sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Homem de Espírito (XXXIV)

 Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve

Capítulo XXXIV

UM HOMEM DE ESPÍRITO


Andando a cavalo, o governador dizia: por que não serei ministro, 
presidente do conselho, duque? Eis como faria a guerra... Desse modo, 
poria os inovadores na cadeia...

LE GLOBE 


     NENHUM ARGUMENTO CONSEGUE destruir a força de dez anos de sonhos agradáveis. O marquês não achava razoável zangar-se, mas não podia decidir-se a perdoar. Se esse Julien pudesse morrer acidentalmente, pensava às vezes... Assim essa imaginação entristecida encontrava algum alívio perseguindo as quimeras mais absurdas. Elas barravam a influência dos sensatos argumentos do abade Pirard. Passou-se um mês sem que a negociação desse um passo. 
     Nesse assunto de família, como nos da política, o marquês tinha ideias brilhantes que o entusiasmavam durante três dias. Um plano de conduta não lhe agradava, então, por estar apoiado em bons raciocínios; para ele, os raciocínio só tinham graça na medida em que se apoiassem em seu plano favorito. Durante três dias ele buscava, com o ardor e o entusiasmo de um poeta, levar as coisas a uma certa posição; no dia seguinte não pensava mais nisso.
     A princípio, Julien ficou desconcertado com a lentidão do marquês; mas, depois de algumas semanas, começou a adivinhar que o sr. de La Mole não tinha, nesse assunto, nenhum plano traçado.
     A sra. de La Mole e toda a casa acreditavam que Julien viajava pelo interior, cuidando da administração das terras; ele estava escondido no presbitério do abade Pirard e via Mathilde quase diariamente; ela, toda manhã, passava uma hora com o pai, mas às vezes ficavam semanas inteiras sem falar do assunto que ocupava todos os seus pensamentos.

– Não quero saber onde está esse homem, disse-lhe um dia o marquês; entregue-lhe esta carta. Mathilde leu:

“As terras do Languedoc rendem 20.600 francos. Dou 10.600 francos à minha filha e 10.000 francos ao sr. Julien Sorel. Também dou as terras, obviamente. Diga ao notário para preparar duas atas de doação separadas e trazê-las amanhã; depois disso, mais nenhuma relação entre nós. Ah! Senhor, eu merecia tudo isso? O marquês de La Mole.”

– Agradeço-lhe muito, disse Mathilde alegremente. Vamos morar no castelo d’Aiguillon, entre Agen e Marmande. Dizem que é uma região tão bela quanto a Itália. 

     Essa doação surpreendeu extremamente Julien. Ele não era mais o homem severo e frio que conhecemos. O destino de seu filho absorvia antecipadamente todos os seus pensamentos. Essa fortuna imprevista e bastante considerável para um homem tão pobre fez dele um ambicioso. Já se via, juntando os recursos dele e da mulher, com 36.000 libras de renda. Quanto a Mathilde, todos os seus sentimentos estavam absorvidos na adoração pelo marido, pois é assim que seu orgulho chamava sempre Julien. Sua grande e única ambição é que o casamento fosse reconhecido. Passava o tempo a exagerar a grande prudência que tivera ao ligar seu destino ao de um homem superior. O mérito pessoal estava em moda, na sua mente.
     A ausência quase contínua, a multiplicidade dos afazeres, o pouco tempo que tinham para falar de amor vieram completar o efeito salutar da sábia política inventada por Julien.
     Mathilde acabou por impacientar-se de ver tão pouco o homem que ela conseguira amar realmente. Num momento de irritação, escreveu ao pai, começando a carta como Otelo:

“Que eu tenha preferido Julien aos prazeres que a sociedade oferecia à filha do sr. marquês de La Mole, minha escolha o prova suficientemente. Esses prazeres de consideração e de pequenas vaidades são nulos para mim. Eis que há seis semanas vivo separada de meu marido. É o bastante para testemunhar ao senhor meu respeito. Na próxima quinta-feira deixarei a casa paterna. Seus benefícios nos enriqueceram. Ninguém conhece meu segredo a não ser o respeitável abade Pirard. Irei à casa dele; ele nos casará e, uma hora depois da cerimônia, estaremos a caminho do Languedoc, e só reapareceremos em Paris por ordem sua. Mas o que me traspassa o coração é que tudo isso fará circular histórias picantes contra mim, contra o senhor. Os epigramas de um público tolo não poderão levar nosso excelente Norbert a lançar provocações a Julien? Sei que nessas circunstâncias eu não teria o menor domínio sobre ele, ressurgiria em sua alma o plebeu revoltado. Conjuro-o de joelhos, ó meu pai! Venha assistir ao meu casamento, na igreja do sr. Pirard, na próxima quinta-feira. O picante das histórias maldosas será suavizado, e a vida de seu filho único e a de meu marido estarão asseguradas” etc. etc.

