segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Paulo Freire: um homem inconformado em apenas alfabetizar


Teatro Pedagógico

baitasar

Uma tarde perfeita, viver uma vida perfeita, uma outra quinta-feira, em um outro lugar
   Com licença, peço desculpas pelo atraso.
É o professor Paulo que se anuncia num atraso, interrompendo a reunião
   Estava fazendo a re-leitura de um texto com alguns alunos da Progressão do 3o. Ciclo, o tempo foi passando na sua medida, e quando nos percebemos atrasados viemos para a reunião.
O professor Paulo é possuidor de um carisma muito grande, entre todos, que de alguma maneira, ou por alguma razão, privam da sua palavra e suas reflexões sobre educação. Começa por ser um velhinho de cabelos brancos e longos, um andar calmo e curtinho como se não tivesse pressa em chegar, o que parece lhe interessar é o percurso e o caminho percorrido. Sua voz é tranqüila e clara, não deixa dúvidas sobre a sua intenção ao falar, seus olhinhos parecem sempre em busca de tudo que possa ser visto e aprendido na intenção de unir a ação com o pensamento, suas mãos falam junto com sua palavra
   Parabéns, professor! Já é muito difícil uma leitura de frases com estes alunos, imagina re-leitura, chamo a isto de magia, o máximo da bruxaria nos dias de hoje. Enfim, temos o nosso mago!
Observo a enferma Ofélia, não é possível que eu fique calada frente a tamanho disparate! Busco com o olhar o professor do corredor. Não está! Como o necessito. Deus havia sido a minha mais importante carência, mas a ele necessito mais que a Deus. Não é possível que fique calada, sempre acreditei na possibilidade de construção de uma escola diferente, voltada para as práticas da conscientização, da inclusão, da autonomia, da participação, da auto-organização, da libertação, da alegria, da cidadania. Enfim, a construção de uma escola verdadeiramente democrática. Deixo Paulo e Marko sozinhos... Calei! Por quê — não encontro resposta
   Professora Ofélia, então é verdadeira a lenda que comenta ser uma escola vazia, sem suas crianças, um imenso casarão mal-assombrado, onde só ficam as bruxas?
Eis uma reunião que promete, a Lia mostra sua capacidade de combate na ironia que brinca com o deboche, tudo é dito sem ingenuidade. Eis as manobras das forças reacionárias e progressistas durante o combate ou na iminência dele, se posicionam, medem as forças, granjeiam aliados, agrupam-se. Não existe lirismo neste combater nem sangramentos aparentes, as consequências estão depositadas no fazer ou deixar de fazer nas aulas, os seus efeitos se concretizam nas maneiras de ensinar arrogante para alguém ou nos desejos humildes de aprender junto
   Querida professora, a mim parece importante chamar a atenção para quantas e quantas vezes sucumbimos frente a falas destrutivas e desesperançadas, que nos fragmentam e nos implodem em pequeninos pedaços voadores, transformando em poeira nossas tentativas íntimas. Nas muitas e mais tantas oportunidades em que isto acontece, não o sabemos se ocorre por intenção deliberada ou por não sabermos pensar e sentir diferente. Guardamos silêncio para o enfrentamento final quando o bem vencerá definitivamente o mal. Eis o imobilismo na crença que haverá somente um embate e que todos os desgastes dos afrontamentos anteriores se dão sem razão. Ao assumir uma posição critica e não lírica deixamos de assumir os defeitos e dificuldades dos outros para estabelecer parcerias razoáveis de comprometimento com a esperança, dentro de uma práxis libertadora do outro em mim que retorna ao outro que está fora de mim.
Não há fadas ou benfeitores, todos precisamos caminhar com as próprias pernas, errando ou acertando que diferença faz, nos basta por ora o movimento. Parando, vez que outra, para estabelecer diálogos íntimos, enfrentamentos pessoais, fixando regras de ação e deixando o coração livre para voar os maiores e melhores sentimentos da esperança. Não se deixar vencer pela insônia do medo e ficar escondido. Levantar da cômoda cadeira e virar o vinil, tocar o lado B, movimento e reflexão, quanta sonoridade no vinil, nem tudo que é novo supera em qualidade o antigo
   Não se opta pelo novo apenas como consequência da novidade, decide-se pelo novo através da reflexão que temos do velho e do desejo de fazer nascer diferente do antigo.
