaia, Thomas Antônio da Silva Meirelles Netto – 1974, Tobias Pereira Júnior – 1974/Araguaia, Uirassu de Assis Batista – 1974/Araguaia, Vandik Reidner Pereira Coqueiro – 1973/Araguaia, Virgílio Gomes da Silva – 1969, Vitorino Alves Moitinho – 1973, Wlaquíria Afonso Costa – 1974/Araguaia, Walter Ribeiro Novais – 1971, Walter de Souza Ribeiro – 1974, Wilson Silva - 1974)

─         Meu Deus deixem os mortos como estão... mortos!

─         Isso é bobagem Chupa-racha, muitos destes aí já apareceram...

─         Mortos, General!

─         Mas apareceram...

—        General!

—        Outros foram para Portugal ou ficaram no jatobá.

—        General... nenhum arrependimento — sussurro que é sua última chance de contrição — Se essa gente tivesse ficado em casa e deixado a revolução para os milicos: estavam criando os netos!

Não sei o que me acontece, talvez o cansaço da noite sem dormir esteja cobrando seu preço, sei lá, não estou sentido minhas pernas e braços, e uma loucura qualquer me faz ver uma procissão. Caminham todos vestidos de preto. As mulheres levam um véu sobre a cabeça e os homens estão cobertos por um capuz. Marcham e cantam de cabeça baixa. Não entendo o que dizem, mas minha atenção está toda voltada pra seus cânticos fúnebres. De repente a manhã escurece e fica fria, sinto o desconforto atravessando meu corpo. Procuro com os olhos pelo Jacaré, mas ele está perdido na aglomeração do bando. A ladainha aumenta. Quero apressar meus passos, mas não consigo. Estamos marchando pelo descompasso daquele ritual de orações curtas e respostas repetidas. Direita, direita, esquerda. Quando as mulheres retiram seus véus e os homens arrancam os capuzes, vejo que são apenas caveiras que têm no lugar das cabeças. São apenas ossadas em vestimenta de luto.

Tenho vontade de largar o caixão do General e gritar para que se vão e aceitem que enterremos o nosso morto em paz

─         Chupa-racha, faça alguma coisa!

─         Calma, General.

─         Chupa-racha, nada de vexame e fraqueza!

─         Mas General...

─         Rapaz, todos foram perdoados por que esse ódio todo?

─         É gente que não sabe lamber as feridas em silêncio.

A ladainha de gritos e lamentos tristes, chorando os mortos não acaba. Ao redor do fogo uma vasilha bojuda de metal com bico e tampa geme a dor da quentura da água, são inevitáveis as dores da chaleira e a angústia nos vivos.

O dia fica camuflado sob o véu da noite: desaparece de susto, fica metido em algum canto de olhos fechados, não tem gosto de ver os mortos saindo do sono das gavetas. Os morto-vivos emergem das covas da terra como raízes desabrochando. Brotam por todos os cantos. Árvores mortas de flores ou folhas. Secas e marrons. Espinhentas. O jatobá lança as suas folhas pra todos os lados e geme a dor da dor.

A voz dessa turba se torna insuportável pra pessoas de bem — Essa raça de mortos — não são mais que lembranças maltratadas. Desmanchadas. Ordeno que parem. Não obedecem e se aproximam arrogantes. Sinto o cheiro podre daquelas carnes. Escuto o rangido dos ossos.

Como um hábito, começo a contagem dos desaparecidos. Tenho a mania da conferência. São muitos. Desisto de medir os descarnados, não tenho jeito de contar na rapidez em que brotam.
Avançam juntos, perfilados em passo de ganso. Em frente, direita, esquerda, direita, esquerda, olhar à direita

─         Alto!

Estão aqui, um ao lado do outro e o outro atrás do um. No meio da tropa ecoa uma ordem

─         Fora daqui!

Já não tenho as alças do General nas mãos, começo minha retirada entre as cruzes e os mortos. Outra ordem

─         Debandar!

Agarram e atropelam, sou jogado como uma bola. Começo a reagir com as mãos e os pés. Abro caminho com tapas e pernadas. Não tenho como correr. São muitos e continuo cercado: empurrado de costas pro lago. Viro a cabeça e vejo os cisnes deslizando sobre as águas. Elegantes. Delicados. Fingem que não sabem o que me acontece

─         Essa coisa de fingir você entende...

─         Bem observado, senhor Paiva.

Esfrego os olhos e teimo em deixá-los abertos, jamais dormi na sentinela. Viro as costas às ossadas e na beirada do lago penso em fugir

─         No dorso de um cisne, quem sabe?

