Teatro Pedagógico
baitasar
Uma tarde
perfeita, viver uma vida perfeita, uma outra quinta-feira, em um outro lugar
— Com licença, peço desculpas pelo
atraso.
É o professor Paulo que se anuncia
num atraso, interrompendo a reunião
— Estava fazendo a re-leitura de um
texto com alguns alunos da Progressão do 3o. Ciclo, o tempo foi
passando na sua medida, e quando nos percebemos atrasados viemos para a
reunião.
O professor Paulo é possuidor de um
carisma muito grande, entre todos, que de alguma maneira, ou por alguma razão,
privam da sua palavra e suas reflexões sobre educação. Começa por ser um
velhinho de cabelos brancos e longos, um andar calmo e curtinho como se não
tivesse pressa em chegar, o que parece lhe interessar é o percurso e o caminho
percorrido. Sua voz é tranqüila e clara, não deixa dúvidas sobre a sua intenção
ao falar, seus olhinhos parecem sempre em busca de tudo que possa ser visto e
aprendido na intenção de unir a ação com o pensamento, suas mãos falam junto com sua palavra
— Parabéns, professor! Já é muito
difícil uma leitura de frases com estes alunos, imagina re-leitura, chamo a
isto de magia, o máximo da bruxaria nos dias de hoje. Enfim, temos o nosso
mago!
Observo a enferma Ofélia, não é
possível que eu fique calada frente a tamanho disparate! Busco com o olhar o
professor do corredor. Não está! Como o necessito. Deus havia sido a minha mais
importante carência, mas a ele necessito mais que a Deus. Não é possível que
fique calada, sempre acreditei na possibilidade de construção de uma escola
diferente, voltada para as práticas da conscientização, da inclusão, da
autonomia, da participação, da auto-organização, da libertação, da alegria, da
cidadania. Enfim, a construção de uma escola verdadeiramente democrática. Deixo
Paulo e Marko sozinhos... Calei! Por quê —
não encontro resposta
— Professora Ofélia, então é verdadeira
a lenda que comenta ser uma escola vazia, sem suas crianças, um imenso casarão
mal-assombrado, onde só ficam as bruxas?
Eis uma reunião que promete, a Lia
mostra sua capacidade de combate na ironia que brinca com o deboche, tudo é
dito sem ingenuidade. Eis as manobras das forças reacionárias e progressistas
durante o combate ou na iminência dele, se posicionam, medem as forças,
granjeiam aliados, agrupam-se. Não existe lirismo neste combater nem
sangramentos aparentes, as consequências estão depositadas no fazer ou deixar
de fazer nas aulas, os seus efeitos se concretizam nas maneiras de ensinar
arrogante para alguém ou nos desejos humildes de aprender junto
— Querida professora, a mim parece
importante chamar a atenção para quantas e quantas vezes sucumbimos frente a
falas destrutivas e desesperançadas, que nos fragmentam e nos implodem em
pequeninos pedaços voadores, transformando em poeira nossas tentativas íntimas.
Nas muitas e mais tantas oportunidades em que isto acontece, não o sabemos se
ocorre por intenção deliberada ou por não sabermos pensar e sentir diferente.
Guardamos silêncio para o enfrentamento final quando o bem vencerá
definitivamente o mal. Eis o imobilismo na crença que haverá somente um embate
e que todos os desgastes dos afrontamentos anteriores se dão sem razão. Ao
assumir uma posição critica e não lírica deixamos de assumir os defeitos e
dificuldades dos outros para estabelecer parcerias razoáveis de comprometimento
com a esperança, dentro de uma práxis libertadora do outro em mim que retorna
ao outro que está fora de mim.
Não há fadas ou benfeitores, todos precisamos caminhar com as próprias pernas, errando ou acertando que
diferença faz, nos basta por ora o movimento. Parando, vez que outra, para estabelecer
diálogos íntimos, enfrentamentos pessoais, fixando regras de
ação e deixando o coração livre para voar os maiores e melhores sentimentos da
esperança. Não se deixar vencer pela insônia do medo e ficar escondido.