   Concordo, Lia, aquilo que é novo, a notícia ou a colheita, não nos embaraça tanto, quanto o novo que chega pelas ideias de fazer diferente. Não se diz querer o novo das ideias por astúcia ou ingenuidade, pois tanto uma como a outra farão da novidade mentiras diárias. Cresceremos com as ideias do novo fazer e pensar, na discussão permanente entre mim e o eu, entre o eu e o nós, entre o nós e o todo, entre o todo e o que repito que é meu, pois sempre retorno ao início que sou eu. Minha dor não é nova, mas meu sorriso está diferente. Estou refletido em mim mesmo, clareando e esclarecendo minhas próprias perguntas, Sou astuto, ingênuo ou progressista, por ora, já me basta responder por está investigação, permanentemente atento, mesmo que sofrendo muito com o esforço, mas em movimento.
Somos energizadas ao ouvi-lo, acrescentaria eu, que superando estes papéis mágicos e autoritários, precisamos de novos olhares sobre o nosso quê fazer na escola, sacudindo a poeira do tempo e descobrindo aos poucos um novo eu que já existia, permanecia escondido pela poeira da imperturbabilidade ingênua ou solércia medrosa
   Professor, por favor, sente-se. Vamos continuar.
O professor Paulo senta-se calmamente na fórmica verde e menos dura e menos fria da sua cadeira pedagógica, se eu pudesse acabaria com a pedagogia. Pior que a possibilidade de matar as pessoas, é a maneira como transforma todos em bonecos de pau, É apenas parte da contenda, É traição, Sinceramente não sei se a pedagogia é uma traição, ou seu uso ou desuso, não esquecendo da intencionalidade, desvela as diferentes concepções de mundo que cada pedagogo carrega consigo, Por acaso somos pedagogos, Por acaso ou por intenção, O que é ser um pedagogo, Qual seu objeto de estudo, O que é afinal a pedagogia, Em verdade vos digo: ela é uma ciência pensada para dar conta de muitas ciências dentro de uma instituição chamada escola, Aí começa o emaranhado, o lio, Como podemos dar conta de todo o saber científico para ensiná-lo na escola, Criamos os programas, os conteúdos, os métodos, as estratégias, Eis o começo da traição aos miseráveis.
Sei, que através dos tempos, de acordo com os diferentes momentos históricos, tivemos construções importantes na pedagogia: com o sentido de transformar as práticas coercitivas, disciplinadoras, autoritárias. Podemos citar Gramsci com sua pedagogia crítica, Frenet com a escola nova, Makarenko com a pedagogia socialista, Paulo Freire com a pedagogia libertadora. Teria outros a recitar, mas me interessa perguntar, Eles foram traidores, Foram traídos, me responde o professor do corredor, O que pensas deles, tento envolvê-lo, Todos eles pensaram em uma nova escola a partir da utopia da construção de sociedade baseada em princípios solidários, onde a pedagogia estaria a serviço da construção desse ideário, minha provocação está aceita, O que deu errado, Olhamos para o mundo, mas basta olhar para a África, América Latina, veremos a fome, as favelas, as desigualdades extremas e, talvez, tenhamos alguma resposta, Os pedagogos não estão preocupados com justiça social, estão treinando recursos humanos nas grandes corporações, Assumiram seu papel de amestradores de mentes e adestradoras de corações.
 Não deixo que se afaste desta discussão lembrada, O que deu certo, para a meio caminho e responde com outra pergunta, Ou o que poderá dar certo, Queremos fazê-lo, e talvez, assim, teremos uma pedagogia da esperança, O que é possível fazer em uma sociedade onde a praga do consumismo e da corrupção avança até nos projetos dos governos da esquerda, Como pensar em solidariedade e, principalmente, como construir os conceitos de justiça e ética numa sociedade dominada pelo consumismo e individualismo, Concordo, mas não basta fazermos a leitura da realidade e dos saberes existentes em determinada comunidade, Até onde precisamos ir, Ao céu e inferno, precisamos compreender como quem interpreta a sua própria realidade, não há outra saída, creio, a qual não seja estar junto do povo, falar, dialogar, aceitar, meter a colher, mudar nosso modo de vê-los, deixar que nos ensinem e nos toquem, os criadores de monstros, Fazer, não para teorizar em cima, relatos em seminários, mas para mudar a nossa vida, muito mais que os opressores e que se dizem: vítimas, Pensando assim a pedagogia não é uma traição, Claro, ela pode ser uma ferramenta de mudança desde que assim o façamos, ou melhor, desde que assim a entendemos, mas tudo isso exige disciplina e método, Dialético, Com toda certeza, O abismo nos espera, E nós, a quem esperamos, Um cavaleiro inexistente ou o último vôo do flamingo, Quem sabe. Paro meus devaneios
   Professor Aguinaldo, permita-me uma pequena observação.
