terça-feira, 17 de janeiro de 2012

XV - General Calçacurta


Fantasmas que precisamos expiar

baitasar

Não pedi ao General pra cuidar da viúva...
─         O General deixou tudo arrumado para você continuar cuidando da gente.
Levantei, dei alguns passos, olhei pra trás e pensei em reclamar ─ Por favor, dona Clara, preciso de um tempo...
Já tinha minha resposta.
Mas não queria que tudo fosse tão fácil pro General Calçacurta. Convoquei às duas que dormissem um pouquinho. Eu continuaria a vigília. Caso percebesse algum movimento eu acordaria a viúva e a moça, nessa ordem. Concordaram. Passaram pra salinha de descanso ao lado do banheiro, juntaram algumas cadeiras e improvisaram uma cama de campanha. Com certeza, seria o suficiente pra um pequeno descanso: a serventia destas camas é permitir um rápido afrouxar do esqueleto. Camas de campanha jamais criam vontades desnecessárias de ficar deitado. Soldado no quartel está em permanente estado de prontidão e viúva em velório troca de lado o alvoroço e o frescor da alegria: se deixa invadir pelo melancólico
—        Meus pêsames!
─         Obrigada!
—        Nossas condolências...
—        Obrigada... ele foi um aproveitador da vida... — agradece sem sinais de alguma esperança no que há de vir.
Acendi um cigarro enquanto caminhava lentamente de um lado a outro da capela. Nunca me viram fumando, têm cacoetes que se precisa esconder das vistas da curiosidade — Inclusive do senhor, General.
Cultivo em mim, com certo desamparo e silêncio, alguns tiques de impaciência. Assunto de manobra, como os interrogatórios do General, que não precisam de publicidade. Coisa minha, sem necessidade de mais ninguém saber. As minhas aparências o enganaram
—        Isso lá é verdade, me enganou bem direitinho.
—        Sempre tive o cuidado de juntar as baganas e desmanchar os cheiros.
—        Atenção, seu filho-da-puta! Deitou cinza nos olhos do morto!
—        E morto fala?
—        Cuidado, Chupa-racha...
—        Coisa pequena se comparada com a tapeação do General.
—        Que história é essa de tapeação?
—        General, os tempos são outros; olhe a sua volta: os tempos mudaram... — encarava o morto nos olhos, mas ele se mantinha duro como um cadáver que fingia indiferença — admita que o senhor foi um grande sacana, a caveira sinistra da chefia do governo. As prisões cheias de jovens potencialmente suspeitos, para o senhor só havia dois tipos de suspeitos: os leais e os desleais. Todos eram suspeitos e por isso o adulavam, calavam, fingiam que nada acontecia. Outros se mostravam colaboradores inestimáveis.
—        Chupa-racha!... esquece dos colaboradores.
—        O cidadão comum não sabia de nada, mas os seus amigos grandões...
—        O que deu em você seu filho-da-puta!
—        Acabou o seu reinado de terror!
O silêncio se tornou total. O morto ficou entorpecido pela morte. Acho que não sai mais dessa nem que a vaca tussa. É morte permanente. Esse se foi: não tem mais volta. Morto, que é morto de verdade, não sobrevive, mas se desmancha das memórias. Desencanta da alma.
Saio até o jardim da paz por rebeldia, avisto o pé de jatobá com uns quinze metros de altura e seu tronco imenso. Um jatobá jovem. Fico olhando suas frutas misteriosas. Recolho uma do chão e a examino. Parece uma vagem de casca dura. Os índios dizem que são tão energéticas que trazem o equilíbrio de desejos: sentimentos e pensamentos em uma orgia espiritual. Tenho vontade de comer pedaços dessa purificação dos sentimentos. Quebro sua casca e levo a boca sua polpa farinácea. Tem sabor adocicado.
Vou me afastando do lugar de guardador do morto. É estranho, mas aqueles dois jovens estão lá, novamente é a moça que olha assustada em minha direção. Tenho vontade de acenar em sinal de paz. Agito uma das mãos. Acho que se convence e volta sua atenção para o moço — Amorzinho, eu te amo.
—        Eu sei.
—        Ah, mas que convencido.
—        Eu também gostaria que tudo fosse simples e gostoso, assim como pão quente com manteiga.
─         Amorzinho, to sempre com saudades.
─         Adoro te namorar.
─         Beijamim, fala aquele poema, me aquece com ele...
─         Não resisto mais e vejo-me amando-a:
ah, menina de um sonho cresce ao sol, sem pressa,
demora e mostra-te aos meus olhos encantados,
ah, moça de meus sonhos levados
em teus banhos de amor, estou apaixonado!
Revelo meu corpo aos teus olhos molhados,
ah, mulher com sonhos continua a cantar os sons delicados,
aparece ao luar e, preguiçosamente nua, mostra o homem arrebatado.
