sábado, 7 de janeiro de 2012

V - General Calçacurta


Um corpo gelado e duro, General!

baitasar 

Reze melhor, mais alto, mais forte e mais rápido, General Calçacurta... e aceite que esse corpo gelado e duro é o senhor. O maior safado, traiçoeiro e mau caráter que já nasceu por esse mundo de guerras, fomes e choques elétricos. Um egoísta que fez jus ao provérbio famoso do povo
─         Uma mão que lava a outra fica suja duas vezes.
E nada adiantou, o senhor virou cera e ração. O seu brilho foi de escuridão e o seu trânsito pra morte não basta pro apagamento desta sombração de luto, silêncio e paciência resignada, imposta à vida das pessoas desta terra das bananeiras. General, todas as suas mortes não chegam pra retirar o luto dos desaparecimentos. É... eu sei, aqui estou a acusar o senhor. Fogo amigo. Mais uma recaída de desrespeito ao chefe. Insubordinação. Prometo que rezo algumas Ave-Marias, contrição de perdão.
Mas o General sabe se defender, tinha um discurso firmador pros indecisos — Firmes na dor! — e a maioria aguentava aquela enganação toda, no fundo do General só havia uma determinação: queria descer o cacete
─       Talvez a única coisa decente que possamos fazer por aqui é ajudar aos outros e esses só deveriam ter como obrigação de amor ajudar a nós mesmos.
E depois de olhar em todos os olhos, admitia
─         Assim, ajudando aos deuses também estariam ajudando a si mesmos.
Uma mão carrega a outra, assim nenhuma das duas cansa.
A merda é que o senhor decepava mãos e fingia alguma misericórdia quanto mais lhe tinha interesse algum fato. Esse jeito lhe valia quando queria tomar mulher de fugido ou presa em espera na fila de tortura. Quando pegava veado na rua, olhava os dentes da falsa moça, apreciava atrás das orelhas e ordenava que mostrasse a língua e cheirava-lhes a boca, antes de mandar descer o cacete. Nunca soube da utilidade da apreciação. Dou crédito pra estes cacoetes do General, a sua vontade de ser esquisito e dominar a todos pelos medos e demônios que ficam dormindo dentro de cada um. Fez assim e se tornou lenda viva. Tudo planejado. O senhor foi um grande estudioso dos horrores que guardamos escondidos dentro das ideias da cabeça. Não desistia até descobrir a chave pra abrir os cadeados dos encarcerados, um por um. Confesso que algumas vezes senti orgulho de servir sob suas ordens, mas, em outras, precisei disfarçar e fechar os olhos pra não despejar o estômago pela boca, eu era a sua falsificação.
Parei as lembranças pra dar uma olhadinha no morto. Nenhuma reação do sem-vergonha e fingido.
Empaco meus desabafos. Uma jovem senhora gostosa entra na capela para os festejos do seu desaparecimento, separa junto do morto as mãos que carregava ao peito. Não faço distinção de identidade. Os óculos escuros diminuíram seu reconhecimento. Olho do calcanhar à nuca... e reconheço
─         É ela, General.
─         Não era sem tempo.
─         Mando entrar?
─         Sem mais demoras, Chupa-racha.
Lembra aquela vez que essa lhe descarnou dentro do carro, velho tarado
─         Sei que lembra.
─         Nunca esqueço um serviço daqueles.
Perdi a atenção na conversa com o morto. Apontei o nariz pra zinha que entrou desprotegida pelos cantos do salão fúnebre, ela estava estaqueada, olhava direto nos olhos do deitado no catre sinistro. Inclinou o corpo a frente e disparou uma cusparada no momento
─         Filho-da-puta!
Levou o punho até os lábios e fez gesto de enxugar algum líquido que corria em fio. O General gritava e uivava
─         Engole, engole sua puta, não mancha minha calça.
Naquela noite, cheguei à frente do teatro e veio à ordem pra dar uma volta na quadra. Nem desliguei o motor e deixei a banda marcial tocando sozinha. Tudo pra dar tempo da puta engolir sua porra de merda e o senhor fechar a braguilha. Coitados, ficaram tocando enquanto circulamos pela praça. Naquela noite entendi porque os vidros foram escurecidos. Nada se enxerga de fora pra dentro. Seu grande filho-da-puta, não finca prego sem estopa
─         Não finco nada sem saber onde estou enterrando.
É isso, fico por aqui, até a hora do enterramento do fardado, montando guarda pra esse defunto que perdeu serventia.
Faço menção de olhar as horas, mas me seguro da vontade de espiar, na verdade, quero dizer que não vejo a hora de sepultar o passado. Encerrar minha participação em qualquer comitiva de busca e apreensão. Volto a afirmar que somente era o motorista do morto. E que jamais houve precisão de chegar rápido ou sair nas pressas. Não vou ficar aqui a defender o General Calçacurta de boatos, nunca carreguei nenhum cadáver. Essa é minha primeira vez de fazer cortejo de defunto. Por certo, a procissão vai seguir por entre os armários de outros extintos.  Do caminhar fúnebre também não escapo. Outra vontade de olhar pro relógio e calcular o tempo que me resta, mas não seria justo com esse morto filho-da-puta. A guarda de honra não tem preocupações com o tempo, apenas fica aqui, parada como um troféu. Manequim pra substituir o objeto real, o corpo em decomposição do falecido. Todos vestem o mesmo uniforme, que se distingue somente pelas iniciais gravadas na chapa, que fixa ao peito a bandoleira da cartucheira. Mas claro que temos outras preocupações da formalidade, não posso esquecer-me de fazer continência aos superiores do filho-da-mãe. Os demais entram e saem sem maiores abalos. Tomam café. Fumam. Contam piadas. Lembram histórias do cadáver. No caso específico do General é melhor não lembrar e deixar o acontecido no passado. Aquilo que ignoramos escondido caceteia menos.
