domingo, 15 de janeiro de 2012

XIII - General de Calçacurta


Com certidão de nascimento e título de eleitor

baitasar

Já vai madrugada quando retorno para guardar o cadáver do General, o andamento entre as últimas horas da noite e as primeiras antes do nascer do sol. Lembro-me do meu tempo de recruta e a agonia do serviço de guarda. Sempre odiei. Passava a noite dando passos infinitos para direita e esquerda, contando os tijolos do muro que separava minha vida da caserna e o cemitério.
Engraçado, não tinha percebido como a rotina guerreira e os cemitérios estão presentes em minha vida, como se andassem juntos, suportando, ameaçando, sucumbindo ora aos argumentos de um, ora aos assuntos do outro. Matando ou morrendo. Torturando ou mentindo. A vida pode ser muitas coisas, mas, antes de tudo, ela é biológica: tem começo, meio e fim. Tudo termina, até a própria vida. E a do General acabou. Estamos no cemitério, velando as suas estrelas.
Ficaram apenas as velas.
E as duas mulheres.
É assim essa vida de interesses. A viúva e a filha manca têm como destino o esquecimento. Saúdo as duas com uma boa noite, estou constrangido e me vou ao posto de guarda
─         Himineu, por favor, larga de fazer pose de guarda, vem tomar um café.
A vida da memória é mais complicada, ganha ares de invencionice e crendice. O General continua na lembrança da maioria que lhe conheceu, seja na bordoada ou nos favores
—        Chupa-racha, sou a desafeição dos inimigos e o resguardo protetor dos amigos. Não conseguem esquecer meu cacete.
O homem se dava importância além da própria autoridade
—        Arrogante é a puta que te pariu!
—        General...
—        Silêncio soldado, tu só é o que é agradeça a mim.
—        Eu sei, General...
—        O que precisou ser feito foi feito!
—        Eu sei, General...
—        Porra de democracia ô caralho. Eu sou a lei...
—        Era...
—        Era o quê?
—        A lei...
—        Tu não sabe de nada, guri.
Olho de canto de olho pro morto, procuro sinais que o defunto esteja babando. O General quando estava enfurecido gritava e babava. Parece que morrer lhe fez bem, continua gritando, mas deixou de babar
—        Himineu! — é a viúva. Faz um aceno para que eu saia da posição de guarda.

Penso em revidar que precisamos ficar atentos, alguém pode chegar de surpresa e a guarda vai estar fora do seu lugar. O General não haveria de gostar. Mas que bobagem, esse general não tem mais querer, isso mesmo, esse está morto. Outra vozinha surge lá do meu quartinho escuro, sussurra um aviso ─ Ainda temos muitos generais esparramados por aí. 
Olho para os lados por costume de medo
─         Himineu, o café está esfriando.
─         Estou indo, senhora.
Todo cuidado é pouco.
Sobrevivi até aqui, não vou jogar fora a oportunidade de seguir em frente.
Sinto que esse líquido derrama calor em minhas entranhas. Sou agradecido: estou precisando disso. De repente, sentado, com essa caneca de café quente entre as mãos, sinto necessidade de pensar no meu futuro, pela primeira vez, em muitos anos
─         Himineu...
─         Sim, senhora!
─         Depois das cerimônias, vamos esperá-lo em casa.
─         Senhora, devo me apresentar no quartel para novas ordens.
─         Quartel, mas que quartel?
─     Senhora, sou um soldado: ajudante de ordens do General! Agora, com ele morto, preciso me apresentar aos meus superiores.
─         Himineu, não existe general, você não é um soldado!
─         Desculpe, senhora, eu sei que a senhora e a sua filha estão amedrontadas...
─         Himineu, escuta.
─         Mas, senhora...
─         Himineu, vamos caminhar um pouco.
─         Tudo bem, e a menina Moriá?
Não me parece justo e adequado deixar a menina sozinha com o defunto do pai
─         Estou bem, Himineu — a guria parece saber do assunto que a viúva quer esclarecer

