sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

XVIII - General Calçacurta


Os cadáveres sabem ler o desespero e a traição

baitasar

Já estou sozinha. Acostumei. Acho que gosto assim. Não é preciso pedir, o artilheiro toma seu banho e com um leve beijo de boa noite se vai
—        Boa noite, dona Clara — sem remorsos nem carinhos dispensáveis. Não é mais um ingênuo querendo servir — Boa noite, Himineu — filho de escravos. Eu sou a dona: sou quem paga. É assim que quero. É assim que sempre tem sido. Sou a sua terra natal, a sua pátria
─         Obrigada pelas prazerosas demonstrações de afeto — Tenha um dia lindo, soldado — interrompo aquele inchado romanesco, apenas um susto. Desmembro os pensamentos e me reparo para dormir.
Essa camisola do luto me cai bem. O meu perfume embaralhado aos cheiros e redemoinhos da cama me abranda. Abro os braços e fico esparramada nesse meu berço esplêndido da sacanice. Aquela sombra incompleta no quarto me deixa satisfeita: uma penumbra que acaricia meus olhos e os deixa relaxados. Olho ainda uma vez na minha volta, tudo no seu lugar. Eu estou no meu lugar. Esse é o meu castelo
—        Quando os parvos acordarem...
Desligo a luz.
Solto o dedo do botão que me mantém acordada. Até a pouco queria espreitar o cheiro, o gosto e o rosto do Chupa-racha de mãos voadoras, estrar em sua boca reclamando beijos famintos e o seu corpo quente, mas passou. Fui esvaziada. O sono me envolve como uma espessa bruma. Vou carregada naquelas almofadas do nevoeiro. Não enxergo nada além daquela escuridão branca. Caminho com cautela. Levo os braços a frente. A cada passo pareço mergulhar mais um pouco entre aquelas nuvens parvas. Cândidas. Ingênuas.
Mais um passo e estou caindo, numa vertigem que provoca suores fartos em meu corpo
—        Quem está aí — meus gritos não atravessam aquela barreira de névoa. Até que vejo meu corpo caindo. Nem sei do tempo que levo na queda, mas acordo em uma cama de pedra. Estou deitada com as mãos e os pés amarrados. A camisola do luto é arrancada em tiras dolentes. Arreganhadas. Fico calada: o medo e o ódio esbugalham meus os olhos enquanto procuro reconhecer esse quarto de dormir. Jamais estive aqui. Sinto o calafrio do pavor. Sons de celebração se aproximam: lembram uma procissão de murmúrios: os pés se arrastam junto com as ladainhas. O pânico arrepia e me alerta, sou o cordeiro num altar de sacrifícios.
Encapuzados se aproximam e caminham em círculo, enquanto entoam suas cantilenas. Estou no centro. Cada um carrega em uma das mãos uma tocha e na outra levam um espadim. A procissão gira e gira. O tempo deixou de existir. Sinto uma coceira nos ouvidos, mas não entendo minha orelha —  Queria poder usar meus cotonetes — preciso achar a minha orelha perdida e coçar com os cotonetes
─         Devolvam a minha orelha, está coçando muito — quero que me escutem sobre os cotonetes. Parece uma coisa tão sem sentido, mas somente que sente essa coceira pode saber da necessidade de reencontrar seus cotonetes — Os cotonetes fugiram para Portugal, estão desaparecidos — as sombras estavam de brincadeira... algum cotonete pode fugir para Portugal se for levado e tenho certeza que não levei.
Um dos cobertos por capuz sai do círculo e se aproxima. Retira a cobertura de pano
─         General! — grito com todas as forças do meu ódio quando aquele cadáver se atira por cima, me monta, rasga a roupa de milico e lambe meu rosto com a cara desfigurada por bernes, bichos-de-pé e vermes que lhe engolem
—        Amanteiga o meu rosto com sua língua, minha Virgem Amada — tem uma língua pegajosa e farpada. Cheiro podre de enxofre. Continuo a gritar. O corpo morto do General está de juízo transtornado e é assim que entra em mim, aos gritos. Seu berreiro ereto me finca e atormenta, entra pelas pernas e me sai pela boca. Eu vomito. Eu preciso vomitar. Desce a cabeça e passa a esfregar os bigodes nas virilhas, os pelos se esfarelam, soltam-se da pele amarelada, magra e despregada da vida
─         Goza sua vagabunda!
─         Eu não consigo, General...
─         É uma ordem, tu é a minha puta!
─         Por favor, General.
─         Cadela!
─         Me deixa em paz...
─         Vou te mostrar como se faz com cadela no cio!
─         Chega, General!
—        Vou meter-te a freira!
—        Eu não sei da minha orelha! Eu juro! — não podia deitar com nenhum homem sem a minha orelha, eles não querem mulheres lascadas, mas pareciam se divertir com as dores que me faziam
—        Ela está em Portugal — eles mentiam, arrancaram minha orelha e ficaram presos ao segredo da própria mandinga.
Os fazedores de cadáveres sabem ler os sussurros do desespero e da traição
—        Cadela!
—        Canalhas!
O meu destino de mulher não interessa, chorei até não ter mais lágrimas, quase desmaiada, quase acordada
—        Digo e faço o que for preciso — todos querem sobreviver, até as baratas
—        Baratas! Aiiiiiii! Onde? — o soldado entra correndo pelo quarto de arma em punho e com os pés descalços esmaga a sobrevivente — Menos uma!

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