Levantar da cômoda cadeira e virar o vinil, tocar o lado B, movimento e reflexão, quanta sonoridade no vinil, nem tudo que
é novo supera em qualidade o antigo
— Não se opta pelo novo apenas como consequência
da novidade, decide-se pelo novo através da reflexão que temos do velho e do
desejo de fazer nascer diferente do antigo.
— Concordo, Lia, aquilo que é novo, a
notícia ou a colheita, não nos embaraça tanto, quanto o novo que chega pelas ideias
de fazer diferente. Não se diz querer o novo das ideias por astúcia ou
ingenuidade, pois tanto uma como a outra farão da novidade mentiras diárias.
Cresceremos com as ideias do novo fazer e pensar, na discussão permanente entre
mim e o eu, entre o eu e o nós, entre o nós e o todo, entre o todo e o que repito
que é meu, pois sempre retorno ao início que sou eu. Minha dor não é nova, mas
meu sorriso está diferente. Estou refletido em mim mesmo, clareando e
esclarecendo minhas próprias perguntas, Sou astuto,
ingênuo ou progressista, por ora, já me basta responder por está
investigação, permanentemente atento, mesmo que sofrendo muito com o esforço,
mas em movimento.
Somos energizadas ao ouvi-lo,
acrescentaria eu, que superando estes papéis mágicos e autoritários, precisamos
de novos olhares sobre o nosso quê fazer na escola, sacudindo a poeira do tempo
e descobrindo aos poucos um novo eu que já existia, permanecia escondido pela
poeira da imperturbabilidade ingênua ou solércia medrosa
— Professor, por favor, sente-se. Vamos
continuar.
O professor Paulo senta-se calmamente
na fórmica verde e menos dura e menos fria da sua cadeira pedagógica, se eu
pudesse acabaria com a pedagogia. Pior que a possibilidade de matar as pessoas,
é a maneira como transforma todos em bonecos de pau, É
apenas parte da contenda, É traição, Sinceramente não sei se a pedagogia é uma traição, ou seu
uso ou desuso, não esquecendo da intencionalidade, desvela as diferentes
concepções de mundo que cada pedagogo carrega consigo, Por acaso somos pedagogos, Por acaso ou por intenção, O que é
ser um pedagogo, Qual seu objeto de estudo,
O que é afinal a pedagogia, Em verdade vos digo: ela é uma ciência pensada para dar
conta de muitas ciências dentro de uma instituição chamada escola, Aí começa o emaranhado, o lio, Como podemos dar conta de todo o saber científico para
ensiná-lo na escola, Criamos os programas,
os conteúdos, os métodos, as estratégias, Eis
o começo da traição aos miseráveis.
Sei, que através dos tempos, de acordo com os diferentes
momentos históricos, tivemos construções importantes na pedagogia: com o
sentido de transformar as práticas coercitivas, disciplinadoras, autoritárias.
Podemos citar Gramsci com sua pedagogia crítica, Frenet com a escola nova,
Makarenko com a pedagogia socialista, Paulo Freire com a pedagogia libertadora.
Teria outros a recitar, mas me interessa perguntar, Eles
foram traidores, Foram traídos, me
responde o professor do corredor, O que pensas
deles, tento envolvê-lo, Todos eles pensaram
em uma nova escola a partir da utopia da construção de sociedade baseada em
princípios solidários, onde a pedagogia estaria a serviço da construção desse
ideário, minha provocação está aceita, O que
deu errado, Olhamos para o mundo, mas basta
olhar para a África, América Latina, veremos a fome, as favelas, as
desigualdades extremas e, talvez, tenhamos alguma resposta, Os pedagogos não estão preocupados com justiça social,
estão treinando recursos humanos nas grandes corporações, Assumiram seu papel de amestradores de mentes e
adestradoras de corações.