─         Amorzinho... descalça, nua e sem pele: quero voar.
Tenho embaraço de continuar a ouvir os dois, mas fico por perto. Estão deitados de costas na grama, aos pés do jatobá. Conversam e contam estrelas que conseguem pegar e guardar em seus bolsos. Quando estamos apaixonados somos tão ruins de memória que esquecemos que estamos morrendo e nos deixamos invadir como a noite pela lua. Viramos poetas das estrelas. Tenho inveja do homem deitado ali, naquela grama, não tem desencontros e mistérios. Tem sonhos com cheiro e sabor.
Não sei da onde me vem uma dor na perna. Preciso mancar pra meu alívio.
Veio do nada, tenho certeza que o nada é apenas isso, ausência de coisa nenhuma e a dor na perna. Olho para baixo e ela está ali, a perna que me dói existe. Tento andar e a dor aumenta. Fico parado alguns instantes e a agonia arde. Finjo que não é comigo, mas a expiação atravessa carne e osso.
Olho pra trás, lembro que estou fora do meu posto e o desgosto amontoa como lixo. Não presto mais e fui jogado fora. É isso, preciso voltar. Mas o cansaço é tão grande. Estou cansado de nunca cansar. Faço meia volta volver e abandono os dois ali na grama. Estou me puxando. Finjo um pigarro e me dou um segundo pra pensar a voz. Quero que ela saia grave e casual até o General.
O coração diminui de tamanho. Lembro que tive uma vida idiota nestes anos de chumbo e porrada. Soldado de papel. Nunca existiram os documentos. Marionete. Ordens são ordens. Termino o cigarro e recolho a bagana ao saquinho, sempre trago uma mochilinha no bolso da calça. Hábitos são hábitos. Estou mascando minha folha de hortelã.
Torno a virar o pescoço na direção dos namorados, mas os dois já sumiram. Em qualquer descuido eles vão.
Não sei o que vou fazer com esta farda. Se pudesse pôr uma roupa paisana... Bom, pelo menos amanhã, quando chegarem os milicos, não preciso bater continência: que se fodam.
Preciso esconder mais isso do Pedro Jacaré: o Calçacurta não é mais general e eu não sou milico. Esse jacaré não entra no céu pelo tamanho da boca. E se descobre minha nova condição de paisano corre pelas esquinas anunciando a novidade. Perco autoridade de guarda de honra. Estou tão envolvido em meus sofrimentos de pensamento que não percebo a visita para o General
—        Boa noite, Himineu.
—        Já vai tarde pra desejar uma boa noite, Zé Barriga.
—        Vim tirar algumas fotos e escrever o obituário do morto.
—        Já conhece o procedimento.
—        Alguma coisa além do que já sabemos?
—        Não sei, mas o que importa aqui é a história do morto.
—        Essa história já foi contada, mas... e você?
Olhei pro sujeito e quase que lhe solto um sorriso
—        O que tenho eu?
—        Gostaria de contar outras histórias?
—        Não está vendo? Sou o pau de fitas da segurança do morto.
—        Conhecemos o sujeito, mas pode sobrar uma grana para você.
Pensei no General, ali, morto e desenfardando até desmanchar. Não, eu não iria eliminar as minhas dores e extrair os meus calos contando histórias, delatando os companheiros de fardamento e vida militar. Não sentia vontade de limpar as unhas da mão com a ponta da baioneta
—        Sou o seu segurança.
Respondi, escondendo tanto quanto pude o tremular da voz, não deu tempo de fingir imponência, o filho-da-puta percebeu minha vacilação
—        Garantia de morto não serve de nada.
Olhei o Zé Barriga e resolvi medir o apetite do seu gozo com o sofrimento alheio
—        Sei coisa pouca, vai depender do tamanho da sua fome.
—        Himineu, o que é mau a gente aproveita, o que é bom a gente atira fora.
Caneta de aluguel que já foi comprada, agora se presta escrever contra pelo prazer da desforra e desfilar imparcialidade, quem não conhece compra
—        Assim, fácil?
—        Isso mesmo!
—        O teu dono sabe dessa intenção com o General?
—        Só estou atrás de um furo.
—        E pode achar...
O Zé Barriga coça a cabeça, puxa um cigarro. A barriga, os olhos inchados da destilada e o cigarro pendurado fazem pensar que esse vai do mesmo jeito. Um breve desconforto com entortamento da boca. A perda dos sentidos. Quando acorda já usa fraldas e de tempos em tempos lhe lavam a bunda. Perde tudo. Até mesmo a oportunidade de acabar tudo. Nem o ar que respira lhe custa barato, lhe chega entubado.
Eu tomo minhas precauções e não bebo, assim diminuo as chances de entortar. Mantenho a vontade de comer sob controle rígido. Não me deixo convencer por paladares exóticos. Sou dependente do arroz, feijão, salada de cebola e um naco de carne assada. Nenhum xarope ou destilado nas refeições. Faço desse jeito e isso me basta pra sobreviver bem, mesmo que a asma me pegue a cada vez mais seguido. Vou me entrincheirando pra essa última guerrilha