   O que foi Marko?
   Professor Paulo, o senhor estava descrevendo a esperança...
   Caro Marko, a esperança no homem e na mulher, independentemente da maneira como se manifesta e se diz pertencente e querendo a humanidade que nos habita, é permanentemente mobilizada para recriar as condições humanas de ser mais. Esperar o que se deseja é o natural, a necessidade que transcende a biologia e vem se assentar em nossa condição humana, no desejo que existe na palavra e na reflexão que impregna nossa ação. E é esta palavra carregada com nossos desejos que aviva a práxis voltada para o humano que se quer sendo mais humana, recriadora das possibilidades e oportunidades que nos aproximam. Sonhar esperança é pensar a vida com um chá refrescante de hortelã na xícara, em nossas mãos, quentinho e aconchegante, que necessita ser sorvido, tomado delicada e decisivamente, sem esperar que amorne ou esfrie. A esperança do chá está na sua delicadeza e na sua maneira diferente de observar e influir na vida, na saúde da existência, na ausência de agressões e resultados inflamados por fármacos pedagógicos tirânicos e imediatistas.
A pedagogia antibiótica se revela eficaz para acabar com o analfabetismo porque acaba com o analfabeto. Antes dos conteúdos está o amor capaz de nos aliviar aos poucos um pouco mais, antes que o tempo veloz nos engula e nos impeça de estarmos juntos, novamente, descobrindo que o amor não é paz, mas a contradição do outro e da outra em mim mesmo. Assim, na diversidade, deveríamos ajudar o mundo a mudar
   O Paulo é um obstinado no crédito que dá ao ser humano educador.
   Querido Acácio, fico pensando naqueles e naquelas desesperançadas por pura teimosia, se negam existindo e fazendo o seu teatro histórico, têm medo de narrar e se negam registrar a sua biografia, não acreditam que podem formatar a sua própria fábula, se fogem. Não se acreditam e impedem aos seus discípulos esperançados de se acreditarem, se jogam de cabeça no abismo da fatalidade e do destino, se proíbem de acreditar em si e nos outros e outras, se julgam menores ou maiores conforme o tamanho do interlocutor ou da entrevistadora, estão jogados nas águas oceânicas da vida e se deixam embalar até o naufrágio na primeira tempestade, que cedo ou tarde virá. Navegam na desesperança e na aposta imoral que os ventos não mudam, não circulam, não aumentam, os vagalhões não existem, são frutos da imaginação, e por isso, também, se impedem de imaginar e sonhar. Os desesperançados têm medo de encontrar a verdade nos pesadelos das suas fantasias e ilusões opressoras, teimam que a esperança não existe como um ato de mudança, como um fato do cotidiano, como uma xícara com chá de hortelã.
O destino pode ser torcido e retorcido até a dor intensa da consciência ou ficar dominado moralmente pelos desatinos do medo. Em verdade vos digo: Não acreditamos no que fazemos porque o que fazemos não vai mudar nada do que sempre foi assim, não cremos que existe beleza no trabalho de educar com esperança na palavra do outro que nos educa, juramos jocosamente, Não existe o outro que nos educa, quer gritar dentro de mim a desesperança maliciosa e ordeira, mas a faço calar-se, Mentira, existimos nos educando juntos, nas histórias vividas ora com um, ora com outra, nada é igual o tempo todo, mas nem querem entender
   Professor Paulo, ninguém aqui, ficaria surpreso ou atônita se lhes afirmasse que o coletivo de professores não existe com sentido pedagógico nas escolas, pelo menos, nas quais perambulei nestes trinta e tantos anos de reuniões, espantos, crises, bolos de aniversário, almoços, piadas, reclamações, licenças, abandonos. Nunca vi planejamento e sentido coletivo nas ações pedagógicas, escutei muitos sonhos, presenciei muitas discussões e tentativas, que não passaram de desejos de uns poucos e poucas. O que nos impede de existirmos como um coletivo de professores por certo não é a falta de espaço para discussões pedagógicas. Aqueles de nós que não têm espaço pedagógico de discussão em suas escolas poderão, justamente, dizer que não é verdade, a falta de espaços de discussão do pensar pedagógico nos leva ao isolamento no fazer educação. Mas o que dizer daquelas escolas que contemplam horários sistemáticos, semanais ou quinzenais, para reuniões pedagógicas e não conseguem um sentido coletivo. Aqui não estou me referindo ao senso corporativista, sentimento de classe, mas a um fazer e pensar educação coletivamente, incluindo, especialmente, pais e mães e alunos e alunas, que têm o direito de nos dizer qual a educação que desejam, para si ou para seus filhos e filhas.
