quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

X - General Calçacurta


Apoiada em meus dedos vou para o banho

baitasar

Adormeço desdobrada, esticada aos tênues raios de luz que passam pelas janelas e cortinões. Quando anoitece e a escuridão me enrosca as pernas, sinto vontade de ficar escondida. Subo as escadas e entro em meu quarto. Penso que um banho me fará bem. Deixo a banheira enchendo, enquanto procuro pelos aromas da carne.
Encontro o cheiro das rosas. Namoro o seu perfume, fazem o meu corpo vibrar em pequenos tremores de sede. Derramo nas águas vaporosas da banheira um pequenino frasco. Deixo que o seu bálsamo me chegue encilhado nos vapores do banho. Adoro esse silêncio das minhas águas borbulhando.
Levanto da borda da banheira e caminho pelo quarto.
O barulho desconcertante do ar acondicionado. Sinto ganas de ordenar que silencie, bobagem: quem mandava já morreu.
Paro em frente ao espelho. Lembro-me do dia em que escolhi essa moldura imensa. Um dia ensolarado e quente, muito quente, vaporoso e grudento, detonando rápido com o banho de flores e perfumes. O General parecia deliciado com aquele sofrimento, tinha câimbras nas pernas, a roupa molhada parecia que o afogava. Espirrava seus suores enquanto tomava seu uísque puro, estava desbotado: de repente me convidou para passear
─         Este vestido é muito fraco.
─         Não entendi, Calçacurta.
─         Não protege dos olhos.
Aqueles que se arriscavam nas ruas caminhavam sem prestar atenção uns nos outros, ansiosos por uma sombra e um pouco de brisa, para amenizar a fogueira abrasadora em que se transformou aquele verão. O nosso carro marchava entre as gentes e os motores engarrafados: um dois feijão com arroz, três quatro panela no prato. Tudo se arrastava, mas, naquele dia, o calor invadia pelo ar condicionado e pelos ventiladores. Os gelos se derretiam antes de sair das geleiras. Nada resolvia. Eu evaporava em um vestido florido quase transparente de tão fino. Provocava
─         Ninguém se atreve em meter o olho na mulher do General.
─         Tem muito confiado neste mundo, Clara.
─         Nem o General olha mais pra mim...
E, pela primeira vez, nos últimos anos de completa indiferença, percebi um olhar de apetite curioso do velho tarado. Meu primeiro impulso foi me recolher sob as mãos e a bolsa, mas cedi à tentação de brincar de esconde e não esconde. Afastei as pernas enquanto olhava pela janela, tudo acompanhado de um suspiro carregado de profundo tédio. Pernas abertas por certo é a preferência do Comandante das Putas. Atualizei o seu olhar com os meus seios que subiam e desciam num exagero de suspiros silenciosos. Quando senti meus pontinhos endurecidos descobri que estava gostando daquele jeito de me mostrar. Perto o suficiente para sentir os cheiros e longe para não tocar. A distância, por certo, era determinada pelo meu olhar de apatia insensível
─         Clara...
Cruzei as pernas, não queria mais ser comida por aquele velhaco, mas apetecia os paparicos que flutuavam a sua volta. Passou o tempo dos agarramentos e a farra das mãos, mesmo quando significava apenas lambiscar o tesão com os dedos. Tinha retomado meu olhar melancólico e o marasmo de viúva de marido que não morreu, não queria nem que segurasse minha mão. Ficou frio dentro daquele carro, o suficiente para o General reencontrar o rumo das mãos no próprio colo. Resignado. Imóvel. Puto da cara.
Depois de muitas buzinas e xingamentos chegamos à loja de espelhos. Desci em silêncio entre os resmungos do farrista excitado
─         General, se quiser pode ficar no automóvel.
Do lado interior da loja, o vendedor suava pelo rosto e mãos. A cada vez que afastava ou aproximava um espelho do outro, eu via as imensas manchas de suor embaixo dos seus braços. O suor lhe marcava também às costas, num desenho lindo e nu de homem irreal. Quase sai voando dali
─         Calma, muita calma... querida — rezingava num muxoxo quase inaudível para minha alma.
Com certeza o vendedor estava sofrendo, mas bem menos que o General, que, por hábito e capricho, chegava aos lugares subornando e saia sem considerar nada do que comprava. Esperava a entrega na cervejaria. Odiava ficar escolhendo, medindo com a memória a melhor ocupação da compra feita. Quando queria algo comprava, depois arrumava lugar de guardar. Nunca soube o que era caro ou o que era barato. Sem limites. Naquela tarde, o General esperou o vendedor se afastar e me perguntou, cheio de curiosidade
─         Mas pra que um espelho tão grande?
E eu lhe respondi com a coragem da indiferença
─         Para ter com quem conversar.
─         Pois, para mim, basta que veja a navalha a me aparar a barba.
—        General, é como se fosse minha obrigação: gastar.
E ali, estava eu conversando com a minha esfinge, sozinha, como em tantas outras vezes. Quase preferia o silêncio.
Afastei-me alguns passos e encarei os olhos refletidos no espelho, de frente. A menina dos sonhos encantados desaparecera. Fiz jeito de repreender minha fotografia espelhada. Afinal, tive que concordar que ficava bem de preto. A cor da viuvez realça meus caminhos de sedução.
Lembro-me das parideiras pretas e chego a ter um leve sentimento de tristeza por elas. Nunca irão saborear um banho de banheira nem o agradável perfume dos cheiros que me tocam. Não acredito que sintam algum prazer pela vida que levam, além de requebrar no carnaval. Mais crianças pobres e pretas, mais mulheres pretas pobres: coitadinhas... sem alegria e prazer. Os filhos gastam seu poupado dinheirinho em regalos para o dia das mães. Esse deve ser, com toda certeza, o seu momento de prestígio, envolta de seus muitos filhos, recebendo seus presentes: panelas, chinelos, vassouras, pijamas. Coitadas, espelhos... nem pensar.
Cada uma tem o que buscou e conquistou. Não tenho obrigação de acabar com a fome, quem tem é o governo. E infelizmente o mundo é assim, existe o rico e existe o pobre. Por isso que eu corro atrás de coisa melhor, e não fico julgando o que o outro tem.
Sento na borda da banheira e experimento a água com as mãos. A vida é deliciosa. O dinheiro é delicioso, quero mais dinheiro: nunca é demais.
Volto para o corredor, me pareceu ouvir um ruído na porta. Mantenho as luzes acessas e passo através da passagem, mas não vejo ninguém. Torno a fechar a entrada do quarto e giro suavemente a chave.
 Desprendo do corpo as minhas roupas. Ficam caídas pelo chão do velório. O silêncio da solidão incomoda. Coloco Debussy para escutar a elegante e luminosa Clair de Lune. Deixo seus acordes me elevarem acima do piso do quarto. Paro em frente a minha vitrine espelhada. Olho-me desnudada e reconheço os direitos de reivindicar a posse de mim mesma. Estou nua e me sinto maravilhosa.
A música e o perfume das águas estão perfeitos. Estou perfeita. Passo as mãos pela casca tênue dos desejos e me deixo enroscada nos pelos do quadril. Púbis angelical. Toco suavemente meus biquinhos. Uma torrente de investidas rápidas e nervosas me percorre. Estou viva. Continuo viva. Sinto que o calor do desejo me alcança. E ali, em frente ao espelho vou me comendo. Enfio os dedos da mão direita na boca e os da esquerda acertam ir até minhas pernas abertas. Estremeço. Os acordes de Debussy se misturam com meus gritinhos, estou entregue a mim mesma. Eu sou minha.
E apoiada em meus dedos vou para o banho.

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