General! Sinto saudades!
Eu decidi que na minha hora, quero ser incinerado. Nada disso de ficar
desmanchando e cheirando mal. Exibido na vista de todos e desconsertado. Não,
definitivamente não. Basta terem certeza que morri e deixar o foguista me
enfiar na fornalha. Meu medo é ter morrido sem estar morto. Afinal, nesse tempo
de ajudante do General, minha vida foi um faz de conta sem honra. Fui cego sem
nunca ter deixado de ver, mudo como em um túmulo de surdo, só escuto o que me
dizem pra ouvir, um pau bem mandado.
O fogo haverá de purificar minhas carnes. Fará tudo desaparecer de uma
vez. Virar cinza. Solto no vento. Coisa nenhuma de velas, eu tenho asma. E
depois quero ser espalhado bem alto, o mais alto que seja possível pra aragem
me levar daqui. Quero descobrir outras recordações de morto. Não quero viver
com os mortos que já conheço. Tenho na minha vontade precisão de conhecer gente
diferente.
Quem me aprecia, quase ninguém me olha, vai dizer que isso de queimar até
as cinzas é zombaria
─ Ele tem medo do fogo.
─ Nunca quis sair daqui.
Isso é verdade, em parte, tenho aversão ao vigor que vem das chamas. Mas
tenho mais terror de me pensar desmanchando, apodrecendo aos poucos. Perdendo a
robustez das carnes abaixo da terra, soterrado por toneladas de vermes famintos.
Baratas, formigas e ratos. Prefiro a grande energia da fogueira. Tudo muito
rápido. E esse comentário sobre não querer sair daqui, não é verdade. Às vezes
todas em que disse para o General desta minha vontade, fui convencido a ficar. Seria
mais seguro
─ Chupa-racha, não tenho
como garantir sua chegada até a fronteira.
─ Mas, General...
─ Guri, é capaz de nem
chegar à esquina das próximas ruas que se cruzam.
Espalhem as minhas cinzas, as minhas lembranças de coisa extinta. A
saudável rotina desintegrada. Ah, quase esqueço, tudo isso feito depois dos julgamentos
médicos necessários. O meu caixote fechado, sem cheiros e olhares de aflição.
Terei partido pra lugar nenhum. Não existe mais nada pro corpo do morto. Deixem
que os ventos se encarreguem da poeira e da minha retentiva. Bastará a vida de
flutuar no ar por aí. Desinteirado. Isso de queimar é um pouco de crendice
minha. Eu acredito que me torrando termino com minhas chances de voltar a esse
mundo. Queimar as pontes é não poder retornar. Uma vez já me basta.
Mas deixemos isso pra lá, minha hora e a de todos vai chegar, hoje,
devemos manter o foco no General, nossa atenção é toda pro General. O canalha
se foi. Essa é a hora dele. Guardemos atenção em sua memória. Foi homem que fez
sorrir e chorar. Eu diria que muita gente chorou em suas mãos e, uma que outra,
sorriu das suas diabruras.
O ataúde ainda está fechado.
Ordens minhas e burocracia precisam ser cumpridas. Depois de alguns
resmungos vem contra ordem e me ponho a abrir o sarcófago. Algo como a viúva
querer se despedir. Faço movimento na intenção de contrariar a desamparada em
vida, mas desisto. Reconheço e respeito a sua necessidade de certeza. Ainda
guarda a beleza da mocidade sem precisão de muitos reparos. Casaram no ano da
Revolução, quando eu era guri de primeira vez na escola. Mas o general já a
vinha desposando desde muito antes. Tiveram os dois filhos antes das
oficialidades do casório. Lembro, foi por essa época, que papai chegou em casa
e comunicou
─ Estamos mudando.
Trocamos da capital pro interior do interior. Foi difícil pra mamãe. Papai
vivia de viajar. Eu adorei. Mamãe jamais se recuperou. Ela nunca se
desaborreceu. Muitos silêncios e solidão na vida de uma jovem senhora. Muito
mato e campo na disposição das fantasias de menino. Bons tempos de criança.
Maus tempos na vida de minha mãe. Agora, a barba na cara e as calças compridas
me dizem que preciso lidar com essas coisas de morte e família enlutada.
Retiro o quepe que estava sobre o caixão. Começo a desparafusar a tampa
do sarcófago nos pés. Movimento os parafusos borboletas no sentido anti-horário
em pequenos giros intermináveis. Imagino se o General estava bem morto quando
fechei a tampa. Sinto um frio pela barriga até as vias de cólicas, só me falta,
neste momento da vida, encontrar o defunto com sinais de morte por falta de ar.