Precisamos escutar o que esperam de nós, professores e professoras. Oramos o discurso pedagógico do alto do púlpito catedrático, para mostrar-lhes que somente nós entendemos educação escolar. Nada têm a nos dizer, Será, Os gestores da escola, seus diretores e diretoras, desempenham seu papel de desvelar para a comunidade a necessidade de pais, mães, alunos e alunas críticos em relação ao desempenho dos educadores, Ou será que temos gestores sem direção, apenas, corporativos, elevando-se no ar só por voar, sem sonhos, lhes basta acomodar os ventos e os desejos, perguntas, perguntas... Corro atrás de uns goles de chá preto
   Querido Marko, invejo quem na sua esperança mobiliza a realidade a sua volta na busca da transformação, não sou queixoso, minha inveja não é invejosa, não é melancólica, é alegria. Precisamos pensar e atuar com esperança e não nos deixarmos invadir pela desesperança do mundo, do outro e a nossa própria, formatada nos momentos de desilusão com o cotidiano. Criemos com as nossas mãos e coração o mundo da esperança, da igualdade social, do pensamento livre e da voz que não se cala, mesmo quando tagarela ou aprisionada e submetida ao silêncio pelo poder de homens e mulheres sem afetividade na alma. Saudemos a escola que brilha por estar e se manter sempre atenta à diversidade, às diferenças, não para jogá-las em um gueto ou em uma estufa, em uma ação estulta, nem em uma sala de aula, mas para se aproximar do verdadeiro combate corpo a corpo, mantendo-se ética e verdadeira na sua luta contra um mundo excludente e falso, que valoriza o ter mais e esconde sob as mentiras das armas e da mídia a nossa necessidade ontológica de ser mais. Saudemos a escola que, antes de pensar o que vai ensinar a tantas pobres e ricas almas, não quer que desapareçam como almas do outro mundo, no cotidiano de avaliações e aprovações e reprovações cartesianas, mas discute com todos e todas o que existe e se transforma na fecundidade frágil entre o certo e o errado.
   É o destino?
   Por certo, não é o destino, Acácio, mas os atos e omissões de homens e mulheres que acreditam em si, em vós e, também, em nós, como sujeitos e sujeitas deste fazer renovador e que pretendem incinerar a neutralidade estúpida porque curta de inteligência e orelhuda ou mal intencionada.
   É indispensável à esperança o coletivo. Não sei, se a sociedade vê nos professores e professoras um exército de salvação que marcha, marcha e marcha, também não sei, se nos vemos soldados dessa massa de seguidores de tarefas, nem tampouco posso afirmar se individualmente somos convocados para integrar esse contingente salvacionista. Não tenho certeza da existência de um outro exército: o exército do extermínio. Mas afirmo que, se não nos constituímos no coletivo, somos facilmente cooptados: aliciadas pelo exército da desesperança, do desamor, do desânimo e das lamúrias. De modo caricatural se pode dizer que se criam as condições para uma grande escola de gritos e silêncios.
Interfere o professor Adail, olhos arregalados parecendo assustado com a ousadia própria. Começo a me sentir envolvida nesta conversa de esperança e de fazer, quero a possibilidade da esperança, preciso afastar este cansaço que imobiliza, arredar-me deste atribuir ao destino tudo o que acontece
   Professor Paulo, partindo desta visão de construção coletiva fica mais fácil entender o aprendizado por ciclos de formação, onde o todo interfere na construção do indivíduo, e este, por sua vez, sente-se parte integrante e necessária nestas construções coletivas, capaz de se construir, bem como, constituir o outro.
   Bem como, o aprendizado nas totalidades da escola para jovens e adultos.
   Como organizar um coletivo com visões de mundo tão diferentes?
   Quanta conversa vazia, só produzimos na prática um imenso vácuo.
   Perco minutos, horas das minhas aulas discorrendo sobre as maneiras, ou melhor, as nenhumas maneiras que têm. Falo, falo, falo e nenhuma reação.
   Chego a atingir os limites do conselho: Quem não quer estudar fique em casa! Demarco com precisão, efetuando exercícios de tiro com canhões, torpedos ou outras armas: Não precisa vir! Olhem o exemplo, desta menina morta em assalto, morte de bandido!