Não deixo que se afaste desta discussão
lembrada, O que deu certo, para a meio
caminho e responde com outra pergunta, Ou o que
poderá dar certo, Queremos fazê-lo, e
talvez, assim, teremos uma pedagogia da esperança, O que é possível fazer em uma sociedade onde a praga do consumismo
e da corrupção avança até nos projetos dos governos da esquerda, Como pensar em solidariedade e, principalmente, como
construir os conceitos de justiça e ética numa sociedade dominada pelo
consumismo e individualismo, Concordo, mas
não basta fazermos a leitura da realidade e dos saberes existentes em
determinada comunidade, Até onde precisamos
ir, Ao céu e inferno, precisamos compreender
como quem interpreta a sua própria realidade, não há outra saída, creio, a qual
não seja estar junto do povo, falar, dialogar, aceitar, meter a colher, mudar
nosso modo de vê-los, deixar que nos ensinem e nos toquem, os criadores de
monstros, Fazer, não para teorizar em cima,
relatos em seminários, mas para mudar a nossa vida, muito mais que os
opressores e que se dizem: vítimas, Pensando
assim a pedagogia não é uma traição, Claro,
ela pode ser uma ferramenta de mudança desde que assim o façamos, ou melhor,
desde que assim a entendemos, mas tudo isso exige disciplina e método, Dialético, Com toda
certeza, O abismo nos espera, E nós, a quem esperamos, Um
cavaleiro inexistente ou o último vôo do flamingo, Quem sabe. Paro meus devaneios
— Professor Aguinaldo, permita-me uma
pequena observação.
— O que foi Marko?
— Professor Paulo, o senhor estava
descrevendo a esperança...
— Caro Marko, a esperança no homem e na
mulher, independentemente da maneira como se manifesta e se diz pertencente e
querendo a humanidade que nos habita, é permanentemente mobilizada para recriar
as condições humanas de ser mais. Esperar o que se deseja é o natural, a
necessidade que transcende a biologia e vem se assentar em nossa condição
humana, no desejo que existe na palavra e na reflexão que impregna nossa ação.
E é esta palavra carregada com nossos desejos que aviva a práxis voltada para o
humano que se quer sendo mais humana, recriadora das possibilidades e
oportunidades que nos aproximam. Sonhar esperança é pensar a vida com um chá
refrescante de hortelã na xícara, em nossas mãos, quentinho e aconchegante, que
necessita ser sorvido, tomado delicada e decisivamente, sem esperar que amorne
ou esfrie. A esperança do chá está na sua delicadeza e na sua maneira diferente
de observar e influir na vida, na saúde da existência, na ausência de agressões
e resultados inflamados por fármacos pedagógicos tirânicos e imediatistas.
A pedagogia antibiótica se revela
eficaz para acabar com o analfabetismo porque acaba com o analfabeto. Antes dos
conteúdos está o amor capaz de nos aliviar aos poucos um pouco mais, antes que
o tempo veloz nos engula e nos impeça de estarmos juntos, novamente,
descobrindo que o amor não é paz, mas a contradição do outro e da outra em mim
mesmo. Assim, na diversidade, deveríamos ajudar o mundo a mudar
— O Paulo é um obstinado no crédito que
dá ao ser humano educador.
— Querido Acácio, fico pensando
naqueles e naquelas desesperançadas por pura teimosia, se negam existindo e
fazendo o seu teatro histórico, têm medo de narrar e se negam registrar a sua
biografia, não acreditam que podem formatar a sua própria fábula, se fogem. Não
se acreditam e impedem aos seus discípulos esperançados de se acreditarem, se
jogam de cabeça no abismo da fatalidade e do destino, se proíbem de acreditar
em si e nos outros e outras, se julgam menores ou maiores conforme o tamanho do
interlocutor ou da entrevistadora, estão jogados nas águas oceânicas da vida e
se deixam embalar até o naufrágio na primeira tempestade, que cedo ou tarde
virá. Navegam na desesperança e na aposta imoral que os ventos não mudam, não
circulam, não aumentam, os vagalhões não existem, são frutos da imaginação, e
por isso, também, se impedem de imaginar e sonhar. Os desesperançados têm medo
de encontrar a verdade nos pesadelos das suas fantasias e ilusões opressoras,
teimam que a esperança não existe como um ato de mudança, como um fato do
cotidiano, como uma xícara com chá de hortelã.
