quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (8c) - Possivelmente senhores

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

8.

continuando...

- Possivelmente senhores, muito possivelmente - apressou-se o príncipe em concordar - muito embora eu não saiba a que lei geral se estejam referindo. Mas permitam que eu prossiga e não se ofendam, absolutamente; juro que não tenho a menor intenção de insultar ninguém. E é uma lástima, senhores, que não se possa proferir uma palavra, sinceramente, sem que fiquem logo ofendidos! Mas, em primeiro lugar, foi um terrível choque, saber da existência de um filho de Pavlíchtchev em tão terrível situação como Tchebárov me explicou. Pavlíchtchev foi meu benfeitor e amigo de meu pai. Mas, ah! Por que escreveu o senhor aquelas falsidades a respeito de meu pai, Sr. Keller? Nunca houve apropriação indébita do dinheiro de nenhuma companhia nem maus tratos a subordinados quaisquer. Quanto a isso estou absolutamente convicto! E como pôde o senhor estender a sua mão para escrever tal calúnia? E o que o senhor disse de Pavlíchtchev ultrapassa tudo quanto é suportável. Deu o senhor esse nobre homem como sendo um libertino frívolo, e o fez com tanta audácia e segurança como se realmente estivesse contando a verdade, e todavia, ele foi um dos homens mais virtuosos e castos que já houve no mundo! Era notavelmente culto, costumava corresponder-se com inúmeros cientistas dos mais insignes, e gastou grande parte do seu dinheiro com desenvolvimento da Ciência. Quanto ao seu coração e à sua benemerência. Oh! Sem dúvida estava o senhor completamente com razão ao dizer que eu, naquele tempo, era mais um idiota do que qualquer outra coisa, não tendo a menor noção de nada (apesar de falar russo e até poder entender o que me falassem); mas posso agora apreciar tudo quanto recordo, em seu verdadeiro valor...
- Com licença - guinchou Ippolít -, não será isso muito sentimental? Nós aqui não somos nenhuma criança. O que queremos é entrar diretamente na questão. E já são quase dez horas, repare bem.
- Muito bem, senhores - concordou o Príncipe. - Depois da minha primeira suspeita, ainda pensei que talvez eu me houvesse equivocado e que Pavlíchtchev tivesse efetivamente um filho. Mas fiquei muitíssimo admirado que aquele filho desvendasse, tão diligentemente, isto é, quero dizer, tão publicamente o segredo do seu nascimento, desgraçando o nome de sua mãe. Pois já naquela ocasião Tchebárov me ameaçava com a Publicidade!
- Coisa ridícula! - comentou o sobrinho de Liébediev - O senhor não tem o direito. O senhor não tem O direito; - exclamava Burdóvskii, ao que guinchou com veemência Ippolít: - O filho não é responsável pelo procedimento imoral do pai, nem a mãe tem do que ser censurada. 
- Mais razão ainda, então, para poupá-la, pensaria eu, no caso - aventurou singelamente o príncipe. 
- O senhor não é tão somente ingênuo, príncipe; vai, talvez, um pouco além... - chacoteou o sobrinho de Liébediev, maldosamente. - E que direito tinha o senhor? - ganiu Ippolít, em uma voz deformadíssima.
- Todavia, nenhum. Todavia, nenhum - prontamente redargüiu o príncipe. - Os senhores têm razão nisso, admito, mas me saiu, e que hei de fazer? E comigo mesmo eu disse, naquela ocasião, que não devia deixar o meu sentimento pessoal intervir no caso, porque se considero ser preciso satisfazer a solicitação do Sr. Burdóvskii por causa do meu sentimento para com Pavlíchtchev, eu devia satisfazê-la de qualquer modo, mesmo que respeitasse ou não Sr. Burdóvskii. Apenas fiz tal reparo, senhores, porque me pareceu anômalo, para um filho, desvendar o segredo materno tão publicamente... E de fato foi principalmente neste terreno que me capacitei que Tchebárov era um tratante e tinha instigado o Sr. Burdóvskii a uma tal fraude por dolo.
- Mas isso é intolerável! - partiu de entre os seus visitantes, alguns dos quais chegaram a se levantar.
- Senhores, foi justamente então que compreendi que o pobre Sr. Burdóvskii devia ser uma pessoa simples e sem ajuda, facilmente dominada por cavalheiros de indústria, e que, por conseguinte, eu precisava ajudá-lo. E o farei como a um “filho de Pavlíchtchev” - primeiramente, livrando-o do Sr. Tchebárov, em segundo lugar, oferecendo-lhe os meus amistosos bons ofícios e guia, e, em terceiro lugar, decidindo dar-lhe dez mil rublos, exatamente quanto, segundo meus cálculos, Pavlíchtchev deve ter gasto comigo.
- O quê! Só dez mil rublos? - vociferou Ippolít. - Bem, príncipe, nós somos muito fraquinhos em aritmética, ou melhor, o senhor é um ás em contas, muito embora se faça de simplório - zombou o sobrinho de Liébediev.
- Eu não concordo em receber dez mil rublos.
- Segura isso, Antíp! - compelia-o o boxeador, em um sussurro claro e rápido, inclinando-se para ele por detrás da cadeira de Ippolít! - Segura isso! E depois veremos!!!
- Escute, Sr. Míchkin - goelou Ippólit -, compreenda bem que nós não somos cretinos, vulgares cretinos, como provavelmente pensam todas essas suas visitas, tanto essas damas que nos desprezam condignamente, como esse senhor da alta sociedade - apontou para Evguénii Pávlovitch - a quem não tenho, naturalmente, a a honra de conhecer, muito embora cuide já ter ouvido falar em Sua Excelência. 
