sábado, 14 de janeiro de 2012

XII - General Calçacurta


Já me basta ter o que comer e onde dormir

baitasar

Estou começando a ficar desconfortável nesta posição de mastro da bandeira. Ao desânimo soma-se a vontade de ir ao banheiro. Acho que o soldado Pedro Jacaré não vem. Assim, não vou ter rendição de descanso. Não tenho autoridade além desse subordinado, já deveria saber que com esse sujeito não basta acordo de palavra nem adiantamento do soldo. Tem que ser no terror e na chantagem. Se eu pelo menos houvesse assistido algumas torturas, hoje: eu saberia com se faz. O General sempre recomendava ter um segredo de alguém bem guardado. Descansando na memória. Um dia a chave se torna útil e a fechadura apropriada.
Agora, fico aqui me espremendo e esperando pelo Pedro Jacaré, soldado que não dá os ares da sua graça. Não dei ouvidos ao aconselhamento do General morto. Bem feito. A vingança se serve fria e o General me meteu numa fria.
Combino com minha vontade que espero o sujeito mais um pouco.
Depois deste tempo de espera, não deu mais. Cheguei no meu limite. A friagem da noite nevou os pés e fez encher a bexiga. Estou desacostumado, faz tempo que não tiro serviço de sentinela. Vou ao banheiro. Saio devagar, olhando pros lados de soslaio, com se estivesse a cumprir outra tarefa secreta. E por não ser secreta precisava fazer parecer que era secreta.  Tudo que parece não é ou deveria parecer que não é. Saio parecendo que estou chegando.
No banheiro mal tenho tempo de abrir as calças do uniforme e segurar a mangueira
─         Onde é o incêndio? — molho as mãos, as calças e as botinas.
Não sei como voltar pro meu posto de guarda defunto, estou mijado. Volto pra baia, tiro as calças e sento no curativo sanitário.
Fico pensando que não vai ter jeito, saio de cuecas ou espero a calça secar. Não acredito que me permitam manter guarda do sem-vergonha só de calção.
Bem que ele merece.
Mas no final das contas será a minha bunda estampada nos jornais. Não é uma boa ideia sair assim por aí. Paciência foi a minha única virtude nestes anos de serviço marcial. Não haveria de perdê-la justo agora, em que estou em risco.
Entra um sujeito e vai pra uma das baias. Coitado, parece que vai perdendo os pulmões. Pelo jeito, em breve, volta por aqui como morador. De repente, um barulho enorme: o sujeito estava perdendo o intestino pela parte oposta à cabeça
─         General, o que eu tenho que aguentar por sua causa.
─         Por minha causa?
─         E não é?
─         Vai te foder soldadinho de merda!
─         O que é isto, General...
─         Nada, uma pequena explosão de comando.
─         Entendo, General, o fardo solitário de comandar homens.
E o cheiro, meu Deus, fede mais que o defunto
─         Chupa-racha, que desagradável... esse exala mau cheiro mais que comunista jogado no buraco dos pés do jatobá.

