em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
III(u)
continuando...
Um dia, num dos mais longos períodos de calma que já atravessara sem ser assaltado por novos acessos de ciúme, aceitara um convite para acompanhar ao teatro a princesa Des Laumes. Abrindo o jornal para ver o que representavam, o nome da peça: As raparigas de mármore, de Théodore Barrière, causou-lhe um choque tão cruel que fez um movimento de recuo e desviou o rosto.[1] Iluminada como pela luz da ribalta, no lugar novo onde figurava, essa palavra “mármore”, que ele perdera a faculdade de distinguir, de tal modo se habituara a tê-la sob os olhos, tornou-se-lhe de súbito novamente visível e fê-lo recordar-se daquela história que Odette lhe havia contado, de uma visita que fizera com a sra. Verdurin ao Salão do Palácio das Indústrias e durante a qual esta lhe dissera: “Toma cuidado, que ainda hei de degelar-te, tu não és de mármore”. Afirmara-lhe Odette que não passava de gracejo, e ele não ligara a mínima importância ao caso. Mas então tinha mais confiança nela do que atualmente. E justamente a carta anônima falava de amores daquele gênero. Sem atrever-se a olhar para o jornal, desdobrou-o, virou a página para não ver aquelas palavras: “As raparigas de mármore”, e começou a ler maquinalmente as notícias do interior. Houvera uma tempestade no canal da Mancha, assinalavam-se estragos em Dieppe, em Cabourg, em Beuzeval. Imediatamente fez ele um novo gesto de recuo.
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
continuando...
Um dia, num dos mais longos períodos de calma que já atravessara sem ser assaltado por novos acessos de ciúme, aceitara um convite para acompanhar ao teatro a princesa Des Laumes. Abrindo o jornal para ver o que representavam, o nome da peça: As raparigas de mármore, de Théodore Barrière, causou-lhe um choque tão cruel que fez um movimento de recuo e desviou o rosto.[1] Iluminada como pela luz da ribalta, no lugar novo onde figurava, essa palavra “mármore”, que ele perdera a faculdade de distinguir, de tal modo se habituara a tê-la sob os olhos, tornou-se-lhe de súbito novamente visível e fê-lo recordar-se daquela história que Odette lhe havia contado, de uma visita que fizera com a sra. Verdurin ao Salão do Palácio das Indústrias e durante a qual esta lhe dissera: “Toma cuidado, que ainda hei de degelar-te, tu não és de mármore”. Afirmara-lhe Odette que não passava de gracejo, e ele não ligara a mínima importância ao caso. Mas então tinha mais confiança nela do que atualmente. E justamente a carta anônima falava de amores daquele gênero. Sem atrever-se a olhar para o jornal, desdobrou-o, virou a página para não ver aquelas palavras: “As raparigas de mármore”, e começou a ler maquinalmente as notícias do interior. Houvera uma tempestade no canal da Mancha, assinalavam-se estragos em Dieppe, em Cabourg, em Beuzeval. Imediatamente fez ele um novo gesto de recuo.
O nome de Beuzeval lembrava-lhe o de outra localidade daquela região, Beuzeville,
que trazia ligado ao primeiro por um traço de união um segundo nome, o de Bréauté,
que muitas vezes já vira em mapas, mas que pela primeira vez notava ser o mesmo de
seu amigo o sr. de Bréauté, a quem a carta anônima apontava como antigo amante de
Odette. Afinal de contas, quanto ao sr. de Bréauté, a acusação não era inverossímil; mas
no tocante à sra. Verdurin, era impossível. Pelo fato de mentir às vezes, não se inferia
que Odette nunca dissesse a verdade e nas palavras que trocara com a sra. Verdurin e
que ela própria referira a Swann tinha ele reconhecido essas brincadeiras inúteis e
perigosas que, por inexperiência da vida e ignorância do vício, às vezes fazem as
mulheres, cuja inocência revelam e que — como Odette por exemplo — se acham mais
afastadas do que quaisquer outras de experimentar uma afeição exaltada por outra
mulher. Ao passo que, pelo contrário, a indignação com que Odette repelira as suspeitas
que involuntariamente lhe provocara por um instante a sua narrativa se enquadrava a
tudo o que ele sabia dos gostos e do temperamento de sua amante. Mas naquele instante,
por uma dessas inspirações de ciumento, análogas à que traz ao poeta ou ao sábio, que
só dispõem de uma rima ou de uma observação, a ideia ou a lei que lhes dará todo o seu
poder, Swann lembrou-se pela primeira vez de uma frase que Odette lhe dissera dois
anos antes: “Oh!, a senhora Verdurin, agora sou tudo para ela, sou um amor, ela me
beija, quer que eu a acompanhe a toda parte, quer que a trate por tu”. Longe de ver
então nessa frase qualquer relação com as absurdas palavras destinadas a fingir aquele
vício e que Odette lhe repetira, tinha-a ele acolhido como prova de calorosa amizade.