Olho pro chão e não vejo meus pés. Foram enterrados naquelas bordas. Afogados. Dobro meu corpo e desato as cordas das botas, preciso me libertar e fugir. Afundo mais um tanto.

Olho pelo canto do olho e vejo os cisnes se aproximando. Deslizam ansiosos pelas águas agitadas. Mergulham suas cabeças na água e quando reaparecem não são mais cisnes, mas os mortos da ilha Madalena, afundada desde o primeiro dia do nosso golpe de milicos e manobristas traiçoeiros. As memórias passadas estão voltando, querem a sepultura da verdade

─         Alguém lhes diga que foram os cadáveres necessários!

—        Necessários pra quê, assssino!

Chegam da retaguarda caminhando sobre as águas, abandonaram a renúncia paciente.

Ali, enquanto estou dobrado sobre as botas, a escuridão é rasgada por um feixe luminoso branco e irreal, sou refletido no espelho do lago, mas é o General Calçacurta que passa a existir. Sou o homem de bigodes fartos e mão pesada. Eu sou ele.

Ergo o corpo do General e encaro os maltratados. Mesmo cansados e sem rosto ainda resistem. Não se assustam mais, já perderam tudo.

O General Calçacurta vive e me tornei a carne que o sustenta. Não morre enquanto estou vivo. Meu corpo é sua vida.

A ladainha aumenta.

A viúva... onde está a menina... — General, perdi-me das duas!

Avançam sobre o Calçacurta. Arremessam-se contra mim. Arrancam aos dois do atoleiro e nos transportam sobre suas cabeças. Vamos carregados de mãos em mãos.

Arrancam meus pedaços e comem o General. Vou perdendo partes e o outro vai sendo engolido. É tirado de mim, pedaços por pedaços e grita ordens de resistir e atacar

─         Atacar quem, General?

Arrancam um braço inteiro, perco uma das pernas, outro braço, outra perna. Assisto minha morte ali, em pé, sou uma sentinela que não dorme. Não fecho os olhos.

As ossadas insaciáveis retomam suas carnes de gente.

Olho para os rostos: foram tão jovens... quanto desperdício de vidas.

Voltaram pras despedidas.

O General devorado sorri, ele vive na lembrança de cada desaparecido

─         Estou por aí, Chuparacha...

─         Foda-se, General!

─         O que é isso, soldado!

─         Enchi o saco!

─         Soldado... Sentido!

─         Vai à merda! Morri por nada e deixei morrer por menos, ainda.

Deito na sombra do jatobá com um fiapo de grama no canto da boca.

Um pequeno sorriso me escapa e sai pulando pelos seus galhos...

Levanto, a obrigação é maior que a minha consciência e volto à ficção de sepultar o General Calçacurta

─         General, me diga, o que aconteceu com esses cravados pelo campo?

─         Guri, eles quiseram brincar de dar tiros, tudo muito amador...

─         O que aconteceu?

─         Muita loucura.

─         E daí?

─         Foram varridos.

Aperto com força a alça do caixão. Pior cego é aquele que não quer ver, mas fica se fingindo de bom moço. Disfarçando que está dormindo, mas espiando com o rabo do olho. O General fora metade homem e metade monstro: gritando, espancando e fazendo os presos perderem o juízo. Eu me distraí com seus encantos e larguei o controle da minha vida. Coisas de guri e homem ambicioso. Agora o filho-da-puta está despencado no abismo inevitável da morte, mas segue repetindo essa conversa mole de guerra e tudo mais

─         Chega, Chupa-racha! Relaxa e goza!

—        General, deveria seguir o próprio conselho: seu discurso é o resumo da obviedade já anunciada durante a sua vida de lorotas e trogloditas. Ficou velho, General!

Eu preciso continuar a viver. Os seus inimigos jurados de morte não são meus inimigos. Aliás, nem tenho vontade de ter inimigos. Não quero bloquear portas nem gastar energias com confrontos: prefiro contornar meus obstáculos sem discutir. Estou aprendendo a amar sem esperar muito dos outros. Sinto a necessidade de um descanso prolongado. Colocar em repouso as ideias. Ficar atirado à sombra de alguma árvore, em lugar longe de divisas ou cercas, folheando algum gibi que me caísse nas mãos. Andar desarmado de qualquer arma. Longe de qualquer caçada. Dar-me uma oportunidade pra recomeçar. Pra mim, isso tudo se acaba quando cimentar o General naquelas paredes que guardam os mortos

─         Chega, general! Relaxa e goza!

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