domingo, 8 de janeiro de 2012

VI - General Calçacurta


Envelhecer deveria ser coisa de pobre

baitasar

Somos as duas restantes da família do Generalíssimo. Após a missa de réquiem - depois dos primeiros sete dias do encarceramento perpétuo do General - não restaram muitos amigos. Os inimigos, também, recuaram. Na saída do santo ofício poucos cumprimentos, quase ninguém parou para saudação de cortesia e pêsames. Saíram rápido às ruas. As praças não se encheram de cartazes.
A vida continua enquanto brinca de amarelinha.
Eu e Moriá vamos em silêncio ao carro. Cada uma com as suas memórias e jeito de ver o que vai pela frente. Não quero mais olhar para trás. Chega. Os retratos da vida passada estão arrumadinhos em álbuns da família. E lá vão ficar. Fotografias amareladas e memórias submersas. E assim precisam permanecer. Decido que eu recomeço: hoje. Antes, quase todos os feixes da vida estavam nas mãos do Calçacurta. É um buraco em que não quero mais estar, alguém com posse absoluta sobre mim. Jamais me encilham de novo. Nem milico.
Está bem, houve um tempo em que foi apropriado ser a mulher do General
─         Moriá, está quente, não?
─         Um pouco, Clara.
Está bem, foi mais que isso. Às vezes, chegou a ser divertido. Mas o General estragou tudo, as violências e ausências fizeram dele um homem inconveniente. Descuidado comigo, ausente da família
─         Moriá, você está com fome?
─         Não, Clara.
Na travessia do tempo engordou e envelheceu. Acumulou mau hálito, varizes, dores e gritos no sono. Nesse dia-a-dia de enganos fui descuidada e enterrada. Sem saída, submergi aos ódios da hierarquia. Vivia pelo avesso. As aparências é que contavam
─         Moriá, por favor! Senta direito!
─         Clara, me deixa...
Num daqueles dias de desenganos, em conversa com o espelho, estava convencida que a vida era ruim demais, e a imagem de mim mesma refletida com comodidade, replicava que o meu medo congelava os sonhos.
Arregalei os olhos àquela imagem medrosa, ali, refletida na janela do carro
─         Vai se repetir essa baboseira de amedrontada.
Eu sei, somente os imbecis se deixam enganar com essa história de medo, coisa de cocô chorão. E sem desgrudar os olhos do espelho admiti com o rabicho do olhar
─         Confesso que foi boa, muito boa essa estação de paparicos.
O Calçacurta me conhecia melhor que a si mesmo. E aquele espelho, também
─         Você adora receber mimos e os cuidados exagerados com que se tratam pessoas queridas.
─         Eu me sentia desejada pelas pessoas de bem.
Não me permitiam nenhuma paz
─         Não consegue decidir, se é ruim ou bom.
─         O quê?
─         Estar comigo...
Sem nenhuma palavra, aceitei que tampouco conseguia desistir desse tempo. Abatia parte da dívida das torturas e cicatrização forçada como aceitável. O troco de uma conta maior. Era bom, mas também foi ruim, se é que me entendem. A imagem do espelho compreende, e o General, também. Tudo bem, isso me basta por enquanto.
Tempo de excessos, o General foi forçado usar da força para acalmar uns que outros, eram dias de uma guerra escondida, tempo de desaparecimentos
─         Eu também fui vítima!
─         O que foi, Clara?
Olhei para os lados e ninguém, eu estava só. O carro patinava por sobre corpos nus e destroçados. Rezava para minha Virgem e pedia que não atolasse. Eram muitos restos
─         Minha Santa, rogai por nós pecadores...
O Calçacurta de certa feita desapareceu dias e dias. Nenhuma notícia. A cada batida na porta ficava aos sobressaltos. Foi horrível. Não desejo nada parecido para ninguém
─         Clara!
─         O que foi, Moriá?
─         Existe vida depois da morte?