Na medida em que vou soltando os parafusos borboletas, eles saem a esvoaçar
pelo morgue. Tenho visões do General. Ele está arroxeado pela asfixia e as
unhas arrancadas, presas as paredes do caixão. A boca torta e escancarada
denuncia um grito que não se ouviu. Agora, não tem mais jeito, devia ter
examinado bem o morto, até a exaustão. Enfiado alguns alfinetes no corpo e
observado alguma reação. Estou na última borboleta, giro lentamente e sinto o
suor na testa. Uma senhora se aproxima e enxuga minha cabeça com um lenço. Faço
um pequeno sinal de agradecimento com a cabeça preocupada. Olho pra a pequena
cruz pendurada na parede, atrás do ataúde. Nenhuma reza me chega aos lábios. Está
terminado, não tenho outra alternativa que levantar a cobertura do caixão.
Conto mentalmente até três e liberto aquela múmia do enclausuramento. Ali está
o General. Acomodado e quieto, pra sempre. Bem do jeitinho em que o coloquei. O
General Calçacurta é também reconhecido pela sobrancelha branca.
Os pés cobertos pelo coturno de campanha. Imagino quantos pescoços foram
quebrados por aquela sola de couro. Precisei amarrar um coturno no outro, senão
o General ia ficar com as pernas abertas. E todos vão convir que num general
morto não fica bem as pernas arredadas. Também, é verdade, o homem não mantinha
os fundilhos no lugar, a cueca estava quase sempre arriada do mastro, peça
cilíndrica de carne que nos tempos antigos da sua mocidade, se erguia feito um
farol apontando pra coxas apartadas. Sempre manteve os pés apoiados na
sobrequilha até a parte superior espigar os mastaréus em devassidão de gritos e
obscenidades.
O General tinha muita confiança na força do próprio mastro que dizia
suportar o peso de qualquer embarcação e não se assustar com os ventos em
alto-mar
─ Soldado!
─ Sim senhor, General.
─ Deixa o motor ligado.
─ Senhor, daí não tem como
escapar.
As mãos juntadas e cruzadas, uma sobre a outra, acima da fivela do cinto,
junto ao peito. Claro, devidamente juntadas pela força. O uniforme está
impecável. As condecorações brilham. O quepe, eu julguei melhor deixar sobre o
esquife. Antes de vestir esse seu corpo descarnando fiquei em dúvida entre o
boné xadrez ou o chapéu de couro. Até pensei em vestir sua cabeceira com aquela
armadura da cabeça, o capacete de aço, vestido na guerra contra os comunistas
desgraçados, lá no Araguaia, lembra? Mas foi o quepe que ficou mais alinhado. Pensando
nisso, vejo o desperdício que foi a sua vida de lutar contra os comunistas. Eles
vêm chegando pra ficar e o senhor se foi para nunca mais voltar
─ Chupa-racha, nada é para
sempre nesse mundo.
─ Isso não tem volta,
General: se morreu... morreu!
─ A gente dá um jeitinho.
Tudo estaria bem, não fosse um pequeno detalhe. O General está sem o seu
bigode. Aqueles pelos negros e compridos sobre o beiço superior foram raspados.
Não sei quem faria isso com o homem já morto. Aquele bigode era o orgulho de
macho do general. Medalha de honra que carregava acima da boca e abaixo do
nariz. Contava que, em certa feita, um jovem foi salvo de uma racha encantada,
pelos fios do bigode. Numa dessas prainhas da nossa terra abençoada, o jovem
reparou que as águas se mexiam de jeito curioso. Fixou o olho e se aproximou,
quando cessou o rumor das águas, saiu das suas profundezas um lagarto, com uma
pedra preciosa fincada no alto da cabeça. O homem ambicioso levou o lagarto pra
casa e o alimentou. O lagarto que era encantado transformou-se numa linda moça
que lhe ofereceu as minas das pedras preciosas. O rapaz recusou as riquezas,
mas não resistiu aos encantos da moça. Por sorte, quando levou os fios do
bigode até a racha da rapariga, percebeu que não era uma moça que tinha nos
braços, mas um lagarto de mau hálito. Desfez o encanto a socos e pontapés. E se
livrou de casar com o lagarto
─ Chupa-racha, nesses pelos
carrego os cheiros da vida.
O homem não enfiava a baioneta em terreiro desconhecido. Cheirava e
sentia o gosto antes. Saia aos gritos se percebesse algum mau cheiro ou
azedume. Agora, o corpo morto está sem os pelos aparados até a raiz. Olho no
redor a procura do sem vergonha. Pensando bem, poderia ser qualquer destes fulanos.