O fazer do mesmo jeito atravessa os séculos: é romano e uma doutrina filosófica, sua instituição clerical. Os dogmas atravessadores da sua alma são universais, bancários e constituem sua força e resistência, faz de muito longe o tempo em que andava descalça. Ninguém merece morrer, nem bandido feito bandido pra não comer lixo
   Esperar que o vazio venha a ser preenchido pela ingênua esperança que vem carregada pelos braços, suor e sangue dos outros é também querer ser virtuoso pela virtude do outro que tal. Quando nos imaginamos em movimento, na verdade, estamos de braços cruzados. Uns goles de chá de camomila por certo nos deixariam os sentidos mais tranquilos, para acreditar, não apenas no que vemos, mas também naquilo que desconhecemos, que não está se enxergando.
Quem sabe uns goles de jazz ou bossa nova nos devolvam sentidos adormecidos, o Paulo poderia acrescentar, e lembro de perguntar da humanidade, aos ouvidos que sentem Charlie Parker através do vinil
   Professor Paulo, não nos basta falar da esperança, nós precisamos agir com a esperança dentro e em nosso entorno. O Marko nos fala de dois coletivos que são um só coletivo pedagógico e que precisam ser educados como um só. Como ter esperança na educação de um coletivo que não se enxerga opressor, opera o poder na escola e se diz vítima?
   Esse Adail precisa pegar uma turma de primeiro ciclo na obrigação de alfabetizar trinta pequenos demônios. Ficar um semestre com eles e vir aqui discursar! Alunos de inclusão, depois vem dar discurso!
Já não sabia se isso foi resmungo de indignação ou comentário de provocação. Ninguém está a dizer que é fácil e que a um grito de, Camaradas, todos pegaremos em armas contra o desumano e perverso, até deveríamos, mas isso não se dá... por enquanto
   Querido Adail, é urgente lutar e lutar por nossos sonhos. Uma educação que educa para a ruptura dos paradigmas, que educa para decisões éticas por opção e não por imposição. Uma educação que educa com o coração e encara frente a frente o difícil e o fácil, sem medo de ser do lado dos oprimidos, dos feios e das feias, sem deixar de ser boa e gostosa para os meninos e meninas bonitas e ricas, perfumadas com talco importado, transformando em poesia as ilusões crescendo pela estrada que é andada. Cada dia, um novo dia com carinho, com alegria, com uma educação cada vez mais interessada e criativa, mas uma preocupação inventiva que não venha apenas da boca pra fora, metafórica, mas que precisa servir sem donos que preguem o medo, tremendo de cansaço com a vida e tristinhos de tamanha vontade de consolar.
Não conseguimos ir além de indicar outra educação e mais outra diferente, enquanto continuamos indo às compras, à guerra. Devoramos até a destruição. Precisamos fazer sobrevir ao desejo novas formas de educar nos enchendo do querer e do fazer, pendurar a preguiça no varal e abandoná-la ao sol para secar. Tornar possível que as cacimbas do lençol de água transbordem até que o olho-d’água, nos fitando, diga-nos que podemos crescer assim, aos turbilhões, molhados de humanidade. Mas a cacimba não se transborda por decisão histórica, julgamento do tempo, há de ser escavada até um lençol de água. Necessitamos criar as condições para uma boa escavação ao escavar em baixadas úmidas ou no leito de um rio, na qual a água se acumula como num poço. Chega de escavar na esterilidade seca e morta dos desertos, basta de falar sem ser ouvido ou entendido às almas murchas e secas, esvaziadas dos desejos de viver coletivamente. Criemos com nossos alunos e alunas o encanto por este novo viver e educar. Procuremos terras férteis para cavar e escavar até que se formem os poços de acolhimento e recolhimento às sementes germinantes do ser mais
   Sendo necessário, caminhemos sozinhos os primeiros passos e aproximando-nos ou deixando-nos chegar por um outro alguém já não estaremos desacompanhadas. Iremos dessa maneira tecendo a teia de um fazer diferente, construindo uma história diversa dos choros e das reclamações de quem chega, no seu final do adeus temporal, sem os sabores intensos e coletivos da vida,
Os professores Marko e Paulo se olhavam, procuravam pelo olhar do professor Adail, com um pequeno sorriso nos lábios como se tudo tivesse sido pensado num coletivo cúmplice de três mentes educadoras, na esperança de formar pensamentos e ações coletivas. Incluindo nas almas educadoras, que não se colocam antecipadamente contra qualquer atitude de pensar mudanças, a possibilidade de se educarem numa perspectiva diferente, no sentido da solidariedade, não no sentido da solidariedade ingênua, em que um afago, um sorriso, um olhar irá acabar com o sofrimento e a dor da fome, da falta de saúde, da falta de moradia, da falta de se ver e ser visto como um ser humano da humanidade histórica. Precisamos nos educar na solidariedade participativa, libertadora, pensando nós mesmos e o mundo, agindo entre nós e com nossos alunos no mundo, sobre os gritos e os silêncios que nos fazem passar de fora para dentro, penetrando e continuando em mudança, fugindo da mistificação do real, da mastigação do social, olhar e enxergar
¾    Não aceitar a cegueira fácil da acomodação e da resposta simples, dócil, ingênua e propensa a confiar que no fim tudo se ajeita.