O destino pode ser torcido e
retorcido até a dor intensa da consciência ou ficar dominado moralmente pelos
desatinos do medo. Em verdade vos digo: Não
acreditamos no que fazemos porque o que fazemos não vai mudar nada do que
sempre foi assim, não cremos que existe beleza no trabalho de educar com
esperança na palavra do outro que nos educa, juramos jocosamente, Não existe o outro que nos educa, quer gritar dentro
de mim a desesperança maliciosa e ordeira, mas a faço calar-se, Mentira, existimos nos educando juntos, nas histórias
vividas ora com um, ora com outra, nada é igual o tempo todo, mas nem querem
entender
—
Professor Paulo, ninguém aqui, ficaria surpreso ou
atônita se lhes afirmasse que o coletivo de professores não existe com sentido
pedagógico nas escolas, pelo menos, nas quais perambulei nestes trinta e tantos
anos de reuniões, espantos, crises, bolos de aniversário, almoços, piadas,
reclamações, licenças, abandonos. Nunca vi planejamento e sentido coletivo nas
ações pedagógicas, escutei muitos sonhos, presenciei muitas discussões e
tentativas, que não passaram de desejos de uns poucos e poucas. O que nos
impede de existirmos como um coletivo de professores por certo não é a falta de
espaço para discussões pedagógicas. Aqueles de nós que não têm espaço
pedagógico de discussão em suas escolas poderão, justamente, dizer que não é
verdade, a falta de espaços de discussão do pensar pedagógico nos leva ao
isolamento no fazer educação. Mas o que dizer daquelas escolas que contemplam
horários sistemáticos, semanais ou quinzenais, para reuniões pedagógicas e não
conseguem um sentido coletivo. Aqui não estou me referindo ao senso
corporativista, sentimento de classe, mas a um fazer e pensar educação
coletivamente, incluindo, especialmente, pais e mães e alunos e alunas, que têm
o direito de nos dizer qual a educação que desejam, para si ou para seus filhos
e filhas.
Precisamos
escutar o que esperam de nós, professores e professoras. Oramos o discurso
pedagógico do alto do púlpito catedrático, para mostrar-lhes que somente nós
entendemos educação escolar. Nada têm a nos dizer, Será,
Os gestores da escola, seus diretores e diretoras,
desempenham seu papel de desvelar para a comunidade a necessidade de pais,
mães, alunos e alunas críticos em relação ao desempenho dos educadores, Ou será que temos gestores sem direção, apenas,
corporativos, elevando-se no ar só por voar, sem sonhos, lhes basta acomodar os
ventos e os desejos, perguntas, perguntas... Corro atrás de uns goles de
chá preto
—
Querido Marko, invejo quem na sua esperança mobiliza a
realidade a sua volta na busca da transformação, não sou queixoso, minha inveja
não é invejosa, não é melancólica, é alegria. Precisamos pensar e atuar com
esperança e não nos deixarmos invadir pela desesperança do mundo, do outro e a
nossa própria, formatada nos momentos de desilusão com o cotidiano. Criemos com
as nossas mãos e coração o mundo da esperança, da igualdade social, do
pensamento livre e da voz que não se cala, mesmo quando tagarela ou aprisionada
e submetida ao silêncio pelo poder de homens e mulheres sem afetividade na
alma. Saudemos a escola que brilha por estar e se manter sempre atenta à
diversidade, às diferenças, não para jogá-las em um gueto ou em uma estufa, em
uma ação estulta, nem em uma sala de aula, mas para se aproximar do verdadeiro
combate corpo a corpo, mantendo-se ética e verdadeira na sua luta contra um
mundo excludente e falso, que valoriza o ter mais e esconde sob as mentiras das
armas e da mídia a nossa necessidade ontológica de ser mais. Saudemos a escola
que, antes de pensar o que vai ensinar a tantas pobres e ricas almas, não quer
que desapareçam como almas do outro mundo, no cotidiano de avaliações e
aprovações e reprovações cartesianas, mas discute com todos e todas o que
existe e se transforma na fecundidade frágil entre o certo e o errado.