Por ora, quase ninguém, além da senhora que cuspiu no prato em que comeu, um ou outro dos companheiros de farda. É muito cedo, eles vêm. A família se recupera. Os amigos que sobraram avaliam se devem ou não vir tão cedo. As autoridades não vieram, apenas circularam aqueles subalternos que já foram braço-de-ferro do império. Chegaram e saíram. Acho que vieram pra terem confirmação da notícia da sua morte. Devem retornar amanhã. Surgiram alguns curiosos de outra vigília de defunto. Esses chegam e param na porta, sussurram alguma coisa, entram e sem nenhum sinal de estima ou de ódio, saem pros cuidados do seu morto. Não ficam mais que alguns minutos. Tempo de rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria.
A senhora desrespeitosa já se foi. Não se parecia com alguém triste, mas também, não aparentava alegria, tinha fúria contida. Entrou invisível na vida do morto, durante os últimos dias de comando do General Calçacurta, e saiu do teatro fúnebre sem que ninguém lhe tivesse conhecimento. Pra efeitos de registro ela nunca existiu na sua vida. Somos eu e ela a testemunhar suas visitas de inspeção ao General. Uma menina de quinze anos a fazer os favores que lhe pedia o animal. E eu, o serviçal motorista, a levar e trazer a juventude aos encontros. Carregava a jovem à família, junto com o abastecimento da semana. Becos sem saída. Mortos de fome
─         Quem se importa?
O General Calçacurta viveu como quis. Agora, está terminado. Morreu fodido, como a vida que escolheu pra viver. Tanto encurvou gente que acabou entortado. O último golpe foi aquele confisco das suas contas feito pelo caçador de marajás. Tanto que lhe diziam pra mandar seu dinheiro pra fora. Desacerto de avaliação, General. Logo, o senhor que bancou essa gente. Traição. Caçoaram com quem não deviam. Mas ainda deu no tempo de ver um pequeno sorriso torto e desajeitado no senhor, General, quando os salteadores foram apeados do cavalo do comissário
─         Soldado, quem bota, tira.
Nunca mais falou coisa com coisa. Acho que cansou das fraldas, da perna de pau, da boca torta e da solidão.
Faço o que nunca fiz e olho bem na sua cara torta. Então, isso é a extinção. Uma cara amarelada feito cera e um copo que não fica mais cheio. Acabada a mandinga da vida, não se é mais nada. Ninguém convida pra bebericar um bom vinho ou conversar fiado no boteco. Acabam os galanteios. Fodeu tudo. E o morto apronta essa vontade de chorar e dar risadas. Pra todos fica a lembrança que na próxima vez, pode ser qualquer um, mas por enquanto esse é que se foi
─         Um brinde à memória do falecido!
─         Era um bom sujeito!
─         Isso mesmo!
─         Que viva em paz!
─         Saúde!
Sempre tem um boteco aberto comemorando a ida do seu morto.
Logo, voltam a viver como se nada fosse acontecer. Irresistível gula. Como se os colhões pudessem ser tratados fora do corpo, em uma ressurreição da vida sem vida.
Na medida em que o tempo se esvai, e fico no costume do olhar de todos que chegam de visita à morte do General, passam por mim como se eu fosse o descarnado. Sou visto como se não fosse visto
─         Mas eu estou aqui, vivo!
Pareço uma vela, mas ele é o morto. Ta certo, ele é um general morto e eu um soldado vivo, mas eu existo. Poderiam ser polidos e oferecer algum cumprimento pra mim
─         Boa noite, soldadinho de merda!
Ou
─         Agora, que o seu general se foi o que vai ser?
Os pêsames deem à viúva e a filha manca, mas nunca mais me ignorem, me dirijam qualquer sinal, mesmo que seja um cumprimento de distância, todos sabem como é, um olhar de canto ou uma ínfima inclinação do topete. Não aceito desprezo, mas sei, soldado segue superior ao tempo e inferior à merda.
Conheço todos por aqui.
Não se façam de soldados desconhecidos. O que foi feito está feito. Sei que não hão de querer monumento pelo cumprido, mas não se façam de desconhecidos do passado. Velhos ou mortos todos têm passado. Não tem como apagar.
A noite continua escurecendo.
O frio vem me maltratando e sinto vontades de um bom chimarrão, na volta do fogão de lenha. Na companhia de alguém que queira ficar de boca fechada.
Ouço os latidos desconsertados da cachorrada, os únicos a falarem livremente, por aqui todos estão aos murmúrios, com medo de acordar o morto. Aquele que morreu deve se manter defunto. Não tem mais jeito nem lugar.
A nostalgia é que nos faz torcer por outra impossibilidade.

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IV - O filho-da-puta me salvou! 

VI - Envelhecer deveria ser coisa de pobre

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