─         Então, caminhemos — diz a mulher do patrão.
Saímos a andar pelos caminhos estreitos da morte. Abismos sem fundo, prontos a nos abocanhar ao menor descuido. Por vezes, me vi caminhando por suas beiradas, vacilando, tremendo as pernas, na indecisão de me deixar engolir.
Estou confuso. Não, eu estou perturbado. A viúva está mais abalada do que deseja parecer. Pisamos em silêncio por aquele chão de lágrimas e saudades. Vamos um ao lado do outro. O dorso das nossas mãos se toca, marchamos tão próximos. Nenhum parece querer romper o silêncio daquele lugar tão desabitado da vida. Sinto o seu perfume doce de viuvinha madura
─         Himineu, sabe qual o significado do meu nome?
─         Não.
─         Vem do latim e significa brilhante, ilustre.
─         Bonito, é bem isso.
─         Himineu, não sou brilhante e nunca fui ilustre, sempre vivi na sombra do General. Por uns tempos fui a carne que ele precisava para acalmar seus demônios.
─         Ele usava do seu brilho de mulher linda e inteligente. Alardeava a família e a sua beleza.
Caminhamos mais alguns passos em silêncio, avanço ao seu lado, passo a passo, sem coragem. Sabia como eram as coisas antes do finado virar defunto, mas agora tem muita novidade
─         A esposa do General é uma pessoa charmosa, amável e um tanto curiosa.
─         Talvez, Himineu, mas não gosto de me compartilhar. Guardo minhas ideias só para o espelho.
─         Medo de criar a imagem de intriguista.
─         Isso também, mas o General não me permitia discutir seus assuntos de guerra.
─         Eu sei.
─         Pois é, aprendi a calar.
Fica um tanto hesitante, mas termina por me falar como se aquela verdade fosse uma tosse impossível de ser contida
─         Ele nunca foi militar.
─         O quê?
─         É isso, nunca passou de um delegado torturante.
─         Mas eu servi sob as suas ordens.
─         Essas ordens nunca existiram, foi tudo um arranjo feito lá por cima. Era o homem do trabalho sujo.
─         E eu?
─         Você é um de nós!
─         Como assim... um de nós?
─         Não precisa fazer uso da farda.
─         Não... não entendo...
─         Tu é um civil, com certidão de nascimento e título de eleitor.
A viúva me pega pelo braço e nos conduz pro gramado, até um daqueles bancos que ficam por ali, dia e noite, sol e chuva, escutando choros de desespero, pedidos de perdão, confissões, piadas, histórias do morto, lembranças. Sentamos. Continuo anestesiado
─         Mas eu fui soldado.
─         Apenas no primeiro ano.
─         Como assim?
─         Fizeram a tua baixa e te deixaram a disposição dele.
─         Mas eu não assinei nada. Nunca pedi pra sair, eu me sinto um militar.
Aquele seu sorriso flutuava entre meus pesadelos de traição. Eu não era nada, além de um capanga, mas no estalar dos calcanhares e na precisão da continência, eu me considerava um guarda-costas militar, quase agente secreto, um jagunço
─         E o meu soldo, quem pagava?
─         O teu salário era feito pelo General.
─         Meus Deus, estou todo enrolado. Um pacote de muitos usos!
─         O General assinava a tua carteira de trabalho.
—        Um jagunço de carteira assinada! — solto um suspiro de desconsolo — um bastardo...
─         Caso isso te sirva para alguma coisa, é isso mesmo.
─         Sou um civil?
─         Todinho.
─         Mas a minha cabeça é de milico!
─         Tem mais uma coisinha...
─         O quê?
─         O General deixou tudo arrumado para você continuar cuidando da gente.
Levantei, dei alguns passos, olhei para trás e pensei em reclamar ─ Por favor, dona Clara, preciso de um tempo...
Mas fiquei calado, um murmúrio vindo daquele jatobá me silenciou. Olhei pra viúva que não pareceu perceber nada. Firmei os olhos na direção do cochichar e caminhei. Enquanto me aproximava as vozes eram aclareadas e dois vultos surgiram na minha frente. Sentia que a dona Clara vinha junta, logo atrás de mim. Minha retaguarda estava coberta. Avancei... escutei uma voz mulheril
─         Amorzinho, fica mais um pouco.
─         Não dá.
─         Por que?
Talvez fosse um casal de desgarrados de algum outro velório. A menina usava uma calça jeans surrada e uma blusa amarela. Pensei que não era o mais apropriado pra uma madrugada resfriada, esquecida do calor do sol, mas enfim, tem louco pra tudo neste mundo. O rapaz também trajava uma calça jeans combinando e combinava com uma camisa branca lisa com mangas curtas. Olhei pro chão e vi um par de tênis: brancos e ao lado do banco. Os dois não pareciam com frio, nem preocupados com aquela jurisdição de mortos. Virei pra dona Clara
─         Vamos deixar esses dois conversando.
─         Quem?
─         Aqueles dois...
Apontei pro banco vazio, apenas o tênis branco ficou pra trás e um cheiro estranho no ar.
Minha missão não terminara.

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