em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
III(m)
Outras vezes lhe dizia Swann que o motivo principal para que deixasse de querer-lhe seria a sua falta de empenho em renunciar à mentira. “Mesmo sob o simples ponto de vista da coqueteria, não compreendes o quanto perdes da tua sedução rebaixando-te a mentir? Quantas culpas não te seriam perdoadas por uma confissão? Na verdade és muito menos inteligente do que eu pensava!” Mas era em vão que Swann lhe expunha assim todas as razões que poderia ela ter para não mentir: poderiam tais razões destruir em Odette um sistema geral da mentira; mas Odette não tinha nenhum sistema; contentava-se apenas, sempre que desejava que Swann ignorasse algo que ela fizera, em não lho dizer. Assim, era a mentira, para ela, um expediente de ordem particular; e a única coisa que podia decidi-la a mentir ou não era também uma razão de ordem particular, a maior ou menor probabilidade de que Swann pudesse descobrir que não dissera a verdade.
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
Outras vezes lhe dizia Swann que o motivo principal para que deixasse de querer-lhe seria a sua falta de empenho em renunciar à mentira. “Mesmo sob o simples ponto de vista da coqueteria, não compreendes o quanto perdes da tua sedução rebaixando-te a mentir? Quantas culpas não te seriam perdoadas por uma confissão? Na verdade és muito menos inteligente do que eu pensava!” Mas era em vão que Swann lhe expunha assim todas as razões que poderia ela ter para não mentir: poderiam tais razões destruir em Odette um sistema geral da mentira; mas Odette não tinha nenhum sistema; contentava-se apenas, sempre que desejava que Swann ignorasse algo que ela fizera, em não lho dizer. Assim, era a mentira, para ela, um expediente de ordem particular; e a única coisa que podia decidi-la a mentir ou não era também uma razão de ordem particular, a maior ou menor probabilidade de que Swann pudesse descobrir que não dissera a verdade.
Fisicamente, atravessava uma época ingrata: estava engordando; e o encanto
expressivo e dolente, os olhares atônitos e sonhadores que tinha outrora pareciam haver
desaparecido com a sua primeira juventude. De sorte que tão cara se havia tornado a
Swann no momento, por assim dizer, em que precisamente a achava muito menos
bonita. Contemplava-a longamente, procurando apreender o encanto que lhe conhecera,
e não o encontrava. Mas saber que, sob aquela nova crisálida, era sempre Odette que
ainda vivia, sempre aquele gênio fugaz, inatingível e enganoso, bastava para que Swann
continuasse com o mesmo ardor na tarefa de captá-la. Olhava depois as fotografias de
dois anos antes, e lembrava-se o quanto ela fora deliciosa. E isso o consolava um pouco
de sofrer tanto por ela.
Quando os Verdurin a levavam a Saint-Germain, a Chatou, a Meulan, muitas vezes,
se fazia bom tempo, propunham que todos pousassem ali mesmo, para regressar no
outro dia. A sra. Verdurin procurava acalmar os escrúpulos do pianista, cuja tia ficara
em Paris.
— Ela ficará encantada de se ver livre do senhor por um dia. E depois, como
haveria de afligir-se, se sabe que está conosco? Aliás, assumo toda a responsabilidade.
Mas se não conseguia o seu intento, o sr. Verdurin saía a campo, descobria um
posto telegráfico ou um mensageiro, e indagava quais eram os fiéis que tinham alguma
pessoa a quem prevenir. Mas Odette agradecia-lhe, declarando que não tinha recado para
ninguém, pois dissera de uma vez por todas a Swann que ficaria comprometida se lhe
enviasse um despacho à vista de todos. Às vezes a ausência de Odette durava vários dias,
os Verdurin a levavam para ver os túmulos de Dreux, ou para admirar, a conselho do
pintor, os crepúsculos na floresta, e seguiam a excursão até o castelo de
Pierrefonds.[1]
— E pensar que ela poderia visitar monumentos de verdade comigo, que passei dez
anos estudando arquitetura e que seguidamente sou instado para acompanhar a Beauvais
ou a Saint-Loup-de-Naud pessoas do mais alto valor e que só o faria por ela, e em vez
disso ela vai, com os últimos dos brutos, extasiar-se ante as dejeções de Louis-Phillipe e
as de Viollet-le-Duc! Não me parece que haja necessidade de ser artista para isso e,
mesmo sem ter um olfato muito fino, não se escolhe ir veranear em latrinas para achar-se em melhores condições de cheirar excrementos.