—
É o destino?
—
Por certo, não é o destino, Acácio, mas os atos e
omissões de homens e mulheres que acreditam em si, em vós e, também, em nós,
como sujeitos e sujeitas deste fazer renovador e que pretendem incinerar a
neutralidade estúpida porque curta de inteligência e orelhuda ou mal
intencionada.
—
É indispensável à esperança o coletivo. Não sei, se a
sociedade vê nos professores e professoras um exército de salvação que marcha,
marcha e marcha, também não sei, se nos vemos soldados dessa massa de
seguidores de tarefas, nem tampouco posso afirmar se individualmente somos
convocados para integrar esse contingente salvacionista. Não tenho certeza da
existência de um outro exército: o exército do extermínio. Mas afirmo que, se
não nos constituímos no coletivo, somos facilmente cooptados: aliciadas pelo
exército da desesperança, do desamor, do desânimo e das lamúrias. De modo
caricatural se pode dizer que se criam as condições para uma grande escola de
gritos e silêncios.
Interfere o
professor Adail, olhos arregalados parecendo assustado com a ousadia própria.
Começo a me sentir envolvida nesta conversa de esperança e de fazer, quero a
possibilidade da esperança, preciso afastar este cansaço que imobiliza,
arredar-me deste atribuir ao destino tudo o que acontece
—
Professor Paulo, partindo desta visão de construção
coletiva fica mais fácil entender o aprendizado por ciclos de formação, onde o
todo interfere na construção do indivíduo, e este, por sua vez, sente-se parte
integrante e necessária nestas construções coletivas, capaz de se construir,
bem como, constituir o outro.
—
Bem como, o aprendizado nas totalidades da escola para
jovens e adultos.
—
Como organizar um coletivo com visões de mundo tão
diferentes?
—
Quanta conversa vazia, só produzimos na prática um
imenso vácuo.
—
Perco minutos, horas das minhas aulas discorrendo
sobre as maneiras, ou melhor, as nenhumas maneiras que têm. Falo, falo, falo e
nenhuma reação.
—
Chego a atingir os limites do conselho: Quem não quer
estudar fique em casa! Demarco com precisão, efetuando exercícios de tiro com
canhões, torpedos ou outras armas: Não precisa vir! Olhem o exemplo, desta
menina morta em assalto, morte de bandido!
O fazer do
mesmo jeito atravessa os séculos: é romano e uma doutrina filosófica, sua
instituição clerical. Os dogmas atravessadores da sua alma são universais,
bancários e constituem sua força e resistência, faz de muito longe o tempo em
que andava descalça. Ninguém merece morrer, nem bandido feito bandido pra não
comer lixo
—
Esperar que o vazio venha a ser preenchido pela
ingênua esperança que vem carregada pelos braços, suor e sangue dos outros é
também querer ser virtuoso pela virtude do outro que tal. Quando nos imaginamos
em movimento, na verdade, estamos de braços cruzados. Uns goles de chá de
camomila por certo nos deixariam os sentidos mais tranquilos, para acreditar,
não apenas no que vemos, mas também naquilo que desconhecemos, que não está se
enxergando.
Quem sabe
uns goles de jazz ou bossa nova nos devolvam sentidos adormecidos, o Paulo
poderia acrescentar, e lembro de perguntar da humanidade, aos ouvidos que
sentem Charlie Parker através do vinil
—
Professor Paulo, não nos basta falar da esperança, nós
precisamos agir com a esperança dentro e em nosso entorno. O Marko nos fala de
dois coletivos que são um só coletivo pedagógico e que precisam ser educados
como um só. Como ter esperança na educação de um coletivo que não se enxerga
opressor, opera o poder na escola e se diz vítima?
