Apoiada em meus dedos vou para o
banho
Adormeço desdobrada, esticada aos tênues raios de luz que passam pelas
janelas e cortinões. Quando anoitece e a escuridão me enrosca as pernas, sinto
vontade de ficar escondida. Subo as escadas e entro em meu quarto. Penso que um
banho me fará bem. Deixo a banheira enchendo, enquanto procuro pelos aromas da
carne.
Encontro o cheiro das rosas. Namoro o seu perfume, fazem o meu corpo
vibrar em pequenos tremores de sede. Derramo nas águas vaporosas da banheira um
pequenino frasco. Deixo que o seu bálsamo me chegue encilhado nos vapores do
banho. Adoro esse silêncio das minhas águas borbulhando.
Levanto da borda da banheira e caminho pelo quarto.
O barulho desconcertante do ar acondicionado. Sinto ganas de ordenar que
silencie, bobagem: quem mandava já morreu.
Paro em frente ao espelho. Lembro-me do dia em que escolhi essa moldura
imensa. Um dia ensolarado e quente, muito quente, vaporoso e grudento,
detonando rápido com o banho de flores e perfumes. O General parecia deliciado
com aquele sofrimento, tinha câimbras nas pernas, a roupa molhada parecia que o
afogava. Espirrava seus suores enquanto tomava seu uísque puro, estava
desbotado: de repente me convidou para passear
─ Este vestido é muito
fraco.
─ Não entendi, Calçacurta.
─ Não protege dos olhos.
Aqueles que se arriscavam nas ruas caminhavam sem prestar atenção uns nos
outros, ansiosos por uma sombra e um pouco de brisa, para amenizar a fogueira
abrasadora em que se transformou aquele verão. O nosso carro marchava entre as
gentes e os motores engarrafados: um dois feijão com arroz, três quatro panela
no prato. Tudo se arrastava, mas, naquele dia, o calor invadia pelo ar
condicionado e pelos ventiladores. Os gelos se derretiam antes de sair das geleiras.
Nada resolvia. Eu evaporava em um vestido florido quase transparente de tão
fino. Provocava
─ Ninguém se atreve em meter
o olho na mulher do General.
─ Tem muito confiado neste
mundo, Clara.
─ Nem o General olha mais
pra mim...
E, pela primeira vez, nos últimos anos de completa indiferença, percebi
um olhar de apetite curioso do velho tarado. Meu primeiro impulso foi me
recolher sob as mãos e a bolsa, mas cedi à tentação de brincar de esconde e não
esconde. Afastei as pernas enquanto olhava pela janela, tudo acompanhado de um
suspiro carregado de profundo tédio. Pernas abertas por certo é a preferência
do Comandante das Putas. Atualizei o seu olhar com os meus seios que subiam e
desciam num exagero de suspiros silenciosos. Quando senti meus pontinhos
endurecidos descobri que estava gostando daquele jeito de me mostrar. Perto o
suficiente para sentir os cheiros e longe para não tocar. A distância, por
certo, era determinada pelo meu olhar de apatia insensível
─ Clara...
Cruzei as pernas, não queria mais ser comida por aquele velhaco, mas
apetecia os paparicos que flutuavam a sua volta. Passou o tempo dos
agarramentos e a farra das mãos, mesmo quando significava apenas lambiscar o
tesão com os dedos. Tinha retomado meu olhar melancólico e o marasmo de viúva
de marido que não morreu, não queria nem que segurasse minha mão. Ficou frio
dentro daquele carro, o suficiente para o General reencontrar o rumo das mãos
no próprio colo. Resignado. Imóvel. Puto da cara.
Depois de muitas buzinas e xingamentos chegamos à loja de espelhos. Desci
em silêncio entre os resmungos do farrista excitado
─ General, se quiser pode
ficar no automóvel.