- Mas, por Deus, os senhores de novo não me entendem - voltou-se o príncipe para eles, com agitação. - Em primeiro lugar, Sr. Keller, em seu artigo o senhor descreveu a minha fortuna muito por ouvir dizer! Eu absolutamente não herdei milhões. Tenho talvez uma oitava ou uma décima parte do que o senhor supõe. E, em segundo lugar, dezenas de milhares não foram gastos comigo na Suíça. Pagavam-se a Schneider seiscentos rublos por ano; e isso mesmo ele só recebeu durante os três primeiros anos, e Pavlíchtchev nunca foi a Paris para buscar lindas governantas; isso é outra calúnia. Na minha opinião, muito menos de dez mil rublos foram gastos comigo, ao todo; mas eu me propus dar dez mil e hão de admitir que eu não haveria de oferecer ao Sr. Burdóvskii, em pagamento, mais do que lhe era devido, mesmo que eu simpatizasse imensamente com ele! E não haveria de fazê-lo por um sentimento de delicadeza apenas, pois lhe deveria pagar o que lhe era devido e não lhe fazer uma esmola! Não sei por que hão de os senhores se negar a compreender isto. E além disso, resolvi, por amizade e ativa simpatia, compensar mais tarde o infeliz Sr. Burdóvskii, que evidentemente fora enganado, pois não podia ele, de outra maneira, concordar em uma coisa tão baixa como, por exemplo, essa de dar publicidade a este escândalo referente à sua mãe, como deixou, no artigo do Sr. Keller... Mas por que estão os senhores ficando zangados, outra vez? Temos de nos estar equivocando completamente uns aos outros? Ora, aconteceu o que eu já pensava! Estou convencido agora, pelo que vejo, que meu pressentimento era correto - tentou a custo o príncipe persuadi-los, ansioso por pacificar a excitação deles, sem reparar que, ao contrário, a estava aumentando. 
- Convencido agora de quê? - caíram-lhe em cima, quase em fúria.
- Ora, em primeiro lugar, tive tempo para ver nitidamente quanto o Sr. Burdóvskii se parece comigo; e agora vejo claramente o que ele é. É um homem inocente, dominado por qualquer um. Um homem desamparado... E por conseguinte, eu devo ajudá-lo. E, em segundo lugar, Gavríl Ardaliónovitch - a quem o caso foi confiado, e com quem não falei durante muito tempo porque estive viajando e, depois disso, doente em Petersburgo, me disse ainda hoje que examinou o dossiê de Tchebárov, atentamente, acabando por deduzir que Tchebárov é quem eu já cuidava que fosse. Sei, senhores, que muita gente me considera como um idiota, e que, dada a minha reputação de jogar fora dinheiro, à vontade, Tchebárov pensou que podia facilmente vir como impostor sobre mim, contando principalmente com a minha estima por Pavlíchtchev. Mas o ponto capital ouçam-me, senhores, ouçam-me bem! - o ponto capital é que está provado agora que o Sr. Burdóvskii não é em absoluto filho de Pavlíchtchev! Gavríl Ardaliónovitch acabou de me dizer e me garante que tem legítimas provas disso. Bem, que pensam os senhores disto? É difícil acreditar em uma coisa destas, depois da celeuma que foi feita! E escutem, as provas existentes são positivamente categóricas! Quase não creio ainda, chego a não acreditar, asseguro-lhes que estou duvidando até, visto Gavríl Ardaliónovitch não ter tido tempo para me mostrar todos os documentos. Mas que Tchebárov é um tratante, quanto a isso não há mais dúvida! Ele usou do pobre Sr. Burdóvskii e dos senhores todos que vieram auxiliar um amigo (notoriamente ele carece de uma ajuda, compreendo, naturalmente!); abusou dos senhores todos e os envolveu em um caso fraudulento, pois lhes sustento que de fato se trata de um dolo; é uma trapaça! 
- Como, trapaça!? Então não é filho de Pavlíchtchev? Mas, como assim? - tais eram as exclamações ouvidas de todos os lados. Todo o bando de Burdóvskii como que caiu em uma inexpressiva perturbação.
- Sim, naturalmente que é trapaça! Pois se o Sr. Burdóvskii afinal não é mesmo o filho de Pavlíchtchev, sua reivindicação é simplesmente fraudulenta (claro que se, no caso, ele soubesse a verdade); mas a coisa é que foi enganado, eis por que insisto quanto a que seja aclarado o seu caráter! Eis por que digo que ele merece ser lastimado por sua simplicidade e não pode ser deixado sem auxílio. Se assim não fosse, também ele seria um tratante. Estou agora convencido que ele não compreendeu! Eu estava na mesma atuação que ele, quando fui para a Suíça; também eu tinha o hábito de gaguejar incoerentemente. Tenta uma pessoa se exprimir e não pode. Compreendam que eu posso simpatizar com ele, muito bem, sou quase como ele, se é que me é permitido falar assim. Inteiramente igual! Portanto, não existe nenhum “filho de Pavlíchtchev”; o que houve foi mistificação; mas, apesar de tudo, mudei de modo de pensar. E estou pronto a lhe dar dez mil rublos em memória de Pavlíchtchev. Antes do Sr. Burdóvskii aparecer em cena, já eu tinha resolvido dedicar dez mil rublos à fundação de uma escola em memória de Pavlíchtchev; mas agora dá no mesmo ser para uma escola ou para o Sr. Burdóvskíi, pois apesar dele não ser filho de Pavlíchtchev, merece tanto como se o fosse, por ter sido tão impiedosamente enganado. Piamente acreditou ele ser filho de Pavlíchtchev! Falem com Gavríl Ardaliónovitch, ouçam-no, amigos; terminemos com isto! Não se excitem. Sentem-se! Gavríl Ardaliónovitch lhes explicará tudo diretamente. E confesso que terei muita satisfação em ouvir também todos os comprovantes. Disse-me ele que foi a Pskóv ver sua mãe. Sr. Burdóvskii, que absolutamente não morreu como o fizeram declarar no artigo... Sentem-se, senhores, sentem-se! 

