Viramos os demônios e eles os
anjos
Quando se está de saída repentina parece que o tempo das despedidas é
magro. Mas um sujeito como eu que foi definhando e enxergando o final da
viagem, a cada quadra da estação, já atirou pelas janelas a bagagem desnecessária.
E que a piedade não me seja oferecida, guardem essa indelicadeza para os
fracos. Estou requerendo aquelas honras que me são devidas como soldado
─ Sargento!
─ Sim senhor, General!
─ Vamos infiltrar pelos
lados, movimento de pinça...
─ Senhor, permissão para
falar!
─ Fique à vontade, sargento.
─ General, os jagunços
informaram que os inimigos são menos que os dedos da mão. Talvez, uma boa
conversa...
─ Sargento, não vim até
esses matos pra tomar conselho de jagunço.
Fui o melhor combatente contra a má intenção de homens e mulheres
medíocres
─ Senhor, tem mulher por lá.
Uma delas está de barriga.
─ E lá essas comunistas
ficam grávidas? É inchaço de verminose... a vida no mato é difícil, sargento.
─ Mas senhor...
─ As miseráveis pediram e
vão ter tratamento de meretriz!
─ Sim senhor!
─ Chega dessa merda! Passa a
instrução para nossa gente.
Não tenho culpas nem remorsos guardados em mim, fiz o que tinha que ser
feito. Quase nunca reagia com sede de vinganças ou mágoas. Fui o homem certo,
no lugar certo, na hora certa. Tudo conspirou a meu favor. Foram tantas as
sortes que desconfio do que vem daqui para frente. Talvez, uma reação contrária
a minha boa estrela. Uma contrarrevolução. Paciência.
Rapaz se achegue mais um pouco. Escute o murmúrio das folhas agitadas
pelo vento quente. Isso mesmo... escute e sinta como se movem todas juntas. Não
tenha medo que as despedidas do corpo não amoleceram esse guerreiro, não corro
risco de virar poetisa. Apenas, me veio na lembrança o Araguaia e o silêncio depois das rajadas: os gritos aos pés do jatobá. Olhava para o alto e ouvia o murmúrio
das suas folhas carregadas por um sopro quente e úmido. Depois virava as costas
e saia. E o que me acompanhava era aquele zumbido das folhas do jatobá.
O Chupa-racha se chegou mais próximo da minha cama de ferro. Acho que sou
aquele enfermo que não tem mais jeito, sigo respirando por teimosia. Sempre fui
muito aferrado nas minhas vontades, mas, pela cara do guri, as coisas saíram do
controle. Torno a pedir que chegue para perto. Não tenho preferência de
acompanhamento nestas despedidas de corpo presente, mas a voz já não me sai com
animação e não se impõe sobre as outras vontades. Nunca me incomodou a solidão
de encabeçar a chefia e o isolamento reforçou a vontade de desconfiar o tempo
todo de tudo. Adorava derrubar, pisar no pescoço e ficar olhando o azulamento
da casca que moldava aquelas máscaras. Tênue. Uns mijavam, outros cagavam,
tinha de tudo, mas o olhar era sempre o mesmo, provocante e silencioso.
Arrogantes.
Mais perto, assim... assim... a voz me saiu espremida
─ Acha que escapamos do
inferno?
─ Inferno, General?
─ É! Aquele geniozinho da
garrafa com tridente e guampinhas...
─ Não acredito, General.
Não acreditava em inferno e não acredito que escapamos... não importa.
Ninguém acredita que rezando as coisas vão melhorar, mas estamos sempre
rezando, é a influência dos fados de ficar olhando e entregar-se às mãos de um
deus protetor e vingativo
─ Cá entre nós, tenho
certeza que não escapo.
─ Se o senhor diz...
─ Eu sei de onde eu venho.
Fiz muita merda!
─ Arrependido?
─ Se eu pudesse mudava
algumas coisas.
─ Dá pra dizer o quê?
─ Talvez mais sangue...
─ Mais?
─ Foram as nossas fraquezas
que nos derrotaram!
E de todas que se possa citar, eu elejo a ganância e o ciúme como as
causas da nossa ruína. Implodimos a nós mesmos. Parece que cansamos de nós
mesmos.
As suspeitas fizeram a inquietação da nossa própria carne. Caímos
desconfiando uns dos outros, e muita gente boa foi exigida em demasia. Perdemos
fileiras importantes de soldados. Aquela porra do Mataborrão foi o primeiro a
abandonar o barco — Filho-da-puta! — se passou de lado, como se não tivesse
nada a ver com nada
— Isso é hora de chorar,
General.
— É raiva, choro de raiva, Chupa-racha.
Esse filho-da-puta virou defensor da soberania do povo, como se acreditasse na
escória.
— Canalhas existem aos
montões por aí.
Logo esse, que não moveu um dedinho para cuidar da pobreza. Lembro-me da
nossa última conversa de merda. Sujeito escorregadio, traiçoeiro, vende a mãe e
passa por cima
— General, não me entenda
mal, não estou aqui defendendo essa gente desqualificada.
— E eu não fico equilibrando
meu bigode em nenhum fio de navalha. Direito de voto para analfabeto que se
vende por prato de comida, isso não tem cabimento...
─ General Calçacurta, acho
que cansaram do nosso jeito.
─ Bobagem, Mataborrão!
─ Gritam por minha renúncia.
─ Não sabem o que dizem.
Vamos cuidar de tudo.
— Não dá mais tempo, General.
Chupa-racha, esse Mataborrão foi um cagão, nunca sujou as mãos ou as
botas e saiu em correrias na primeira ocasião desfavorável.
O comandante nunca poderia ter sido um desfardado
─ Mas, General, ele era
fardado.
─ Não usava a farda de
comandante para parecer um desfardado.
─ E daí?
─ Isso não funciona, tem que
marcar presença.
Quase perdi meu comando quando deixei escapar minha desconfiança. Queria
um fardado de farda no comando geral, não aceitaram e deu no que deu.
A verdade é que o homem sentiu a gravidade do caminho e não teve colhão
para dar as ordens de aniquilamento da rebeldia — Precisamos passar por cima da
indecisão do comandante! — Ninguém me deu ouvidos. Esse foi o mais fraco de
todos, gostava mesmo era de comandar rabo-de-saia e montar sela
─ Sinto-me esmagado por
forças terríveis.
─ Senhor comandante, diga os
nomes que daremos um jeito.
─ São muitos apetites e
ambições, fui esmagado.
Não foi feito para missão de tal importância.
Estamos envelhecendo e não fica nada. Sinto que vão passar a régua e
tirar nossos nomes dos livros das crianças. Um erro de não estranhar, vão
desconhecer nossos feitos. Ainda, viramos os demônios e eles os anjos.
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