—
Esse Adail precisa pegar uma turma de primeiro ciclo
na obrigação de alfabetizar trinta pequenos demônios. Ficar um semestre com
eles e vir aqui discursar! Alunos de inclusão, depois vem dar discurso!
Já não
sabia se isso foi resmungo de indignação ou comentário de provocação. Ninguém
está a dizer que é fácil e que a um grito de, Camaradas,
todos pegaremos em armas contra o desumano e perverso, até deveríamos, mas isso
não se dá... por enquanto
—
Querido Adail, é urgente lutar e lutar por nossos
sonhos. Uma educação que educa para a ruptura dos paradigmas, que educa para
decisões éticas por opção e não por imposição. Uma educação que educa com o
coração e encara frente a frente o difícil e o fácil, sem medo de ser do lado
dos oprimidos, dos feios e das feias, sem deixar de ser boa e gostosa para os
meninos e meninas bonitas e ricas, perfumadas com talco importado,
transformando em poesia as ilusões crescendo pela estrada que é andada. Cada
dia, um novo dia com carinho, com alegria, com uma educação cada vez mais interessada
e criativa, mas uma preocupação inventiva que não venha apenas da boca pra
fora, metafórica, mas que precisa servir sem donos que preguem o medo, tremendo
de cansaço com a vida e tristinhos de tamanha vontade de consolar.
Não
conseguimos ir além de indicar outra educação e mais outra diferente, enquanto
continuamos indo às compras, à guerra. Devoramos até a destruição. Precisamos
fazer sobrevir ao desejo novas formas de educar nos enchendo do querer e do
fazer, pendurar a preguiça no varal e abandoná-la ao sol para secar. Tornar
possível que as cacimbas do lençol de água transbordem até que o olho-d’água,
nos fitando, diga-nos que podemos crescer assim, aos turbilhões, molhados de
humanidade. Mas a cacimba não se transborda por decisão histórica, julgamento
do tempo, há de ser escavada até um lençol de água. Necessitamos criar as
condições para uma boa escavação ao escavar em baixadas úmidas ou no leito de
um rio, na qual a água se acumula como num poço. Chega de escavar na
esterilidade seca e morta dos desertos, basta de falar sem ser ouvido ou
entendido às almas murchas e secas, esvaziadas dos desejos de viver
coletivamente. Criemos com nossos alunos e alunas o encanto por este novo viver
e educar. Procuremos terras férteis para cavar e escavar até que se formem os
poços de acolhimento e recolhimento às sementes germinantes do ser mais
—
Sendo necessário, caminhemos sozinhos os primeiros
passos e aproximando-nos ou deixando-nos chegar por um outro alguém já não
estaremos desacompanhadas. Iremos dessa maneira tecendo a teia de um fazer
diferente, construindo uma história diversa dos choros e das reclamações de
quem chega, no seu final do adeus temporal, sem os sabores intensos e coletivos
da vida,
Os
professores Marko e Paulo se olhavam, procuravam pelo olhar do professor Adail,
com um pequeno sorriso nos lábios como se tudo tivesse sido pensado num
coletivo cúmplice de três mentes educadoras, na esperança de formar pensamentos
e ações coletivas. Incluindo nas almas educadoras, que não se colocam
antecipadamente contra qualquer atitude de pensar mudanças, a possibilidade de
se educarem numa perspectiva diferente, no sentido da solidariedade, não no
sentido da solidariedade ingênua, em que um afago, um sorriso, um olhar irá
acabar com o sofrimento e a dor da fome, da falta de saúde, da falta de
moradia, da falta de se ver e ser visto como um ser humano da humanidade
histórica. Precisamos nos educar na solidariedade participativa, libertadora,
pensando nós mesmos e o mundo, agindo entre nós e com nossos alunos no mundo,
sobre os gritos e os silêncios que nos fazem passar de fora para dentro,
penetrando e continuando em mudança, fugindo da mistificação do real, da
mastigação do social, olhar e enxergar
¾
Não aceitar a cegueira fácil da acomodação e da
resposta simples, dócil, ingênua e propensa a confiar que no fim tudo se
ajeita.