Do lado interior da loja, o vendedor suava pelo rosto e mãos. A cada vez
que afastava ou aproximava um espelho do outro, eu via as imensas manchas de
suor embaixo dos seus braços. O suor lhe marcava também às costas, num desenho
lindo e nu de homem irreal. Quase sai voando dali
─ Calma, muita calma... querida
— rezingava num muxoxo quase inaudível para minha alma.
Com certeza o vendedor estava sofrendo, mas bem menos que o General, que,
por hábito e capricho, chegava aos lugares subornando e saia sem considerar
nada do que comprava. Esperava a entrega na cervejaria. Odiava ficar
escolhendo, medindo com a memória a melhor ocupação da compra feita. Quando
queria algo comprava, depois arrumava lugar de guardar. Nunca soube o que era
caro ou o que era barato. Sem limites. Naquela tarde, o General esperou o
vendedor se afastar e me perguntou, cheio de curiosidade
─ Mas pra que um espelho tão
grande?
E eu lhe respondi com a coragem da indiferença
─ Para ter com quem
conversar.
─ Pois, para mim, basta que
veja a navalha a me aparar a barba.
— General, é como se fosse
minha obrigação: gastar.
E ali, estava eu conversando com a minha esfinge, sozinha, como em tantas
outras vezes. Quase preferia o silêncio.
Afastei-me alguns passos e encarei os olhos refletidos no espelho, de
frente. A menina dos sonhos encantados desaparecera. Fiz jeito de repreender
minha fotografia espelhada. Afinal, tive que concordar que ficava bem de preto.
A cor da viuvez realça meus caminhos de sedução.
Lembro-me das parideiras pretas e chego a ter um leve sentimento de
tristeza por elas. Nunca irão saborear um banho de banheira nem o agradável
perfume dos cheiros que me tocam. Não acredito que sintam algum prazer pela
vida que levam, além de requebrar no carnaval. Mais crianças pobres e pretas,
mais mulheres pretas pobres: coitadinhas... sem alegria e prazer. Os filhos gastam
seu poupado dinheirinho em regalos para o dia das mães. Esse deve ser, com toda
certeza, o seu momento de prestígio, envolta de seus muitos filhos, recebendo
seus presentes: panelas, chinelos, vassouras, pijamas. Coitadas, espelhos...
nem pensar.
Cada uma tem o que buscou e conquistou. Não tenho obrigação de acabar com
a fome, quem tem é o governo. E
infelizmente o mundo é assim, existe o rico e existe o pobre. Por isso que eu
corro atrás de coisa melhor, e não fico julgando o que o outro tem.
Sento na borda da banheira e experimento a água com as mãos. A vida é
deliciosa. O dinheiro é delicioso, quero mais dinheiro: nunca é demais.
Volto para o corredor, me pareceu ouvir um ruído na porta. Mantenho as
luzes acessas e passo através da passagem, mas não vejo ninguém. Torno a fechar
a entrada do quarto e giro suavemente a chave.
Desprendo do corpo as minhas roupas.
Ficam caídas pelo chão do velório. O silêncio da solidão incomoda. Coloco
Debussy para escutar a elegante e luminosa Clair de Lune. Deixo seus acordes me
elevarem acima do piso do quarto. Paro em frente a minha vitrine espelhada.
Olho-me desnudada e reconheço os direitos de reivindicar a posse de mim mesma.
Estou nua e me sinto maravilhosa.
A música e o perfume das águas estão perfeitos. Estou perfeita. Passo as
mãos pela casca tênue dos desejos e me deixo enroscada nos pelos do quadril.
Púbis angelical. Toco suavemente meus biquinhos. Uma torrente de investidas
rápidas e nervosas me percorre. Estou viva. Continuo viva. Sinto que o calor do
desejo me alcança. E ali, em frente ao espelho vou me comendo. Enfio os dedos
da mão direita na boca e os da esquerda acertam ir até minhas pernas abertas.
Estremeço. Os acordes de Debussy se misturam com meus gritinhos, estou entregue
a mim mesma. Eu sou minha.
E apoiada em meus dedos vou para o banho.
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