sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

IV - General Calçacurta


O filho-da-puta me salvou!

baitasar

Precisava quebrar a espinha daquela resistência descabida. E nada melhor que agir pessoalmente, sempre gostei de ficar presente
─         Chupa-racha, eu sei: tu não me agüentava quando chegava hora de começar alguma caçada!
─         General!
─         O que é cabo?
─         Precisava matar?
─         Isso é assunto meu! Não aceito ingerência, nem por hoje...
Essa chinelagem é toda igual, basta um olho de bondade e já se acha gente.
O entendimento não retornou ao corpo do tal Beijamim, o metido já tava moído, adormecido das pancadas.  Havia na cela uma máquina ventiladora descolorida, barulhenta, com suas pás enferrujadas num zumbido de asmático, ora num lado ora noutro. Eu sabia que aquele mestiço idiota torcia pela ventosidade artificial da máquina. Eu desviava a ventania do tal Beijamim. Gostava da sacanagem.
Eu sei algo mais dessa coisa de perguntar por respostas. Fui muito inteligente para descobrir as respostas que queriam me dar. Depois de começar não abandonava o serviço pelo meio, precisava satisfazer minha curiosidade.
Naquele dia, como tortura, por certo, criava o desespero no socado por um pequeno jato de ar, mas nada ganhava além de insultos. Até que perdi minha paciência
─         Para de gritar, seu gordalhaço de merda!
─         Filho-da- puta!
─         O que é que ta me olhando?
─         Nada...
─         Como é?
─         Nada, senhor de merda.
─         Olha essas fotos, reconhece algum dos companheiros?
─         Não.
Rapaz, nessa altura, eu fiquei puto com o cara, mentia descarado. Baixei a mão com vontade, já esquecido que segurava um porrete. O barulho de coco quebrando me lembrou meus passeios pelas praias de areia quentinha e as bundinhas caminhando pra lá e cá
─         Olha o coco verde!
Merda! Quase que não tomo mais água de coco. Tudo por causa daquele comunista mau caráter.
Cada coco quebrado era como provar sangue pela primeira vez
─         Chupa-racha, não existem palavras pra descrever!
─         Acredito, General!
O prisioneiro fechou os olhos, a boca e o sentido de escuta. A imobilidade ficou coberta de sangue e escorreu pelo porrete frio e mudo, às cegas, vazou pelos coturnos escuros em caminho até o chão do meu mancar ansioso.  Ele era o entreato da refeição pequena. Mais socos e choques e odores de suor, mais fome no pavilhão dos vinhos. Não tinha mais xixi nem cocô. Esvaziou por dentro.
Já fazia tempo que vivia amputado da humanidade, assim me sentia aliviado de culpas. O filho-da-puta me salvou. Esses putos de merda foram a minha salvação, cada uma das vezes em que os fiz descerem pelos ralos da história. Com eles saí do anonimato, deixei a mediocridade, mas ninguém jamais irá lembrar. Não existe vergonha na falta de memória, mas no medo de agir
─         Chupa-racha, o que foi feito, está feito e pronto! Esquece...

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Leia também: 
III - General! Sinto saudades!

V - Um corpo gelado e duro, General!

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