¾
Necessitamos contrariar conceitos seculares, que,
ainda hoje, se arrastam entre nossos pés e vendam com tarjas invisíveis nossos
olhos, quando aceitamos sussurros e insinuações estabelecendo que os pobres,
que encontramos em nossas escolas, só o são pobres porque preferem pedir a
trabalhar. Na hipótese de realmente acreditarmos nisso, pensamento fascitoide,
precisamos enxergar o nosso entorno como nunca antes o fizemos e fazer
perguntas simples a nós mesmos.
¾
Quanto em quilômetro andará por dia, puxando o seu
carrinho, aquele papeleiro como se o cavalo fosse? Por certo, faz mais que eu e
o carro, entre o crematório público de sonhos e minha casa!
¾
Calma, Paulo, a reunião nem mesmo começou e já queres
nos transformar em réus confessos!
¾
Quanto de lixo, resíduos de nossas casas, aquela
mulher e a adolescente conseguem recolher por dia de trabalho, tocando o cavalo
que puxa a carroça?
¾
Alguém precisa se ocupar dessas coisas!
¾
O consumo das vidas é tão intenso que obrigamos os
catadores a se especializarem. Nos dias de hoje, temos os catadores de lata,
outros só catam papelão, vidros quebrados ou não, mas temos também os
catadores, como aquelas duas meninas na carroça que só carregam os nossos
restos da comida refeitada.
—
Gente, chega! Vamos guardar os nossos argumentos
teóricos para o momento da discussão pedagógica.
—
Não são argumentos teóricos: são sonhos! Desejos veementes
do espírito desses homens e mulheres que vivem a vida que tu e eu não
conseguimos, acovardamos! Preferimos a escuridão mesquinha das disputas nas
gramáticas, mapas, datas, bolas e tabuadas.
O professor
Aguinaldo não consegue dissimular a fraterna admiração que nutri por Marko e
Paulo. Não cansa de repetir que a re-leitura da história da nossa escola irá
reverenciar duas pessoas tão especiais, dois professores bruxos do
amor pedagógico, mas o corpo dos professores começa a se inquietar com muxoxos
nervosos. Consultam a todo instante o relógio, nosso algoz permitido. Somos
indivíduos sem prazer no coletivo, opomo-nos por meio de palavras de protesto a
inexistência de um trabalho solidário. Nas oportunidades que se apresentam por
inércia, ou por uma tentativa intencional de reflexão coletiva, fugimos para os
nossos compromissos solitários e as nossas queixas de um queixume eterno, a
falta de tempo, a falta de condições, a falta de um salário digno, a falta de
saúde, a falta de juventude, a falta de felicidade, a falta de crer e querer, a
falta de dinheiro, a falta de filhos, os filhos em excesso, a falta de consolo
em amigos de longe ou de perto, a falta de fé e sonhos possíveis de sonhar, a
falta de feriados e pontes e feriadões, a falta de beleza, Como conseguir ser uma pessoa normal e, simplesmente,
voar
— Professor Paulo, no momento da sua chegada, estávamos
lembrando de algumas situações administrativas que estão ocorrendo e com
certeza interferindo no pedagógico.
Todos se
voltam para o diretor Aguinaldo como pacatos cidadãos chamados à atenção, de
novo não me sinto à vontade. Está estrada não vai dar em nada, não sou feliz e
não sou louca, tento não ser uma normal que senta na fórmica e chama um por um,
uma por uma, para mostrar um caderno e as cópias do quadro, Existe razão para colecionar certos e errados e cadernos,
ninguém animada para responder.
Estamos transformando ou fabricando bonecos, precisamos decidir, a
fenda vem nos engolindo, nossa morte é certa.
E eu, sei
quem sou, Será que sei, mesmo
1ª parte
2ª parte
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