Mas quando ela partia para Dreux ou Pierrefonds — e sem permitir que ele
também fosse, como por acaso, porque “causaria um efeito deplorável”, dizia ela —
Swann mergulhava no mais apaixonante dos romances de amor, o guia das estradas de
ferro, que lhe indicava os meios de ir ter com ela à tarde, à noite, naquela mesma manhã!
Os meios? Mais até: a autorização. Pois afinal o guia e os próprios trens não eram feitos
para cachorros. Se se comunicava ao público mediante impressos, que às oito da manhã
partia um trem que chegava em Pierrefonds às dez, significava que ir a Pierrefonds era
um ato lícito, para o qual se tornava supérflua a permissão de Odette; e era também um
ato que podia ter qualquer outro motivo que não o desejo de encontrá-la, visto que
pessoas que não a conheciam o efetuavam diariamente, em número suficiente para que
valesse a pena aquecer as locomotivas.
Em suma, não podia ela impedi-lo de ir a Pierrefonds, se ele o quisesse! E sentia
que tinha mesmo vontade de ir e que, se não conhecesse Odette, certamente iria. Fazia
tempo que desejava formar uma ideia mais precisa dos trabalhos de restauração de
Viollet-le-Duc. E com o tempo que fazia, experimentava o imperioso desejo de um
passeio pela floresta de Compiègne.
E era muito pouca sorte que ela lhe vedasse o único lugar que hoje o tentava. Hoje!
Se lá fosse, apesar da sua proibição, poderia vê-la hoje mesmo! O caso é que se
encontrasse algum indiferente em Pierrefonds, Odette lhe diria alegremente: “Oh!, o
senhor por aqui!”, e o convidaria para visitá-la no hotel onde estava parando com os
Verdurin, ao passo que se encontrasse, a ele, Swann, ficaria melindrada, pensando que
fora seguida, e haveria de querer-lhe menos, e talvez desviasse o rosto com raiva, ao
avistá-lo. “Então não tenho mais o direito de viajar!”, diria-lhe ela na volta, quando
afinal de contas era ele que já não tinha o direito de viajar!
Para ir a Compiègne e Pierrefonds sem que parecesse andar em busca de Odette,
tivera a ideia de fazer com que o levasse um de seus amigos, o marquês de Forestelle,
que tinha um castelo nas vizinhanças. Este, a quem comunicara o projeto sem dizer o
motivo, não cabia em si de contente, e maravilhava-se de que Swann, pela primeira vez
em quinze anos, consentisse afinal em visitar a sua propriedade, e embora, como dizia,
não pretendesse demorar, prometeu ao menos que fariam excursões e dariam passeios
juntos durante vários dias. Swann já se imaginava ali com o sr. de Forestelle. Mesmo
antes de ver Odette, mesmo que não conseguisse vê-la, que felicidade a sua em pisar
aquela terra onde, ignorando o local exato da sua presença no momento, sentiria palpitar
por toda parte a possibilidade da sua repentina aparição: no pátio do castelo, que agora
se lhe apresentava mais belo porque fora vê-lo por causa de Odette; em todas as ruas da
cidade, que lhe parecia tão romanesca; em cada caminho da floresta, rosada por um
profundo e suave pôr do sol — asilos inumeráveis e alternativos, aonde vinha
simultaneamente refugiar-se, na incerta ubiquidade das suas esperanças, seu coração
feliz, vagabundo e múltiplo. “Antes de tudo”, diria ele ao sr. de Forestelle, “cuidamos
de não topar com Odette e os Verdurin; acabo de saber que estão justamente hoje em
Pierrefonds. A gente já tem muito tempo para se ver em Paris, não valeria a pena deixá-la para não poder dar um passo uns sem os outros.” E o amigo não atinaria por que,
uma vez que ali estivesse, mudaria ele vinte vezes de projeto, inspecionaria os refeitórios
de todos os hotéis sem se decidir a sentar em nenhum daqueles onde no entanto não vira
o rastro dos Verdurin, parecendo procurar o que pretendia evitar, e aliás evitando-o
logo que o achasse, pois que, no caso de encontrar o pequeno grupo, se afastaria com
afetação, satisfeito de ter visto Odette e de que Odette o tivesse visto, e principalmente
que o tivesse visto sem se preocupar com ela. Mas qual! Odette logo adivinharia que era
por ela que ele estava ali. E quando o sr. de Forestelle o procurasse para partir, ele lhe
diria: “Não, não posso ir hoje a Pierrefonds, Odette lá está”. E apesar de tudo, Swann
sentia-se feliz em ver que, se dentre todos os mortais era o único que não tinha o direito
de ir naquele dia a Pierrefonds, era por ser ele, para Odette, alguém muito diferente dos
outros, o seu amante, e aquela restrição particular ao direito universal de livre circulação
não passava de uma das formas daquela escravatura, daquele amor que lhe era tão caro.