Mas eis que agora a lembrança dessas expansões de carinho da sra. Verdurin vinha
bruscamente ligar-se à lembrança da sua conversação de mau gosto. Não mais podia
separá-las em seu espírito, e as viu também unidas na realidade, emprestando esse
carinho algo de sério e importante àqueles gracejos que, em troca, o faziam perder muito
da sua inocência. Foi à casa de Odette. Sentou-se longe dela. Não ousava beijá-la, não
sabendo se nela, ou nele, era a afeição ou a cólera que um beijo despertaria. Calava-se,
via morrer seu amor. De súbito tomou uma resolução.
— Odette, minha querida, bem sei que estou sendo odioso, mas tenho que te
perguntar umas coisas. Lembras-te da ideia que me veio a teu respeito e da senhora
Verdurin? Dize-me se foi verdade, com ela ou qualquer outra.[2]
Odette sacudiu a cabeça, franzindo os lábios, gesto que as pessoas frequentemente
empregam para responder que não irão, que isso lhes aborrece, a alguém que lhes
perguntou: “Não vai ver o desfile da cavalaria, não vai assistir à parada?”. Mas esse
abanar de cabeça, habitualmente ligado a um acontecimento futuro, traz, por isso,
incerteza à negação de um fato passado. De resto, antes evoca motivos de conveniência
própria que uma reprovação ou impossibilidade moral. Ao ver Odette fazer-lhe o sinal
de que aquilo era falso, Swann compreendeu que talvez fosse verdade.
— Eu já te disse, bem sabes — acrescentou ela num tom irritado e doloroso.
— Sim, eu sei, mas estás certa disso? Não me digas: “Bem sabes”, dize-me: “Eu
nunca fiz essa espécie de coisas com nenhuma mulher”.
Odette repetiu como uma lição, num tom irônico, como se quisesse desembaraçar-se
dele:
— Eu nunca fiz essa espécie de coisas com nenhuma mulher.
— Podes jurá-lo sobre a tua medalha de Nossa Senhora de Laghet?
Sabia Swann que Odette não juraria falso sobre aquela medalha.
— Oh!, como me fazes sofrer! — exclamou Odette, furtando-se num gesto
sobressaltado ao ataque da pergunta. — Não vais acabar com isso? O que é que tens
hoje? Resolveste que eu deva detestar-te, que te abomine? Eu tanto queria voltar contigo
aos bons tempos de outrora, e é assim que me agradeces!
Mas sem largá-la, como espera um cirurgião o fim de um espasmo que interrompe
a sua operação mas não o faz renunciar a ela, disse-lhe Swann, com uma persuasiva e
mentirosa doçura.
— Enganas-te em pensar que eu haveria de querer-te mal por isso, Odette. Nunca te
falo do que sei, e sempre sei muito mais do que digo. Mas só tu podes abrandar com a
tua confissão o ódio que sinto quando isso me é denunciado por outras pessoas. Minha
cólera contra ti não vem das tuas ações, eu tudo te perdoo, porque te amo, mas sim da
tua falsidade, da tua absurda falsidade que te faz insistir na negação de coisas que eu sei.
Mas como queres que eu continue a amar-te quando te vejo me sustentar uma coisa que
eu sei que é falsa? Odette, não prolongues este instante que é uma tortura para nós dois.
Se quiseres, acabará num segundo, e ficarás livre disso para sempre. Dize-me, sobre a
tua medalha, sim ou não, se nunca fizeste essas coisas.
— Que sei eu?! Que sei eu?! — exclamou Odette encolerizada. — Talvez há muito
tempo, sem saber o que estava fazendo, talvez umas duas ou três vezes.