     Essa carta lançou a alma do marquês num estranho embaraço. Era preciso então finalmente tomar um partido. Todos os pequenos hábitos, todos os amigos vulgares haviam perdido sua influência.
     Nessa estranha circunstância, os grandes traços do caráter, impressos pelos acontecimentos da juventude, readquiriram toda a sua força. Os infortúnios da emigração haviam feito dele um homem de imaginação. Depois de ter usufruído durante dois anos de uma fortuna imensa e de todas as distinções da corte, 1790 lançara-o nas terríveis misérias da emigração. Essa dura escola transformou uma alma de vinte e dois anos. No fundo, ele estava provisoriamente instalado em meio a suas riquezas atuais, em vez de ser dominado por elas. Mas a mesma imaginação que lhe preservara a alma da gangrena do ouro, lançara-o na louca paixão de ver a filha ostentar um belo título.
     Durante as seis semanas que acabavam de transcorrer, em alguns momentos o marquês, impelido por um capricho, queria enriquecer Julien; a pobreza parecia-lhe ignóbil, desonrosa para ele, sr. de La Mole, impossível no esposo da filha; e dava-lhe o dinheiro. No dia seguinte, tomando sua imaginação um outro curso, parecia-lhe que Julien ouviria a linguagem muda dessa generosidade financeira, mudaria de nome, exilar-se-ia na América, escreveria a Mathilde que estava morto para ela. O sr. de La Mole supunha essa carta escrita e acompanhava seu efeito sobre o caráter da filha.
     No dia em que foi tirado desses devaneios tão juvenis pela carta real de Mathilde, depois de muito pensar em matar Julien ou em fazê-lo sumir, ele imaginava construir-lhe uma brilhante fortuna. Fazia-o tomar o nome de uma de suas terras; e por que não lhe transmitiria seu pariato? O duque de Chaulnes, seu sogro, falara-lhe várias vezes, depois que o filho único fora morto na Espanha, do desejo de transmitir seu título a Norbert...
     Não se pode negar a Julien uma singular aptidão aos negócios, ousadia e até mesmo brilhantismo, pensava o marquês... Mas no fundo desse caráter existe algo de assustador. É a impressão que ele causa em todo o mundo, portanto deve haver algo de real (quanto maior a dificuldade de perceber esse ponto real, mais ele assustava a alma imaginativa do velho marquês).
     Minha filha dizia-me isso muito habilmente, outro dia (numa carta suprimida): “Julien não se filiou a nenhum salão, a nenhum grupo”. Ele não conta com nenhum apoio contra mim, não tem o menor recurso se o abandono... Mas será isso ignorância do estado atual da sociedade?... Duas ou três vezes eu lhe disse: Não há candidatura real e proveitosa a não ser a dos salões...
     Não, ele não tem o gênio hábil e cauteloso de um procurador que não perde um minuto nem uma oportunidade... Não é de modo nenhum um caráter à Luís XI. Por outro lado, ouço-o pronunciar as máximas mais antigenerosas... Não entendo... Repetiria essas máximas para servirem de dique a suas paixões?
     Mas uma coisa é certa: ele é impaciente com o desprezo, por aí posso pegá-lo.
     Não tem a religião do alto nascimento, é verdade, não nos respeita por instinto... Isso é uma falta; mas, enfim, a alma de um seminarista deveria impacientar-se somente com a falta de prazer e de dinheiro. Ele, muito ao contrário, não pode suportar o desprezo por preço algum.
     Pressionado pela carta da filha, o sr. de La Mole sentiu a necessidade de decidir-se: – Enfim, eis a grande questão: a audácia de Julien o terá levado a querer cortejar minha filha, porque sabe que a amo mais que tudo e possuo cem mil escudos de renda?
     Mathilde afirma o contrário... Não, meu Julien, esse é um ponto sobre o qual não quero iludir-me.
     Houve amor verdadeiro, imprevisto? Ou desejo vulgar de elevar-se a uma bela posição? Mathilde é clarividente, ela logo percebeu que essa suspeita pode colocá-lo a perder junto a mim, daí a confissão: foi ela a primeira que pensou em amá-lo.
     Uma moça de um caráter tão altivo teria esquecido sua condição a ponto de tomar iniciativas materiais!... Apertar-lhe o braço no jardim, à noite, que horror! Como se ela não tivesse outros meios menos indecentes de dar a entender que o distinguia.
     Quem se escusa, se acusa; desconfio de Mathilde... Naquele dia, os raciocínios do marquês eram mais conclusivos do que de costume. No entanto, o hábito prevaleceu, ele resolveu ganhar tempo e escrever à filha. Pois eles se escreviam de uma ala a outra da mansão. O sr. de La Mole não ousava discutir com Mathilde e enfrentá-la. Tinha medo de acabar tudo por uma concessão súbita.