Decididamente, melhor seria não correr o risco de romper com ela, ter paciência, esperar
que regressasse. E passava os dias inclinado sobre um mapa da floresta de Compiègne,
como se fora o mapa do Sentimento, e rodeado de fotografias do castelo de
Pierrefonds. Ao chegar o dia em que era possível o regresso de Odette, Swann reabria o
indicador, calculava que trem poderia ela ter tomado e, caso o perdesse, quais os que
ainda lhe restavam. Não saía de medo de perder um telegrama, não se deitava para o caso
em que, chegando pelo último trem, desejasse ela dar-lhe uma surpresa no meio da
noite. Justamente ouvia bater à porta da rua, parecia que tardavam em abrir, queria
acordar o porteiro, punha-se à janela para chamar Odette se fosse ela mesma, pois apesar
das recomendações que fora fazer mais de dez vezes pessoalmente na portaria, eram
capazes de dizer que ele não estava em casa. Era um criado que regressava. Notava o
incessante rodar dos carros, coisa a que jamais prestara atenção anteriormente. Escutava
a cada um vir chegando de longe, aproximar-se, passar por sua porta sem deter-se e
levar mais além uma mensagem que não era para ele. Esperava toda a noite, e
inutilmente, porque os Verdurin haviam apressado o regresso e Odette se achava em
Paris desde o meio-dia; não tivera a lembrança de avisar-lhe; não sabendo o que fizesse,
passara a noite sozinha no teatro, fazia muito tempo que voltara para casa, e agora estava
dormindo.
Era porque nem ao menos havia pensado nele. E esses momentos em que se
esquecia até da existência de Swann eram mais úteis a Odette, melhor serviam para o
prender a ela do que toda a sua coqueteria. Pois assim vivia Swann nessa dolorosa
agitação que já fora assaz possante para provocar a eclosão de seu amor naquela vez em
que não encontrara Odette nos Verdurin e passara toda a noite a procurá-la. E não tinha
ele, como eu tive em Combray na minha infância, dias felizes durante os quais se
esquecem os sofrimentos que renascerão à noite. Os dias, Swann passava-os sem Odette;
e às vezes pensava que deixar assim uma mulher tão bonita andar sozinha em Paris era
tão imprudente como deixar um cofre cheio de joias no meio da rua. Indignava-se então
contra todos os transeuntes como se fossem todos uns ladrões. Mas como a sua face
coletiva e informe escapava à sua imaginação, não podia alimentar-lhe o ciúme. Aquilo
exauria o pensamento de Swann, o qual, passando a mão pelos olhos, exclamava: “Seja o
que Deus quiser”, como aqueles que, depois de encarniçar-se em abarcar o problema da
realidade do mundo exterior ou da imortalidade da alma, concedem ao cérebro cansado
o alívio de um ato de fé. Mas sempre o pensamento da ausente se achava
indissoluvelmente ligado aos atos mais simples da vida de Swann — almoçar, receber a
correspondência, sair, deitar-se — pela própria tristeza que sentia em os cumprir sem
ela, como essas iniciais de Felisberto, o Formoso, que Margarida da Áustria mandou
entrelaçar às suas por toda parte na igreja de Brou, por causa do pesar que por ele
sofria.[2] Certos dias, em vez de ficar em casa, ia almoçar num restaurante próximo
cuja boa cozinha outrora apreciava e aonde só ia agora por uma dessas razões, ao mesmo
tempo místicas e estapafúrdias, que se chamam romanescas: era que aquele restaurante (o
qual ainda existe) tinha o mesmo nome da rua onde morava Odette: Lapérouse. Às vezes,
quando ela fazia uma curta ausência, era só depois de muitos dias que se lembrava de lhe
comunicar que já tinha voltado a Paris. E dizia-lhe muito simplesmente, sem mais
tomar, como outrora, a precaução de se resguardar ao acaso com um farrapo arrancado
à verdade, que acabava de chegar no mesmo instante, pelo trem da manhã. Essas
palavras eram mentirosas: pelo menos para Odette eram mentirosas e inconsistentes,
pois não tinham, como se fossem verdadeiras, um ponto de apoio na lembrança da sua
chegada à estação: achava-se até impedida de concebê-las no instante em que as dizia, pela
imagem contraditória da coisa muito diversa que estava fazendo no momento em que
alegava ter descido do trem. Mas no espírito de Swann, pelo contrário, essas palavras
que não encontravam nenhum obstáculo vinham incrustar-se e tomar a irremovibilidade
de uma verdade tão indubitável que, se um amigo lhe dizia ter viajado naquele mesmo
trem e não ter visto Odette, supunha ele que era o amigo que se enganava no dia ou na
hora, pois que a sua afirmação não se conciliava com as palavras de Odette. Essas
palavras só lhe pareceriam mentirosas se ele de início já houvesse desconfiado de sua
veracidade. Para julgar que ela mentia, a suspeita prévia era uma condição necessária.