Swann havia encarado todas as possibilidades. A realidade é, pois, alguma coisa que
não tem nenhuma relação com as possibilidades, da mesma forma que uma facada que
recebemos nada tem a ver com o leve movimento das nuvens acima da nossa cabeça,
pois estas palavras: “umas duas ou três vezes” marcaram a vivo uma espécie de cruz no
seu coração. Coisa estranha que tais palavras, “umas duas ou três vezes”, nada mais que
palavras, palavras pronunciadas no ar, a distância, possam assim dilacerar o coração
como se o tocassem de verdade, possam fazer adoecer, como um veneno que se
ingerisse. Involuntariamente pensou nesta frase que ouvira em casa da sra. de Saint-Euverte: “Foi o que eu vi de mais forte depois das mesas giratórias”. Aquele
sofrimento que sentia não se assemelhava a nada do que previra. Não só porque, nas
horas de maior desconfiança, raramente a sua imaginação se adentrara tanto no mal mas
também porque, mesmo quando imaginava aquilo, tal coisa permanecia vaga, incerta,
destituída desse horror particular que se desprendera das palavras “duas ou três vezes”,
desprovida daquela crueldade específica tão diferente de tudo quanto havia conhecido,
como uma doença de que se é atacado pela primeira vez. E no entanto, aquela Odette de
quem lhe vinha todo aquele mal não lhe era por isso menos querida, e sim, pelo
contrário, mais preciosa, como se à medida que crescesse o sofrimento também crescesse
o valor do calmante, do contraveneno que só aquela mulher possuía. Queria prestar-lhe
mais cuidados, como a um doente cujo estado se descobre de súbito que é mais grave do
que supúnhamos. Queria que a coisa horrível que ela lhe dissera ter feito “duas ou três
vezes” não se pudesse repetir. Por isso cumpria velar por Odette. Dizem que,
denunciando a um amigo as faltas de sua amante, só se consegue é mais aproximá-lo
dela, porque ele não lhes dá crédito, mas muito mais se aproximará se acreditar na
denúncia. Mas, dizia Swann consigo, como fazer para protegê-la? Poderia talvez livrá-la
de determinada mulher, mas havia centenas de outras, e ele compreendeu a sua loucura,
na noite em que não encontrara Odette nos Verdurin, quando começara a desejar a
posse, sempre impossível, de uma outra criatura. Felizmente, sob os novos sofrimentos
que acabavam de lhe penetrar na alma como hordas invasoras, jazia um fundo natural
mais antigo e silenciosamente laborioso, como as células de um órgão ferido que logo se
põem a refazer os tecidos lesados, como os músculos de um membro paralisado que
tendem a retomar o movimento. Esses habitantes mais antigos e autóctones de sua alma
empregaram por um instante todas as forças de Swann nesse trabalho obscuramente
reparador que dá a ilusão do repouso a um convalescente, a um operado. Desta vez foi
antes no seu coração do que no seu cérebro, como de costume, que se produziu aquela
paz por esgotamento. Mas todas as coisas da vida que uma vez existiram tendem a
recriar-se. E, como um animal agonizante de novo agitado por uma convulsão
aparentemente extinta, o mesmo sofrimento veio retraçar a mesma cruz no coração, por
um instante poupado, de Swann. Recordou aquelas noites de luar em que, recostado na
sua vitória que o conduzia à rua La Pérouse,[3] cultivava voluptuosamente as
emoções de enamorado, sem saber do envenenado fruto que fatalmente produziriam.
Mas tais pensamentos não duraram mais que o espaço de um segundo, apenas o tempo
em que ele levava a mão ao peito, retomava o fôlego e conseguia sorrir para dissimular
sua tortura. Já recomeçava com as suas indagações. Pois o ciúme, que se dera um
trabalho que um inimigo não teria para lhe assestar aquele golpe, para lhe dar a conhecer
a dor mais cruel que jamais sentira, o ciúme achava que ele não tinha sofrido bastante e
procurava fazer com que recebesse uma ferida ainda mais profunda. Como uma
divindade maligna, o ciúme o possuía, levando-o à perfeição. Não foi por culpa sua,
mas apenas por causa de Odette, que o suplício a princípio não se agravou.
— Minha querida, terminemos de uma vez; foi com alguma pessoa que eu conheço?
— Não, eu te juro, creio aliás que exagerei, que não fui até esse ponto.
Ele sorriu e tornou:
— Que queres? Isso não faz mal, mas é lamentável que não me possas dizer o
nome. Se eu pudesse figurar a pessoa me evitaria pensar em tal coisa daqui por diante.
Digo isso por ti, pois não te aborreceria mais. É tão apaziguante poder imaginar as
coisas! O terrível é que não se possa imaginar. Mas já foste tão gentil, não quero fatigar-te. Agradeço-te de todo o coração por todo o bem que me fizeste. Está acabado. Apenas
esta pergunta: “Há quanto tempo?”.
