terça-feira, 10 de janeiro de 2012

VIII - General Calçacurta


Quem fez de conta que não viu, também perdeu a alma

baitasar


A jovem filha do morto está por aqui, acho que passa a noite. Aliás, eu não ficaria mais que um pouquinho, não fosse essa obrigação idiota de continuar o seu ajudante-de-ordens. Pelo menos, até o último toque do clarim. A jovem Moriá está de longe, espantada. Não parece acreditar. Chega-se aos pouquinhos, até criar coragem para perguntar
—        Está com frio, Himineu?
—        Não, senhorita.
—        Himineu, quem vai cuidar de mim?
—        A menina tem a própria mãe...
—        Não é a mesma coisa.
—        Tudo se arruma, menina, Deus é grande.
—        Você acha?
—        Tenho certeza, o General não era homem de deixar ninguém abandonado pelo caminho.
—        Obrigada, Himineu, mas ele morreu.
—        E daí?
Eu sei - e vocês, também sabem que menti - depois do enterramento do General será um salvem-se quem puder. Os segredos do General guardados com sete chaves farão a diferença para os vivos
—        Himineu...
Esse é meu nome: Himineu. Nos entreveros, quando o General Calçacurta me enviava mensagem de Himineu, já sabia: encrenca das brabas. Na casa da família me mandava aos gritos de Himineu pra cá, Himineu pra lá. Mas quando saia em sacanagem sempre me tratava como um chupa racha. Vai lá entender essa cabeça morta quando estava viva. Aos domingos tinha compromisso de igreja com a família, pelo amanhecer me solicitava com gestos. Gostava daquelas manhãs de pompa e desfile pelas escadarias da matriz. A menina ia mancando entre o pai e a mãe. A mãe com a alma coxeando, qualquer um querendo via: três mancos. Não perdiam uma manhã dominical de rezas e pedidos de perdão. Morreu com ele o porquê de tanta distinção e dedicação. Não é possível que um homem que fez da morte sua vida pudesse acreditar naquelas manhãs de domingo
—        O que foi com a menina? — regressei dos devaneios.
A menina saiu aos prantos. Mancando mais que sempre. Eu voltei pra meu silêncio de respeito e atenção. Depois do golpe de tristeza com a morte da filha original, o General e a mulher passaram por uns bocados ruins. Tempos em que quase nunca se viram mais que alguns minutos. Cada um com o seu desgosto que não se resolvia sozinho. Até que tomaram decisão de adotar uma criança. A mulher bateu pé que tinha que ser uma menina, não queria perder filho pras guerras. O General firmou convicção que a doação precisava ter uma perna curta. Como se tivesse herdado sua melhor qualidade anatomista de mancador. Declaração de origem. Não haveria dúvidas sobre quem seria o pai.
Ambos ficaram satisfeitos com os arranjos. Quando a menina lhes foi dada esperavam que as carnes da mulher e do homem retornariam nas vontades de um querer o outro. Foi por pouco tempo. Os encantos de um estar no outro estavam quebrados. Haviam se passado nas vontades e na gula, ficaram com as conveniências. Aquela criança manca apenas aliviou o momento de ficarem juntos. Assim, tinham o assunto pra suas conversas. Ademais a mais, a mulher do General Calçacurta era muito desconfiada. Sempre interrogava o homem pra saber do fato
—        General, quem é o pai da guria?
Conveniente demais esse coxear dos dois. Acho que não tinha ciúmes, apenas o desejo de saber a procedência. O General sempre negou. E, pelo que sei, não era de fato nem de direito uma Calçacurta de sangue, a história era outra: ele jamais iria contar essa outra história sem tortura
—        Mulher, escuta bem...
—        General! Olha nos meus olhos.
—        Que história é essa de olhar nos olhos, não vou lhe comer.
—        Calçacurta, sem saídas de confusão, eu preciso saber da verdade.
—        Verdade... Quem sabe da verdade é somente a mentira, mais ninguém.
—        Essa menina é sua?
—        É nossa... coloca isso na cabeça. É nossa!
Aquilo que deveria ser pra paz virou guerra. O desejo, a confiança e a paixão ficaram perdidos, em algum canto do sótão, naquele espaço vazio entre a armadura da roupa e o corpo quente da cobiça. O vazio da traição. A culpa. Eram marido e esposa aparentes, na verdade, eram um pro outro a necessidade de exibir respeito aos outros, sua maneira de mostrar obediência com as regras. Seu jeito de rezar nas manhãs de domingo. Tinham um corpo de aparências e um corpo de segredos, aliás, no meu modo de entender, quanto mais caprichamos nas aparências mais nos enredamos em mistérios
—        Mulher... não sabes as coisas que fiz para ter esta criança.
—        Nem diga nada além do já dito, se não for verdade.
—        A menina não é meu sangue.
Deslembrou de dizer que leva o sangue da menina nas mãos. Mas, enfim, por hoje, de nada adianta ficar moendo o passado. Vamos por uma pedra em cima dessa merda toda. O homem está morto, mortinho da silva. Essa veracidade não há de fazer bem algum, nem pra mim. Os gritos daquela gente o mantinham acordado. Quando achava que o passado era passado, tudo lhe voltava mancando
—        Chupa-racha, a mão vingadora de Deus por certo irá me alcançar.
—        General, larguemos isso tudo. Agora não é hora de pensar Nele.
—        Não dá.
—        Tem perdão para mim — lhe perguntei.
O morto fez silêncio e fechou os olhos, como se não tivesse nada pra repetir. Naquele momento, mantive silêncio, mas lembrei das palavras do padre que invadia o quartel com a sua batina preta, vivia em busca de algum prisioneiro pra libertar
—        Quem uma vez pratica a ação se transforma.
—        Transformado em que, seu padre — não me respondeu. Então, segurei sua batina preta pela manga e tornei a perguntar — Virei o que seu padre — aquele homem não tinha medo, não sei em que parte dele vinha àquela força
—        Quem repete a tortura duas, três, quatro ou mais vezes se bestializa, sente prazer físico tamanho que é capaz de torturar até as pessoas mais delicadas da família: e lá se foi perdida a alma, o espírito e a mente.
Mas eu fui apenas o motorista. Não tive nada a ver com aquilo tudo. Ele era o General. O juiz e o algoz. O carcereiro e o torturador. O raptor e o agente funerário. Fui apenas mais um que ocupou seu espaço na plateia.

Lá na guarita do padre, lugar de ouvir confissão, eu tive vontade de perguntar
—        Padre, quem fez de conta que não viu, também perdeu a alma? — nunca perguntei.
—        E quem nunca fez de conta que não viu alguma merda, soldadinho idiota? Era uma guerra! Não se culpe!
—        Guerra, General?
A jovem Moriá está de volta.
Parece a única sentindo a sua morte, General.

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