Era aliás também uma condição suficiente. Então tudo o que dizia Odette lhe parecia
suspeito. Ouvia-a citar um nome? Era decerto um de seus amantes. Uma vez forjada
essa hipótese, passava ele semanas a desolar-se; contratou até uma agência de
informações para saber o endereço e o emprego de tempo do desconhecido que só o
deixaria respirar quando houvesse partido em viagem, e que acabou por saber que era
um tio de Odette falecido vinte anos antes.
Embora Odette em geral não permitisse que Swann fosse ter com ela em lugares
públicos, alegando que isso daria que falar, acontecia encontrarem-se às vezes numa
reunião a que eram ambos convidados, em casa de Forcheville, do pintor, ou num baile
de caridade num Ministério. Via-a, mas não se atrevia a ficar, por medo de irritá-la,
parecendo que estivesse a espiar os prazeres que ela desfrutava com outros e que —
enquanto regressava solitário, e ia deitar-se ansioso como eu próprio o faria alguns anos
mais tarde nas noites em que ele ia jantar em nossa casa, em Combray — lhe pareciam
ilimitados porque não lhes vira o fim. E vez por outra ele conheceu, naquelas noites,
esse tipo de alegria que seríamos tentados a qualificar, não fora o choque que causa a
brusca parada da inquietação, de alegrias tranquilas porque consistem num
apaziguamento; fora passar um momento numa reunião em casa do pintor, e já se
dispunha a partir; ali deixava Odette transformada numa brilhante desconhecida, no
meio de homens a quem seus olhares e sua alegria, que não eram para ele, Swann,
pareciam falar de alguma volúpia, que seria gozada ali ou alhures (talvez no “Baile dos
Incoerentes”, aonde temia que ela fosse depois[3]) e que lhe causava mais ciúme do
que a própria união carnal, porque mais dificilmente a imaginava; já ia atravessar a porta
do ateliê quando ouvia que o chamavam por estas palavras (que, despojando a festa
daquele final que o assustava, a revestiam de retrospectiva inocência e tornavam a volta
de Odette não mais uma coisa inconcebível e tremenda, mas grata e sabida, que ficaria
junto a ele, ali no carro, como um pouco da sua vida cotidiana e que tiravam a Odette a
sua aparência demasiado brilhante e alegre, mostrando que não era mais que um disfarce
que vestira por um momento, e não em vista de misteriosos prazeres e do qual já estava
cansada), estas palavras que Odette lhe lançava quando ele já se achava no umbral da
porta: “Não quer esperar-me uns cinco minutos? Já vou embora, voltaríamos juntos e
você me deixaria em casa”.
É verdade que Forcheville, um dia, pedira para ser reconduzido ao mesmo tempo,
mas como, chegando à porta de Odette, solicitara permissão para também entrar, Odette
lhe respondera, designando Swann: “Ah!, isso depende deste senhor, peça a ele. Enfim,
entre um momento, se quiser, mas não por muito tempo, pois lhe previno de que ele
gosta de conversar tranquilamente comigo, e não aprecia muito que haja visitas quando
vem. Ah!, se conhecesse a essa criatura como eu a conheço! Não é, my love, não é verdade
que só eu é que o conheço bem?”.
