Os cadáveres sabem ler o desespero
e a traição
baitasar
Já estou sozinha. Acostumei. Acho que gosto assim. Não é preciso pedir, o
artilheiro toma seu banho e com um leve beijo de boa noite se vai
— Boa noite, dona Clara — sem
remorsos nem carinhos dispensáveis. Não é mais um ingênuo querendo servir — Boa noite, Himineu — filho de escravos. Eu
sou a dona: sou quem paga. É assim que quero. É assim que sempre tem sido. Sou
a sua terra natal, a sua pátria
─ Obrigada pelas prazerosas
demonstrações de afeto — Tenha um dia lindo, soldado — interrompo aquele
inchado romanesco, apenas um susto. Desmembro os pensamentos e me reparo para
dormir.
Essa camisola do luto me cai bem. O meu perfume embaralhado aos cheiros e
redemoinhos da cama me abranda. Abro os braços e fico esparramada nesse meu
berço esplêndido da sacanice. Aquela sombra incompleta no quarto me deixa
satisfeita: uma penumbra que acaricia meus olhos e os deixa relaxados. Olho
ainda uma vez na minha volta, tudo no seu lugar. Eu estou no meu lugar. Esse é
o meu castelo
— Quando os parvos
acordarem...
Desligo a luz.
Solto o dedo do botão que me mantém acordada. Até a pouco queria
espreitar o cheiro, o gosto e o rosto do Chupa-racha de mãos voadoras, estrar
em sua boca reclamando beijos famintos e o seu corpo quente, mas passou. Fui
esvaziada. O sono me envolve como uma espessa bruma. Vou carregada naquelas
almofadas do nevoeiro. Não enxergo nada além daquela escuridão branca. Caminho
com cautela. Levo os braços a frente. A cada passo pareço mergulhar mais um
pouco entre aquelas nuvens parvas. Cândidas. Ingênuas.
Mais um passo e estou caindo, numa vertigem que provoca suores fartos em
meu corpo
— Quem está aí — meus gritos
não atravessam aquela barreira de névoa. Até que vejo meu corpo caindo. Nem sei
do tempo que levo na queda, mas acordo em uma cama de pedra. Estou deitada com
as mãos e os pés amarrados. A camisola do luto é arrancada em tiras dolentes.
Arreganhadas. Fico calada: o medo e o ódio esbugalham meus os olhos enquanto
procuro reconhecer esse quarto de dormir. Jamais estive aqui. Sinto o calafrio
do pavor. Sons de celebração se aproximam: lembram uma procissão de murmúrios:
os pés se arrastam junto com as ladainhas. O pânico arrepia e me alerta, sou o
cordeiro num altar de sacrifícios.
Encapuzados se aproximam e caminham em círculo, enquanto entoam suas cantilenas.
Estou no centro. Cada um carrega em uma das mãos uma tocha e na outra levam um
espadim. A procissão gira e gira. O tempo deixou de existir. Sinto uma coceira
nos ouvidos, mas não entendo minha orelha — Queria
poder usar meus cotonetes — preciso achar a minha orelha perdida e coçar com os
cotonetes
─ Devolvam a minha orelha,
está coçando muito — quero que me escutem sobre os cotonetes. Parece uma coisa
tão sem sentido, mas somente que sente essa coceira pode saber da necessidade
de reencontrar seus cotonetes — Os
cotonetes fugiram para Portugal, estão desaparecidos — as sombras estavam de
brincadeira... algum cotonete pode fugir para Portugal se for levado e tenho
certeza que não levei.
Um dos cobertos por capuz sai do círculo e se aproxima. Retira a
cobertura de pano
─ General! — grito com todas
as forças do meu ódio quando aquele cadáver se atira por cima, me monta, rasga
a roupa de milico e lambe meu rosto com a cara desfigurada por bernes, bichos-de-pé
e vermes que lhe engolem
— Amanteiga o meu rosto com
sua língua, minha Virgem Amada — tem uma língua pegajosa e farpada. Cheiro
podre de enxofre. Continuo a gritar. O corpo morto do General está de juízo
transtornado e é assim que entra em mim, aos gritos. Seu berreiro ereto me
finca e atormenta, entra pelas pernas e me sai pela boca. Eu vomito. Eu preciso
vomitar. Desce a cabeça e passa a esfregar os bigodes nas virilhas, os pelos se
esfarelam, soltam-se da pele amarelada, magra e despregada da vida
─ Goza sua vagabunda!
─ Eu não consigo, General...
─ É uma ordem, tu é a minha
puta!
─ Por favor, General.
─ Cadela!
─ Me deixa em paz...
─ Vou te mostrar como se faz
com cadela no cio!
─ Chega, General!
— Vou meter-te a freira!
— Eu não sei da minha orelha!
Eu juro! — não podia deitar com nenhum homem sem a minha orelha, eles não
querem mulheres lascadas, mas pareciam se divertir com as dores que me faziam
— Ela está em Portugal — eles
mentiam, arrancaram minha orelha e ficaram presos ao segredo da própria mandinga.
Os fazedores de cadáveres sabem ler os sussurros do desespero e da
traição
— Cadela!
— Canalhas!
O meu destino de mulher não interessa, chorei até não ter mais lágrimas, quase
desmaiada, quase acordada
— Digo e faço o que for
preciso — todos querem sobreviver, até as baratas
— Baratas! Aiiiiiii! Onde? —
o soldado entra correndo pelo quarto de arma em punho e com os pés descalços
esmaga a sobrevivente — Menos uma!
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