quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

XVI - General Calçacurta


Viramos os demônios e eles os anjos

baitasar

Quando se está de saída repentina parece que o tempo das despedidas é magro. Mas um sujeito como eu que foi definhando e enxergando o final da viagem, a cada quadra da estação, já atirou pelas janelas a bagagem desnecessária. E que a piedade não me seja oferecida, guardem essa indelicadeza para os fracos. Estou requerendo aquelas honras que me são devidas como soldado
─         Sargento!
─         Sim senhor, General!
─         Vamos infiltrar pelos lados, movimento de pinça...
─         Senhor, permissão para falar!
─         Fique à vontade, sargento.
─         General, os jagunços informaram que os inimigos são menos que os dedos da mão. Talvez, uma boa conversa...
─         Sargento, não vim até esses matos pra tomar conselho de jagunço.
Fui o melhor combatente contra a má intenção de homens e mulheres medíocres
─         Senhor, tem mulher por lá. Uma delas está de barriga.
─         E lá essas comunistas ficam grávidas? É inchaço de verminose... a vida no mato é difícil, sargento.
─         Mas senhor...
─         As miseráveis pediram e vão ter tratamento de meretriz!
─         Sim senhor!
─         Chega dessa merda! Passa a instrução para nossa gente.
Não tenho culpas nem remorsos guardados em mim, fiz o que tinha que ser feito. Quase nunca reagia com sede de vinganças ou mágoas. Fui o homem certo, no lugar certo, na hora certa. Tudo conspirou a meu favor. Foram tantas as sortes que desconfio do que vem daqui para frente. Talvez, uma reação contrária a minha boa estrela. Uma contrarrevolução. Paciência.
Rapaz se achegue mais um pouco. Escute o murmúrio das folhas agitadas pelo vento quente. Isso mesmo... escute e sinta como se movem todas juntas. Não tenha medo que as despedidas do corpo não amoleceram esse guerreiro, não corro risco de virar poetisa. Apenas, me veio na lembrança o Araguaia e o silêncio depois das rajadas: os gritos aos pés do jatobá. Olhava para o alto e ouvia o murmúrio das suas folhas carregadas por um sopro quente e úmido. Depois virava as costas e saia. E o que me acompanhava era aquele zumbido das folhas do jatobá.
O Chupa-racha se chegou mais próximo da minha cama de ferro. Acho que sou aquele enfermo que não tem mais jeito, sigo respirando por teimosia. Sempre fui muito aferrado nas minhas vontades, mas, pela cara do guri, as coisas saíram do controle. Torno a pedir que chegue para perto. Não tenho preferência de acompanhamento nestas despedidas de corpo presente, mas a voz já não me sai com animação e não se impõe sobre as outras vontades. Nunca me incomodou a solidão de encabeçar a chefia e o isolamento reforçou a vontade de desconfiar o tempo todo de tudo. Adorava derrubar, pisar no pescoço e ficar olhando o azulamento da casca que moldava aquelas máscaras. Tênue. Uns mijavam, outros cagavam, tinha de tudo, mas o olhar era sempre o mesmo, provocante e silencioso. Arrogantes.
Mais perto, assim... assim... a voz me saiu espremida
─         Acha que escapamos do inferno?
─         Inferno, General?
─         É! Aquele geniozinho da garrafa com tridente e guampinhas...
─         Não acredito, General.
Não acreditava em inferno e não acredito que escapamos... não importa. Ninguém acredita que rezando as coisas vão melhorar, mas estamos sempre rezando, é a influência dos fados de ficar olhando e entregar-se às mãos de um deus protetor e vingativo
─         Cá entre nós, tenho certeza que não escapo.
─         Se o senhor diz...
─         Eu sei de onde eu venho. Fiz muita merda!
─         Arrependido?
─         Se eu pudesse mudava algumas coisas.
─         Dá pra dizer o quê?
─         Talvez mais sangue...
─         Mais?
─         Foram as nossas fraquezas que nos derrotaram!
E de todas que se possa citar, eu elejo a ganância e o ciúme como as causas da nossa ruína. Implodimos a nós mesmos. Parece que cansamos de nós mesmos.
As suspeitas fizeram a inquietação da nossa própria carne. Caímos desconfiando uns dos outros, e muita gente boa foi exigida em demasia. Perdemos fileiras importantes de soldados. Aquela porra do Mataborrão foi o primeiro a abandonar o barco — Filho-da-puta! — se passou de lado, como se não tivesse nada a ver com nada
—        Isso é hora de chorar, General.
—        É raiva, choro de raiva, Chupa-racha. Esse filho-da-puta virou defensor da soberania do povo, como se acreditasse na escória.
—        Canalhas existem aos montões por aí.
Logo esse, que não moveu um dedinho para cuidar da pobreza. Lembro-me da nossa última conversa de merda. Sujeito escorregadio, traiçoeiro, vende a mãe e passa por cima
—        General, não me entenda mal, não estou aqui defendendo essa gente desqualificada.
—        E eu não fico equilibrando meu bigode em nenhum fio de navalha. Direito de voto para analfabeto que se vende por prato de comida, isso não tem cabimento...
─         General Calçacurta, acho que cansaram do nosso jeito.
─         Bobagem, Mataborrão!
─         Gritam por minha renúncia.
─         Não sabem o que dizem. Vamos cuidar de tudo.
—        Não dá mais tempo, General.
Chupa-racha, esse Mataborrão foi um cagão, nunca sujou as mãos ou as botas e saiu em correrias na primeira ocasião desfavorável.
O comandante nunca poderia ter sido um desfardado
─         Mas, General, ele era fardado.
─         Não usava a farda de comandante para parecer um desfardado.
─         E daí?
─         Isso não funciona, tem que marcar presença.
Quase perdi meu comando quando deixei escapar minha desconfiança. Queria um fardado de farda no comando geral, não aceitaram e deu no que deu.
A verdade é que o homem sentiu a gravidade do caminho e não teve colhão para dar as ordens de aniquilamento da rebeldia — Precisamos passar por cima da indecisão do comandante! — Ninguém me deu ouvidos. Esse foi o mais fraco de todos, gostava mesmo era de comandar rabo-de-saia e montar sela
─         Sinto-me esmagado por forças terríveis.
─         Senhor comandante, diga os nomes que daremos um jeito.
─         São muitos apetites e ambições, fui esmagado.
Não foi feito para missão de tal importância.
Estamos envelhecendo e não fica nada. Sinto que vão passar a régua e tirar nossos nomes dos livros das crianças. Um erro de não estranhar, vão desconhecer nossos feitos. Ainda, viramos os demônios e eles os anjos.

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