E quando foi um dia, desses dias bem comuns, em que não apostamos um tostão furado, vindo do nada, o homem me apareceu. Sem explicações. Entrou porta adentro, foi à casa de banho e dormiu sentado na bacia sanitária. Acredito que isso possa acontecer com muitos desses desaparecidos, um belo dia vão retornar como se nada houvesse acontecido, cheios de merda por dentro, feito o General. Talvez alguns retornem com manchas de batom ordinário e fedentina das putas baratas. Nunca se sabe
─         Não se sabe, Moriá, mas acredito que um imenso jardim de delícias nos espera.
─         Lá vamos encontrar a felicidade perdida?
─         Claro, Moriá.
Estes desaparecimentos me foram úteis e permitiram ficar acalmada das visitas de quarto do Calçacurta. Ele desaparecia e a esposa doente revigorava. Não havia discussões, aliás, não falávamos mais. O casamento foi uma caricatura muda. Trágica e cômica. Um entrava e eu saia.
Não, vocês não estão ficando loucos tentando entender o que aconteceu. As coisas têm um passado porque fazem lembrar das mãos que apertam, mas não têm memória, não ambicionam alguma outra coisa que ficar disponível de pernas abertas. Sem pecados. Apenas esperando. A remissão é para todos e os meus ódios e rancores são ilimitados.
Sinto dores nas costas. Para distrair a expiação, talvez, assim contemplativa me deixe em paz, levo a unha do indicador direito à boca. Meu vício de roer unhas.
As lembranças se acovardam e não ficam firmes. Precisam de um jeitinho para que não incomodem tanto. Minhas dores são mutáveis e controladas com a perda de parte dos dedos
─         Clara, estou com saudades.
─         Eu também, Moriá.
Fui colocada em canos como a água para fluir pelos lugares escolhidos. Percorri o mapa das necessidades e utilidades do Calçacurta. Eu consegui me anular de sentimentos inúteis. Tente
─         Clara, o que a gente faz agora?
─         Continua vivendo, Moriá.
É isso, um quadro abreviado de conveniências. Podemos aconselhar nossa memória.
O tempo nesse carro não passa.
Se pudesse ia logo pelas ruas, engolindo de uma só vez, com os meus passos, o caminho até em casa. Continuamos onde estamos: sentadas no banco de trás. As janelas fechadas e a claridade da tarde, lá fora, nesse imenso mundo depravado. Quero sentir o calor bizarro deste alvoroço e baixo um dos vidros. O vento e a luz me tiram do carro. Estou longe, em fuga. Arredada em gritos e ameaças, mas o que eu queria muito é estar arretada. Demorar-me excitada pelo apetite da carne
─         Himineu!
─         O que foi, dona Clara.
─         Falta muito?
É um belo homem para viver nas sombras. Tem uma bela nuca. Escondido. E no mesmo instante ao alcance do toque das mãos, da língua de fogo e das fragrâncias da perturbação inquieta do corpo
─         Tenho muita tesão, Himineu.
Não escuta, ou se faz de surdo, ninguém me ouve. Começo a desconfiar que não existo, sou apenas uma estrela
─         Sinto dores pelo corpo, descargas e náuseas, uma vontade imensa de abrir as pernas e ser enfiada com força no meu fundo mais fundo.
E vomitar.
Essa ânsia de vomitar depois de ser trepada me nasceu das enfiadas do General. O tempo dos encantos, por aquele mancador tão vigoroso e determinado, acabou logo. E ser deixada de lado, no escuro, fez diminuir minhas vontades de ter as carnes devoradas. Aprendi a me devorar. Manducar o General deixou de ser vontade e passou a ser obrigação. A cada vez um pouco menos. Quando o homem se vinha mancando pra cima, fazendo desaparecer sua cabeça entre minhas pernas, babando meus pelos, e se oferecia todo mole, tinha vontade de empurrar o defunto e gritar que não queria nenhum peso morto por cima. O General ficava surdo. Puxava minha cabeça e me habituava com a fadiga de mudar carne morta em viva. Meus lábios amorteciam. Enquanto ele se derramava, e fazia aos gritos de puta