CARTA
“Procure não cometer novas loucuras; eis aqui uma patente de tenente dos hussardos para o sr. cavaleiro Julien Sorel de La Vernaye. Está vendo o que faço por ele. Não me contrarie, não me interrogue. Que ele parta dentro de vinte e quatro horas para apresentar-se em Estrasburgo, onde está seu regimento. Anexo uma ordem ao meu banqueiro. Que me obedeçam.” 

     O amor e a alegria de Mathilde não tiveram mais limites; ela quis tirar proveito da vitória e respondeu imediatamente:

“O sr. de La Vernaye estaria a seus pés, completamente agradecido, se soubesse tudo o que o senhor se digna fazer por ele. Mas, em meio a essa generosidade, meu pai esqueceu-me: a honra de sua filha está em perigo. Uma indiscrição pode causar uma mancha eterna e que vinte mil escudos de renda não reparariam. Só enviarei a patente ao sr. de La Vernaye se o senhor der a palavra de que, no correr do mês que vem, meu casamento será celebrado em público, em Villequier. Logo depois dessa época, que suplico não seja ultrapassada, sua filha só poderá aparecer em público com o nome de sra. de La Vernaye. Quanto lhe agradeço, querido papai, ter-me salvo desse nome Sorel” etc. etc.

     A resposta foi imprevista.

“Obedeça, ou retrato-me de tudo. Trema, jovem imprudente! Ainda não sei quem é o seu Julien, e você mesma o sabe menos que eu. Que ele parta para Estrasburgo e procure marchar direito. Farei conhecer minhas vontades dentro de quinze dias.”

     Essa resposta tão firme surpreendeu Mathilde. Não conheço Julien; essa frase lançou-a num devaneio que logo enveredou pelas suposições mais encantadoras e que ela acreditava verdadeiras. O espírito de meu Julien não vestiu o uniforme mesquinho dos salões, e meu pai não crê em sua superioridade precisamente por causa daquilo que a comprova... 
     Todavia, se eu não obedecer a essa veleidade de caráter, vejo a possibilidade de uma cena pública; um escândalo rebaixará minha posição na sociedade e pode fazer-me menos amável aos olhos de Julien. Depois do escândalo... pobreza por dez anos; e a loucura de escolher um marido por causa de seu mérito só pode salvar do ridículo pela mais brilhante opulência. Se eu viver longe de meu pai, em sua idade, ele pode me esquecer... Norbert desposará uma mulher amável, esperta: o velho Luís XIV foi seduzido pela duquesa de Borgonha...
     Ela decidiu obedecer, mas evitou falar da carta do pai a Julien; este caráter feroz poderia ser levado a alguma loucura.
     À noite, quando comunicou a Julien que ele era tenente dos hussardos, a alegria dele foi ilimitada. Podemos imaginar isso pela ambição de toda a sua vida e pela paixão que tinha agora pelo filho. A mudança de nome causava-lhe espanto.
     Afinal, pensava, meu romance acabou, e cabe a mim todo o mérito. Soube fazer-me amar por esse monstro de orgulho – e olhava para Mathilde. O pai não pode viver sem ela e ela sem mim.  

continua página 310...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: Um Homem de Espírito (XXXIV)

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