O sujeito deve estar com os dias contados e por indignação espalha o seu cheiro de morte. Passa mais um tempo e vou acostumando com aquela aparência desagradável do ar. O insubordinado do intestino sai batendo as portas sem lavar as mãos.  E nada da calça secar. Aquele aparente conforto do trono, sentado, porta fechada, esperando: começo a fazer pensar na minha condição de desaparecido sem gravidade. Só me falta a fatalidade de desertar em tempo de sossego. A maior vulgaridade na carreira de soldado não é matar ou morrer, mas desistir sem ordens pra desistir. Não, isso não vai acontecer, mostro a bunda e dou à cara a tapa... não sou covarde. Levanto do trono e levo a mão à maçaneta, a porta me esconde. Olho pra baixo e me vejo nu da cintura pra baixo. Os pés apoiados por cima das botas. A mangueira totalmente recolhida e num primeiro olhar não passa de uma pequena torneira de jardim da infância
─         O que faz o medo com as pessoas?
—        O que foi, General?
—        O medo...
—        Quê medo, General? A morte vai lhe deixando frouxo...
—        Chupa-racha, o medo faz do homem uma bichona!
Comecei a tremer de frio
─         Soldado Himineu!
─        Sim? — olhei por cima da porta desconfiado que fosse o General. Não vi alma viva, nem alma morta
─         Aconteceu algo?
─         Quem está aí?
─         Sou segurança do local — enviesei o os olhos para baixo, lá estava o sujeito. Um anão fardado de azul
─         E daí?
─         Acontece que a viúva deu por sua falta e pediu que viesse em resgate.
A viúva havia dado por minha falta e mandou um mini resgate
─         Moço, tive acidente com as minhas águas.
─         Já sei, se mijou!
─         Isso, fiquei na guarda até o limite da decência.
─         Algumas vezes, a decência vem depois das urgências.
─         Eu sei, eu sei...
─         Posso ajuda? — essa operação de resgate iria me custar uma gozeira
─         Obrigado, precisava ouvir isso. — aceitei a ajuda
─         Vai soldado, diz logo... O quê o rapaz precisa?
─         Uma calça...
─         Só uma calça?
─         Sim, trago um uniforme de reforço no carro.
─         Tudo resolvido, já volto.
Sento na guarnição que esperar em pé cansa. Na volta o sujeito me joga uma calça cinza pela porta da cavalariça
─         Obrigado.
─         Soldado, foi o que deu pra arruma.
─         Tudo bem.
─       Por essas horas todos já se foram, tive que traze minhas calças reservas. — o sujeito parecia se desculpar e não parava de falar.
Meu Deus, eu só queria sair dali. Estava por cima dos coturnos e fiquei assim, me equilibrando, fugia daquele chão imundo e mijado. Quando coloquei as calças vi que faltou pano pra cobrir minhas canelas. Enfiei as botas. Não havia como alcançar o final da calça azul e sua listra preta na lateral
─         Senhor?
─         Sim, moço.
─         Elas ficaram um pouco curtas.
─         Imagino.
Abri a porta da baia da cavalariça e vejo a minha frente um sujeito de pouco menos de metro e meio, sob um chapéu de duas abas que lhe cobrem as orelhas. Na cintura leva um cassetete de borracha que lhe desce até o tornozelo, come o nariz lhe cai até o queixo e esconde o bigode de fios brancos. Usa pequenos movimentos da língua de palmo que carrega escondida na boca, pra espantar os pelos daquele bigode de sopa. Vejo que ele conteve o riso. Eu contive o meu
─         Me dê cobertura que vou até o carro.
─         Não tem problema, ajudo no que o moço precisa.
Ele vai até a porta e depois de espiar pros lados faz sinal de positivo. Lanço olhar de agradecimento e me vou por entre os arbustos e pilastras e sombras. Tem uma clareira de grama e luz à frente das câmaras mortuárias. Não vai dar, preciso dar a volta lá por cima, pela escuridão dos apartamentos funéreos. Sem outro jeito vou circulando a estrada. Meio caminho em agachamento, um pouco correndo. Já avisto meu carro. Aumento minha disparada de rastejamentos. Cheguei. Abro o porta-malas
─         Himineu, onde você estava?
─         Tive problemas com minhas calças.
Essa é a viúva. Ela me achou, eu não acredito. Agradeci aos céus aquela escuridão. Não fez perguntas, apenas disse
─         Quando tiver solução para uso de bermudas e botas de soldado precisamos de você, eu e Moriá.
─         Já volto, senhora.
De volta ao serviço — repito pra mim mesmo. Preciso de um banho rápido, pelo menos atirar um pouco de água na cintura pra baixo. Essa noite não é de nenhum divertimento ou qualquer festa. E além do mais, a partir de amanhã não terei mais dono. O segurança de pouco tamanho oferece o vestiário do morgue. Paciência. Volto para as fileiras da tropa de banho tomado. Confesso não ter mais coragem para delírios de dominar o mundo. Já me basta ter o que comer e onde dormir.

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