─         A mais puta de todas!
Eu, num esforço para não deixar passar pela garganta, tinha que responder com mais força, chupar e fazer voltar do estômago, até fazê-lo parar de gritar. Saia correndo para vomitar. Na volta já o encontrava de barriga pra cima, com a lombada do abdômen a subir e descer. A cela sem aberturas ficava cheia com os seus cheiros de desaparecidos e roucos de indiferença. Voltava a bacia sanitária para vomitar a assombração. Não ia nada bem. O fardado usava meu corpo como usava o povaréu, não tinha mais respeito.
Olho pelo cantinho do olho e a menina vai pelo caminho com o olhar triste, jogado através da janela esfumaçada. Não me vê. Estou a engolir meus fluidos. Cruzo as pernas e sinto o calor das coxas se ateando. Tenho na vontade o desejo daquelas mãos que guiam as rédeas do cabriolé. Grandes e saborosas. Olho-as com gula. Sinto que tenho apetite e apego as boas iguarias. Minha garganta se arranha. O resto do andamento do caminho eu faço flutuando em jatos de porra. Salto de um para outro, uma perna depois outra. Estou leve e alforriada.
Chegamos em casa
─         Finalmente, Himineu.
─         O trânsito estava terrível, dona Clara.
Fim das cerimônias, que comece a consagração da vida.
A menina resmunga qualquer coisa como estar muito cansada e vai para seu quarto. Junto os jornais e ainda vejo, disfarçado de guerreiro, o civil Himineu. Ele se mantém em posição de guarda junto ao corpo do sepultado
─         Himineu, por favor, sai dessa posição de sentido.
─         Sim, senhora.
─         Acabou, Himineu, daqui para frente, vida nova.
O soldado que não é milico, desaparece calado. Sai por aí, alma penando pela casa, ele sabe que não é hora de partir. Ainda não foi dado o último suspiro antes do delírio.
De repente me passa desconfiança que não vou durar muito por aqui. A passagem do tempo está me cansando. Sei lá, outro pressentimento entre tantos outros. Não tenho planos de perder a frescura e o viço tão rápido. Envelhecer deveria ser uma coisa de pobre, esses coitados não têm muito por que viver. Levam uma vida de falta de tudo. Mesquinhos. Faltam dentes na boca, não cheiram bem, não têm onde morar, nem são bonitos. O que têm na conta dos exageros são os filhos. Tenho pena dessas mulheres miseráveis, uma trepada a cada nove meses e um filho na barriga. Pena que o General se foi. Esse teria colhões para fazer o que deve ser feito. Tenho certeza que iria autorizar a raspagem dos musgos que vêm em pencas dessas mulheres pobres. São abusadas e fodidas todo santo dia e têm filhos escorregando pelas pernas enquanto carregam outros nos braços. Tenho muita pena delas. Hoje, estão com um homem, amanhã já estão com outro. Não são como nós que casamos e isso dura até que a morte separe. Aconteça o que acontecer o casamento é para sempre.
Acordei tarde para esse problema da vida na nossa sociedade anônima. Estava cega com os meus problemas. Tem muita gente sofrendo de verdade, por aí. Temos muitos pobres. Mestiços em demasia. São muitos miseráveis fazendo muitos filhos miseráveis. Coitadinhas, precisam de cuidados desde pequenininhas
─         Façam as ataduras e pronto, com o tempo vão deixando de nascer.
Assim, se oculta o que trazem dentro de si — Quem vê a cara vê o coração — e juntou as mãos como se fossem rezar. Pensou que lhe faziam falta esses momentos de homilia. No fundo todos queremos boas notícias e rezar é uma coisa boa, tão necessária quanto o equilíbrio das emoções, limpar-se.

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Leia também: 
V - Um corpo gelado e duro, General!
VII - Onde estão nossos filhos?

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