— Oh!, Charles, mas não estás vendo que me matas? Já faz tanto tempo! Eu nunca
tinha tornado a pensar nisso, até parece que fazes questão de meter-me essas ideias na
cabeça. Muito se aproveitaria! — disse ela, com uma tolice inconsciente e deliberada
maldade.
— Oh!, eu apenas queria saber se foi depois que nos conhecemos. Seria tão
natural… Será que se passou aqui? Não podes citar-me uma noite particular, para que
me lembre o que estava fazendo nessa noite? Tu bem compreendes que não é possível
que não te recordes com quem, meu amor.
— Mas eu não sei, creio que foi no Bois, numa noite em que foste encontrar-nos na
Ilha. Tinhas ido jantar com a princesa Des Laumes — disse ela, satisfeita de fornecer
um detalhe preciso que testemunhasse a sua veracidade. — Numa mesa próxima estava
uma mulher que eu não via há muito tempo. Ela me disse: “Venha atrás do pequeno
rochedo apreciar o efeito do luar sobre as águas”. No princípio bocejei e disse: “Não,
estou cansada e sinto-me bem aqui”. Ela assegurou que nunca houvera um luar
semelhante. “Pois sim!”, disse eu, pois bem sabia aonde ela queria chegar.
Odette contava aquilo quase a rir, ou porque lhe parecesse muito natural, ou porque
assim julgasse atenuar-lhe a importância, ou para não parecer que se humilhava. Ao ver
a fisionomia de Swann, mudou de tom:
— Tu és um miserável, sentes gosto em torturar-me, em obrigar-me a mentir assim
como faço, para que me deixes em paz.
Este segundo golpe assestado em Swann era ainda mais atroz que o primeiro. Jamais
supusera que fosse uma coisa tão recente, oculta a seus olhos que não tinham sabido
descobri-la, não num passado que desconhecia, mas em noites de que muito bem se
lembrava, noites em que convivera com Odette, que julgava tão bem conhecidas e que
agora apresentavam retrospectivamente algo de enganoso e cruel; no meio delas se abria
de súbito aquele hiante abismo, aquele momento na Ilha do Bois. Odette, sem ser
inteligente, tinha o encanto do natural. Contara, representara a cena com tanta
simplicidade que Swann, arquejante, via tudo: o bocejo de Odette, o pequeno rochedo.
Ouvia-a responder — e alegremente!: “Pois sim!”. Compreendeu que ela nada mais
diria naquela noite, que não havia nenhuma nova revelação a esperar naquele momento;
ele lhe disse:
— Minha pobre querida, perdoa-me, sinto que te magoo; agora está acabado, não
vou pensar mais nisso.
Mas Odette viu que os olhos de Swann quedavam fixos nas coisas que ele não sabia
e naquele passado de seu amor, monótono e doce na sua memória porque era vago, e
que agora rasgava como uma ferida aquele minuto na Ilha do Bois, ao luar, depois do
jantar na casa da princesa Des Laumes. Mas de tal modo se habituara ele a achar a vida
interessante — a admirar as curiosas descobertas que nela se podem fazer — que,
embora sofrendo a ponto de julgar que não suportaria por muito tempo uma dor
semelhante, dizia consigo: “A vida é na verdade espantosa e reserva belas surpresas;
afinal o vício é uma coisa mais difundida do que se crê. Eis uma mulher em quem eu
confiava, que tem um ar tão simples, tão honrado em todo caso, que, mesmo leviana,
parecia normal e sadia nas suas inclinações; ante uma denúncia inverossímil, eu a
interrogo, e o pouco que ela me confessa revela muito mais do que se poderia
suspeitar”. Mas não podia limitar-se a essas observações desinteressadas. Procurava
aferir exatamente o valor do que ela lhe contara a fim de saber se Odette fizera muitas
vezes aquelas coisas e se poderia reincidir. Repetia as frases que lhe ouvira: “Eu bem
sabia aonde ela queria chegar”, “Duas ou três vezes”, “Pois sim”, mas não reapareciam
desarmadas na memória de Swann, cada uma delas trazia o seu punhal e lhe vibrava um
novo golpe. Durante muito tempo, como um enfermo que não pode deixar de fazer a
cada instante o movimento que lhe é doloroso, ele se repetia estas frases: “Estou bem
aqui”, “Pois sim!”, mas o sofrimento era tão forte que se via obrigado a parar.