—        Zé, não pode fumar no camarim do morto.
—        Por quê?
—        Faz mal à saúde.
—        De quem? O homem está morto.
—        Não suporto fumaça... Você sabe.
—        Tudo bem.
Ele fica com o cigarro apagado na boca. Medíocre. Todo pau mandado é medíocre, tem medo de morrer sozinho. Sabe da cômoda covardia e passa na vida sem proveito, vive levando e trazendo. É um macambúzio
—        O jornal está pagando bem por uma boa história.
—        Quanto?
—        Ai depende da história.
Ainda não medi o meu preço pra esse estúpido, ele quer negociar e ficar com sobra de troco maior
—        Hum, precisa ser de verdade?
—        Alguma vez já precisou? Tudo são meias mentiras...
—        Não sei.
—        Ninguém lembra o que fez ontem, imagina se vai lembrar alguma história do morto depois de morto.
—        O que você quer... Alguma história de bandalheira?
—        Algum grandão metido?
—        O teu dono recebeu muita ajuda.
O Zé passa a mão pela barriga, sabe que esse engajado de mentira tem muita história a contar, mas cuspir no prato que come a própria comida, não dá, nem ele arrisca tanto
—        Conta o que você sabe e vejo como fazer depois.
—        O teu dono acompanhava o General na zona.
—        Putaria?
—        E aqui estamos falando de putas? Puta que te pariu, o dono do teu jornal aparecia na zona de guerra
—        Algum outro desconhecido famoso aparecia junto?
—        O General sempre dividia as suas putas com gente de bem, mas ver o homem em ação nos interrogatórios era privilégio para poucos... — o repórter vai até a porta e acende o cigarro. Fico olhando o sujeito, afinal seu apelido veio antes que os seus hábitos de cerveja e aquela imprensadura no pão de carne, ovo, tomate e alface, desenhassem a sua imensa barriga. Algo como se o apelido tivesse construído a sua sede e fome anormal.
Nos primeiros tempos de convívio entre o Zé Barriga e o General, observava a magreza do subordinado jornalista e não entendia como um sujeito tão magro tivesse aquele apelido. Foi inchando conforme o tempo e o convívio com a fartura das coisas perversas que viu nos porões da Adega. Calado. Engoliu tanta porcaria, tudo está ali, presa no intestino. Na espera de um supositório. A legítima prisão de ventre que pode matar.
Espicho o olho por cima do ombro do Zé e vejo lá no jatobá os mancebos enamorados um do outro. Acho que estou com despeito amoroso. Firmo o olho e escuto-os pelos beiços, o som daquelas vozes me chegam bem alto pelos olhos. Falam como se estivessem bem pertinhos, mais parecem me contando uma história, um conto de fadas
─         Aninha, essa é uma guerra popular.
─         Beijamim, você tem certeza?
─         A gente precisa libertar a nossa gente!
─         Beijamim, o que eu sei está ficando insuportável.
─         Amor, chegou nossa hora, agora a gente vai...
─         Pra onde?
─         Organizar a resistência popular, democrática e patriótica.
─         Amorzinho, agora nós somos uma família...
O Zé faz sinal pra que me aproxime, afinal, tudo se resume em quem come quem e como controlar os boatos
─         Não posso sair daqui.
─         Por quê?
─         Estou na guarda.
─         Meu Deus, não tem ninguém aqui além de nós.
─         E o morto...
─         O morto não vai apresentar queixa.
Faço sinal pra que se achegue, nunca deixei o meu posto. O Zé Barriga fuma mais umas duas vezes e joga o bagaço do cigarro no gramado. Empunha a sua máquina de fotografias e tira um retrato dos dois. O morto e eu, sua guarda de honra.
O General Calçacurta parece que sai do cochilo perpétuo
─         Soldado, nesse não dá para confiar.
─         Eu sei, General.
─         Rapaz, esse se acha além do bem e do mal.
─         Animal de rapina...
─         Medíocre quando põe a caneta à venda.
─         Mas útil, hein General?
─         É isso.
Zé Barriga acena da porta, amassa o cigarro com o calcanhar, vira as costas e sai, caminhando passos de jabuti, passa pelo jovem casal à sombra do jatobá, parece que não os vê
─         General...
─         O que foi, Chupa-racha?
─         Somente os tolos acreditam em tudo que veem no jornal.
─         É isso, soldado Chupa-racha... essa é a trincheira!
─         General!
─         Fala, rapaz.
─         Acho que estou vendo coisas...
Todos têm fantasmas que precisamos expiar vez que outra.

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