Deixa pra lá. O único gosto que o General vai sentir daqui pra frente é do desinfetante
que lhe derramei garganta abaixo. Limpeza dos subterrâneos do morto. Dou-lhe
outra olhada, é a primeira vez que o vejo sem os bigodes. É tudo muito
estranho. Não parece ele. É outro que morreu. O General de bigodes há de entrar
porta adentro, no rumo do morto, e anunciar que ainda se encontra no jeito de
mandar e desmandar. Essa cerimônia de despedidas é apenas formalidade. Pro bem
da verdade, que não gosto de omitir, o velho general entortado pelo derrame há
muito havia perdido as influências. Gente nova veio a lhe tomar o lugar. Os
tempos são outros. Os presos de ontem, nos dias de hoje, já quase mandam
prender. Vai chegar o dia que terrorista vira chefe de alguma coisa. O General
viveu o seu faz-de-conta na cama de entrevado, como um guerreiro ancestral das
lutas do bem e do mal. A gente nova autorizava continuar mentindo que nada
aconteceria sem o seu conhecimento. Era tudo uma questão de tempo. Apenas,
esperar que a carne se desprendesse da vontade. E a ocasião das despedidas
chegou
─ Ouviu, General? O seu
tempo acabou!
─ Guri, não me aborrece.
O meu olho canhoto vai até o canto, espia o morto. Nada. Merda de homem
que me confunde, ora sinto ódio do cafajeste, noutra tenho preferências de
saudades. Não consigo ter aversão de mim mesmo.
Imaginar que o defunto, a qualquer momento vai levantar e, com aquela sua
voz rouca, haverá de contar alguma piada obscena pra deixar cair da boca o
cigarro de palha, me impede de ficar todo de costas. Assumi posição de guarda,
de tal jeito, que lanço olhar de desvio pelos cantos do olho e, assim, posso
perceber qualquer gesto de desconforto ou resistência do deixado de existir.
Ninguém notou que a morte lhe fez bem. Não recebia, desde muito tempo, qualquer
visita de formalidade que não fossem as vistorias médicas. Os visitantes de
antes, que desapareceram depois do achaque do derrame, não conheciam aquela sua
boca torta, caída ao lado, como um desfalecimento da máscara de cera que sempre
foi seu vulto. Na morte a aparência torta se foi, até parece que feneceu junto.
Agora o senhor não necessita mais das máscaras e os palcos de sua atuação estão
se dispersando. A bilheteria fechou e o espetáculo foi suspenso. Os músculos
puderam relaxar e a boca retomou seu lugar. Está pálida e se parece com uma
boca humana fechada sem nada pra dizer. Laqueada de qualquer assunto. Menos mal,
que assim não fico a ouvir lamentação de defunto, reclamando de aparência
descuidada. O General sempre teve cuidado de aparentar figurino de grande
porte. Dominava pelo bigode farto. Ninguém conseguia desviar de olhar sua
bigodeira durante o assunto de entendimento. Eu mesmo não consigo lembrar
seriamente a cor dos seus olhos, General. Jamais consegui encarar o senhor.
Bobagem.
O braço direito escaveirado e todo paralisado deu certo trabalho. Os
dedos contraídos num desenho de garra, escondidos por luvas de camurça preta, não
se deixavam amarrar a outra. A amarração precisava ser na altura do peito,
posição oficial de todo defunto. Mas que diabo, morto depois de morto não tem mais
querer. E aí está o senhor, um general com as mãos amarradas ao peito, uma
sobre a outra. Serviço bem feito. Sinto orgulho desse último cumprimento de
tarefa, mas não se engane, fiz por mim. Não queria e não mereço receber queixa
de descuido com o General. Isso é mais ou menos como jeito de mulher descasada,
durante anos não aparece, mas no velório vem pra posar de esposa e reclamar dos
seus direitos. Não que ex-marido não tenha a mesma cobiça, mas tem medo do
julgamento da vergonha. Neste caso, a vingança perde forças pra razão e o cara
se conforma em posar de bom homem. Prefere a falsidade do acomodamento de bom
moço.
A perna mais curta ficou mais curta. Depois do derrame na cabeça, a outra
se endureceu e nunca mais dobrou. Tudo ficou mais difícil. A boa era a pequena
e a doente toda dura, a comprida. Peregrinava pela casa como um torturado
amarrado numa perna de pau, mas apenas em uma das pernas. A perna pequena,
ainda solta, que no vigor da juventude foi um estorvo, na velhice se tornou o
amparo de lucidez. Mas era o uso das fraldas que o socorriam sempre que a perna
curta não dava auxílio. No começo, o homem ficava muito reduzido sempre que
enchia as fraldas. Até que passou a não mais se conter. Aquela imundície passou
a não ser mais dele, mas do mundo e alguém havia de assear. Sempre houve quem
limpasse a sua sujeira. Não haveria de ser agora que haveria de se constranger
por receber ajuda.
Dei seu último banho, depois de tantos outros. Não será mais preciso
agarrá-lo pelos sovacos, manter o corpo nu e doente, em pé, pela força dos meus
braços. Fica assim, deitado de costas, até virar caco e depois poeira. Destino
de todos, General. Apenas um pano úmido com um desinfetante pra desmanchar o
cheiro da morte.
Tirar os excessos da vida que se foi. É isso mesmo, seu grande
filho-da-puta, a vida de abuso e violência cometidos se foi
─ General, sinto saudades!
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Leia também:
II - O homem da limpeza
IV - O filho-da-puta me salvou!
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