Maravilhava-se de que atos que sempre julgara tão ligeiramente, tão jocosamente, se lhe
afigurassem agora graves como uma doença de que se pode morrer. Conhecia muitas
mulheres a quem poderia pedir que vigiassem Odette. Mas como esperar que se
colocassem no seu mesmo ponto de vista e não se ativessem àquele que por tanto tempo
fora o seu e sempre o guiara na vida voluptuosa, dizendo-lhe então a rir: “Maldito
ciumento que quer privar os outros de um prazer!”. Por que alçapão subitamente aberto
(ele que outrora só tirara delicados prazeres de seu amor por Odette) fora bruscamente
precipitado naquele novo círculo do inferno de onde não via como jamais poderia
escapar? Pobre Odette! Não lhe queria mal. Ela apenas tinha metade da culpa. Pois não
se dizia que fora a sua própria mãe que a entregara, quase criança, em Nice, a um rico
inglês? Mas com que dolorosa verdade se lhe apresentavam estas linhas do Diário de um
poeta, de Alfred de Vigny, que outrora lera com indiferença: “Quando a gente se
enamora de uma mulher, deveria indagar: Qual é o seu ambiente? Qual foi a sua vida?
Toda a felicidade da vida se baseia nisso”. Espantava-se de que simples frases
articuladas por seu pensamento como “Pois sim!”, “Eu bem via aonde ela queria
chegar” pudessem causar-lhe tanto mal. Mas compreendia que o que supunha simples
frases não eram mais que as peças da armadura entre as quais se continha, e lhe podia ser
devolvido, o sofrimento que experimentara durante a narrativa de Odette. Pois era esse
mesmo sofrimento que ele de novo experimentava. Por mais que soubesse agora — por
mais que, com o tempo, houvesse até esquecido e perdoado um pouco —, no momento
em que repetia aquelas frases, o sofrimento antigo o recompunha tal como ele era antes
que Odette falasse: ignorante, confiante; o seu ciúme atroz, para feri-lo com a confissão
de Odette, recolocava-o na posição de alguém que nada soubesse ainda, e, transcorridos
vários meses, aquela velha história continuava a abalá-lo como uma revelação. Admirava
o terrível poder recriador de sua memória. Só do enfraquecimento dessa geratriz cuja
fecundidade diminui com os anos podia ele esperar um apaziguamento à sua tortura.
Mas quando uma das frases pronunciadas por Odette parecia ter perdido um pouco da
sua capacidade de fazê-lo sofrer, eis que uma daquelas em que o seu espírito menos se
detivera até então, uma frase quase nova vinha substituir as outras e feria-o com um
vigor intato. A lembrança da noite em que jantara com a princesa Des Laumes lhe era
dolorosa, mas constituía apenas o centro de seu mal. Este se irradiava confusamente por
todos os dias circunvizinhos. E qualquer que fosse o ponto dela que quisesse tocar em
suas recordações, o que lhe doía era a estação inteira em que os Verdurin tinham ido
jantar tão frequentemente na Ilha do Bois. Doía-lhe tanto que, pouco a pouco, as
curiosidades que o ciúme lhe despertava foram neutralizadas pelo medo das torturas
novas que ele se infligiria ao satisfazê-las. Compreendia que todo o período da vida de
Odette transcorrido antes de encontrá-la, período que jamais procurara imaginar, não
era a extensão abstrata que via vagamente, mas fora constituído de anos particulares e
cheio de incidentes concretos. Mas, se deles tomasse conhecimento, receava que esse
passado incolor, fluido e suportável, adquirisse um corpo tangível e imundo, uma face
individual e diabólica. E teimava em não querer imaginá-lo, não mais por preguiça de
pensar, mas por medo de sofrer. Esperava que havia de chegar um dia em que pudesse
ouvir o nome da Ilha do Bois, ou da princesa Des Laumes, sem sentir o dilaceramento
antigo, e achava imprudente provocar Odette a fornecer-lhe novas frases, nomes de
lugares, circunstâncias diversas que, mal se apaziguasse o seu sofrimento, o fariam
renascer sob outra forma.
continua na página 238...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Um dia - u)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
__________________[1] A peça começou a ser encenada em 1853 e tratava de prostitutas e atrizes que, tão
sem sentimento, pareciam ser de mármore. [n. e.]
[2] Mais tarde será o herói que entrará pelo mesmo “caminho de Swann” e exporá a
namorada a sessões de interrogatório. [n. e.]
[3] A vitória, diferentemente do cupê, era carro leve e descoberto. [n. e.]
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