E Swann talvez ainda mais se comovia ao vê-la assim dizer-lhe em presença de
Forcheville, não só aquelas palavras de ternura, de predileção, mas ainda certas críticas
como: “Estou certa de que você ainda não respondeu a seus amigos quanto ao jantar de
domingo. Não vá, se não quiser, mas ao menos seja cortês”, ou: “Não deixou aqui, em
todo caso, o ensaio sobre Vermeer para adiantá-lo um pouco amanhã? Que preguiçoso!
Hei de fazê-lo trabalhar”, o que provava que Odette estava a par de seus convites sociais
e de seus estudos de arte e que na verdade tinham os dois uma vida só deles. E ao dizer-lhe tais coisas, Odette lhe dirigia um sorriso no fundo do qual ele a sentia inteiramente
sua.
E então, nesses momentos, enquanto ela preparava laranjada, eis que de súbito,
como quando um refletor mal regulado projeta primeiro em torno de um objeto, pela
parede, grandes sombras fantásticas que vêm em seguida incidir e anular-se nele,
dissipavam-se todas as ideias terríveis e movediças que formava a respeito de Odette,
unindo-se ao corpo encantador que ele tinha ali diante de seus olhos. Tinha a repentina
impressão de que aquela hora passada com Odette, à luz da lâmpada, não era talvez uma
hora artificial para uso dele (destinada a mascarar essa coisa terrível e deliciosa em que
incessantemente pensava sem poder imaginá-la bem, uma hora da verdadeira vida de
Odette, da vida de Odette quando ele ali não se achava) como acessórios de teatro e
frutas de cartão, mas era talvez uma hora mesmo da vida de Odette, e se ele ali não
estivesse, ela teria fornecido a Forcheville a mesma poltrona, oferecendo-lhe não uma
beberagem desconhecida, mas precisamente aquela laranjada; que o mundo habitado por
Odette não era esse outro mundo espantoso e sobrenatural onde ele passava o tempo a
situá-la e talvez só existisse em sua imaginação, mas o universo real, sem nenhuma
especial tristeza, abrangendo aquela mesa onde poderia escrever e aquela bebida que lhe
seria permitido saborear; todos aqueles objetos que contemplava não só com curiosidade
e admiração, mas com gratidão igual, pois que, se o haviam livrado de seus sonhos ao
absorvê-los, em compensação se haviam enriquecido com eles, mostrando-lhe a sua
realização palpável, e interessavam seu espírito e assumiam relevo a seus olhos, ao
mesmo tempo que lhe tranquilizavam o coração. Ah!, se o destino houvesse permitido
que Odette e ele não tivessem mais que uma só morada, que Swann, estando em sua casa,
estivesse também em casa dela, se, ao perguntar ao criado o que havia para o almoço,
obtivesse em resposta o cardápio de Odette, se, querendo Odette dar uma volta de
manhã pelo Bois de Boulogne, o seu dever de bom esposo o obrigasse a acompanhá-la,
embora sem vontade, carregando-lhe a capa se fizesse muito calor, e se à noite, após o
jantar, tivesse ela vontade de ficar em casa e fosse ele forçado a ficar ali junto dela,
fazendo o que ela queria, então, todos os nadas da vida de Swann que lhe pareciam tão
tristes assumiriam pelo contrário, pois ao mesmo tempo fariam parte da vida de Odette,
mesmo os mais familiares, uma espécie de superabundante doçura e de misteriosa
densidade, como aquela lâmpada, aquela laranjada, aquela poltrona que encarnavam
tantos sonhos, que materializavam tantos desejos!
continua na página 197...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Outras vezes lhe dizia Swann - m)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
__________________[1] O castelo de Pierrefonds foi totalmente restaurado na época por Viollet-le-Duc. O
castelo de Compiègne, construído no século XVIII, era dos lugares favoritos de Napoleão III. A capela Saint-Louis, em Dreux, em estilo neogótico, data do início do século XIX e
contém os túmulos dos príncipes de Orléans. [n. e.]
[2] Igreja que Proust visitou em 1903, edificada sob as ordens de Margarida da
Áustria (1480-1530) em memória de seu marido Filipe, o Belo (1480-1504). [n. e.]
[3] Baile público parisiense que teve início em 1885, sob iniciativa dos “Incoerentes”,
grupo de desenhistas que ridicularizava os pintores acadêmicos. [n. e.]
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