¾    Necessitamos contrariar conceitos seculares, que, ainda hoje, se arrastam entre nossos pés e vendam com tarjas invisíveis nossos olhos, quando aceitamos sussurros e insinuações estabelecendo que os pobres, que encontramos em nossas escolas, só o são pobres porque preferem pedir a trabalhar. Na hipótese de realmente acreditarmos nisso, pensamento fascitoide, precisamos enxergar o nosso entorno como nunca antes o fizemos e fazer perguntas simples a nós mesmos.
¾    Quanto em quilômetro andará por dia, puxando o seu carrinho, aquele papeleiro como se o cavalo fosse? Por certo, faz mais que eu e o carro, entre o crematório público de sonhos e minha casa!
¾    Calma, Paulo, a reunião nem mesmo começou e já queres nos transformar em réus confessos!
¾    Quanto de lixo, resíduos de nossas casas, aquela mulher e a adolescente conseguem recolher por dia de trabalho, tocando o cavalo que puxa a carroça?
¾    Alguém precisa se ocupar dessas coisas!
¾    O consumo das vidas é tão intenso que obrigamos os catadores a se especializarem. Nos dias de hoje, temos os catadores de lata, outros só catam papelão, vidros quebrados ou não, mas temos também os catadores, como aquelas duas meninas na carroça que só carregam os nossos restos da comida refeitada.
   Gente, chega! Vamos guardar os nossos argumentos teóricos para o momento da discussão pedagógica.
   Não são argumentos teóricos: são sonhos! Desejos veementes do espírito desses homens e mulheres que vivem a vida que tu e eu não conseguimos, acovardamos! Preferimos a escuridão mesquinha das disputas nas gramáticas, mapas, datas, bolas e tabuadas.
O professor Aguinaldo não consegue dissimular a fraterna admiração que nutri por Marko e Paulo. Não cansa de repetir que a re-leitura da história da nossa escola irá reverenciar duas pessoas tão especiais, dois professores bruxos do amor pedagógico, mas o corpo dos professores começa a se inquietar com muxoxos nervosos. Consultam a todo instante o relógio, nosso algoz permitido. Somos indivíduos sem prazer no coletivo, opomo-nos por meio de palavras de protesto a inexistência de um trabalho solidário. Nas oportunidades que se apresentam por inércia, ou por uma tentativa intencional de reflexão coletiva, fugimos para os nossos compromissos solitários e as nossas queixas de um queixume eterno, a falta de tempo, a falta de condições, a falta de um salário digno, a falta de saúde, a falta de juventude, a falta de felicidade, a falta de crer e querer, a falta de dinheiro, a falta de filhos, os filhos em excesso, a falta de consolo em amigos de longe ou de perto, a falta de fé e sonhos possíveis de sonhar, a falta de feriados e pontes e feriadões, a falta de beleza, Como conseguir ser uma pessoa normal e, simplesmente, voar
 Professor Paulo, no momento da sua chegada, estávamos lembrando de algumas situações administrativas que estão ocorrendo e com certeza interferindo no pedagógico.
Todos se voltam para o diretor Aguinaldo como pacatos cidadãos chamados à atenção, de novo não me sinto à vontade. Está estrada não vai dar em nada, não sou feliz e não sou louca, tento não ser uma normal que senta na fórmica e chama um por um, uma por uma, para mostrar um caderno e as cópias do quadro, Existe razão para colecionar certos e errados e cadernos, ninguém animada para responder.
Estamos transformando ou fabricando bonecos, precisamos decidir, a fenda vem nos engolindo, nossa morte é certa.
E eu, sei quem sou, Será que sei, mesmo

1ª parte

2ª parte


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