     O príncipe sentou-se e conseguiu que Burdóvskii e seus amigos se tornassem a sentar. Durante os dez ou vinte minutos últimos falara alto e impetuosamente, com uma impaciência precipitada. Quase arrebatado, tentando falar com todos; e não pôde depois, amargamente, deixar de se arrepender de certas frases e suposições que então lhe escaparam. Se não se tivesse esgotado a ponto de perder a serenidade, não teria sido capaz de tão mal e tão apressadamente pronunciar alto certas conjeturas e certos desnecessários protestos.
     Mal se tinha sentado em seu lugar e já um ardente remorso fazia doer o seu coração. Além do fato de ter “insultado” Burdóvskii declarando em público sofrer o mesmo de igual doença de que ele próprio se fora tratar na Suíça, o oferecimento de dez mil rublos destinados a uma escola tinha sido feito, a seu ver. grosseiramente e sem delicadeza, como uma caridade. E, ainda por cima, fizera isso alto, diante de todo o mundo. “Eu devia ter esperado e só lhe fazer esse oferecimento amanhã, a sós”, pensava o príncipe. “Agora, talvez não tenha sido correto! Sim, sou um idiota, verdadeiramente um idiota”, disse para si mesmo, em um paroxismo de vergonha e de mal-estar. No entanto, Gavríl Ardaliónovitch, que até então estivera para um canto, em um obstinado silêncio, avançou, e por convite do príncipe, tomou posição ao lado dele e começou calmamente, com muita clareza, a dar conta do caso que lhe fora confiado pelo príncipe. Todas as conversas cessaram instantaneamente. Todos ouviam com extrema curiosidade, especialmente o grupo de Burdóvskii. 

O Idiota: Segunda Parte (8c) - Possivelmente senhores
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