Quem fez de conta que não viu,
também perdeu a alma
A jovem filha do morto está por aqui, acho que
passa a noite. Aliás, eu não ficaria mais que um pouquinho, não fosse essa
obrigação idiota de continuar o seu ajudante-de-ordens. Pelo menos, até o
último toque do clarim. A jovem Moriá está de longe, espantada. Não parece
acreditar. Chega-se aos pouquinhos, até criar coragem para perguntar
— Está
com frio, Himineu?
— Não,
senhorita.
—
Himineu, quem vai cuidar de mim?
— A
menina tem a própria mãe...
— Não é
a mesma coisa.
— Tudo
se arruma, menina, Deus é grande.
— Você
acha?
— Tenho
certeza, o General não era homem de deixar ninguém abandonado pelo caminho.
—
Obrigada, Himineu, mas ele morreu.
— E
daí?
Eu sei - e vocês, também sabem que menti - depois
do enterramento do General será um salvem-se quem puder. Os segredos do General
guardados com sete chaves farão a diferença para os vivos
— Himineu...
Esse é meu nome: Himineu. Nos entreveros, quando o General Calçacurta me
enviava mensagem de Himineu, já sabia: encrenca das brabas. Na casa da família
me mandava aos gritos de Himineu pra cá, Himineu pra lá. Mas quando saia em
sacanagem sempre me tratava como um chupa racha. Vai lá entender essa cabeça
morta quando estava viva. Aos domingos tinha compromisso de igreja com a
família, pelo amanhecer me solicitava com gestos. Gostava daquelas manhãs de
pompa e desfile pelas escadarias da matriz. A menina ia mancando entre o pai e
a mãe. A mãe com a alma coxeando, qualquer um querendo via: três mancos. Não
perdiam uma manhã dominical de rezas e pedidos de perdão. Morreu com ele o
porquê de tanta distinção e dedicação. Não é possível que um homem que fez da
morte sua vida pudesse acreditar naquelas manhãs de domingo
— O que foi com a menina? — regressei
dos devaneios.
A menina saiu aos prantos. Mancando mais que sempre. Eu voltei pra meu
silêncio de respeito e atenção. Depois do golpe de tristeza com a morte da
filha original, o General e a mulher passaram por uns bocados ruins. Tempos em
que quase nunca se viram mais que alguns minutos. Cada um com o seu desgosto
que não se resolvia sozinho. Até que tomaram decisão de adotar uma criança. A
mulher bateu pé que tinha que ser uma menina, não queria perder filho pras
guerras. O General firmou convicção que a doação precisava ter uma perna curta.
Como se tivesse herdado sua melhor qualidade anatomista de mancador. Declaração
de origem. Não haveria dúvidas sobre quem seria o pai.
Ambos ficaram satisfeitos com os arranjos. Quando a menina lhes foi dada
esperavam que as carnes da mulher e do homem retornariam nas vontades de um
querer o outro. Foi por pouco tempo. Os encantos de um estar no outro estavam
quebrados. Haviam se passado nas vontades e na gula, ficaram com as
conveniências. Aquela criança manca apenas aliviou o momento de ficarem juntos.
Assim, tinham o assunto pra suas conversas. Ademais a mais, a mulher do General
Calçacurta era muito desconfiada. Sempre interrogava o homem pra saber do fato
— General, quem é o pai da
guria?
Conveniente demais esse coxear dos dois. Acho que não tinha ciúmes,
apenas o desejo de saber a procedência. O General sempre negou. E, pelo que
sei, não era de fato nem de direito uma Calçacurta de sangue, a história era
outra: ele jamais iria contar essa outra história sem tortura
— Mulher, escuta bem...
— General! Olha nos meus
olhos.
— Que história é essa de
olhar nos olhos, não vou lhe comer.
— Calçacurta, sem saídas de
confusão, eu preciso saber da verdade.
— Verdade... Quem sabe da
verdade é somente a mentira, mais ninguém.
— Essa menina é sua?
— É nossa... coloca isso na
cabeça. É nossa!
Aquilo que deveria ser pra paz virou guerra. O desejo, a confiança e a
paixão ficaram perdidos, em algum canto do sótão, naquele espaço vazio entre a
armadura da roupa e o corpo quente da cobiça. O vazio da traição. A culpa. Eram
marido e esposa aparentes, na verdade, eram um pro outro a necessidade de
exibir respeito aos outros, sua maneira de mostrar obediência com as regras.
Seu jeito de rezar nas manhãs de domingo. Tinham um corpo de aparências e um
corpo de segredos, aliás, no meu modo de entender, quanto mais caprichamos nas
aparências mais nos enredamos em mistérios
— Mulher... não sabes as
coisas que fiz para ter esta criança.
— Nem diga nada além do já
dito, se não for verdade.
— A menina não é meu sangue.
Deslembrou de dizer que leva o sangue da menina nas mãos. Mas, enfim, por
hoje, de nada adianta ficar moendo o passado. Vamos por uma pedra em cima dessa
merda toda. O homem está morto, mortinho da silva. Essa veracidade não há de
fazer bem algum, nem pra mim. Os gritos daquela gente o mantinham acordado.
Quando achava que o passado era passado, tudo lhe voltava mancando
— Chupa-racha, a mão
vingadora de Deus por certo irá me alcançar.
— General, larguemos isso
tudo. Agora não é hora de pensar Nele.
— Não dá.
— Tem perdão para mim — lhe
perguntei.
O morto fez silêncio e fechou os olhos, como se não tivesse nada pra
repetir. Naquele momento, mantive silêncio, mas lembrei das palavras do padre que
invadia o quartel com a sua batina preta, vivia em busca de algum prisioneiro
pra libertar
— Quem uma vez pratica a ação
se transforma.
— Transformado em que, seu
padre — não me respondeu. Então, segurei sua batina preta pela manga e tornei a
perguntar — Virei o que seu padre — aquele homem não tinha medo, não sei em que
parte dele vinha àquela força
— Quem repete a tortura duas,
três, quatro ou mais vezes se bestializa, sente prazer físico tamanho que é
capaz de torturar até as pessoas mais delicadas da família: e lá se foi perdida
a alma, o espírito e a mente.
Mas eu fui apenas o motorista. Não tive nada a ver com aquilo tudo. Ele
era o General. O juiz e o algoz. O carcereiro e o torturador. O raptor e o
agente funerário. Fui apenas mais um que ocupou seu espaço na plateia.
Lá na guarita do padre, lugar de ouvir confissão, eu tive vontade de
perguntar
— Padre, quem fez de conta
que não viu, também perdeu a alma? — nunca perguntei.
— E quem nunca fez de conta
que não viu alguma merda, soldadinho idiota? Era uma guerra! Não se culpe!
— Guerra, General?
A jovem Moriá está de volta.
Parece a única sentindo a sua morte, General.
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