O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Segunda Parte
8.
continuando...
- Possivelmente senhores, muito possivelmente - apressou-se o príncipe em concordar - muito embora eu não saiba a que lei geral se estejam referindo. Mas permitam que eu prossiga e não se ofendam, absolutamente; juro que não tenho a menor intenção de insultar ninguém. E é uma lástima, senhores, que não se possa proferir uma palavra, sinceramente, sem que fiquem logo ofendidos! Mas, em primeiro lugar, foi um terrível choque, saber da existência de um filho de Pavlíchtchev em tão terrível situação como Tchebárov me explicou. Pavlíchtchev foi meu benfeitor e amigo de meu pai. Mas, ah! Por que escreveu o senhor aquelas falsidades a respeito de meu pai, Sr. Keller? Nunca houve apropriação indébita do dinheiro de nenhuma companhia nem maus tratos a subordinados quaisquer. Quanto a isso estou absolutamente convicto! E como pôde o senhor estender a sua mão para escrever tal calúnia? E o que o senhor disse de Pavlíchtchev ultrapassa tudo quanto é suportável. Deu o senhor esse nobre homem como sendo um libertino frívolo, e o fez com tanta audácia e segurança como se realmente estivesse contando a verdade, e todavia, ele foi um dos homens mais virtuosos e castos que já houve no mundo! Era notavelmente culto, costumava corresponder-se com inúmeros cientistas dos mais insignes, e gastou grande parte do seu dinheiro com desenvolvimento da Ciência. Quanto ao seu coração e à sua benemerência. Oh! Sem dúvida estava o senhor completamente com razão ao dizer que eu, naquele tempo, era mais um idiota do que qualquer outra coisa, não tendo a menor noção de nada (apesar de falar russo e até poder entender o que me falassem); mas posso agora apreciar tudo quanto recordo, em seu verdadeiro valor...
- Com licença - guinchou Ippolít -, não
será isso muito sentimental? Nós aqui não somos nenhuma criança. O que
queremos é entrar diretamente na questão. E já são quase dez horas, repare bem.
- Muito bem, senhores - concordou o Príncipe. - Depois da minha primeira
suspeita, ainda pensei que talvez eu me houvesse equivocado e que Pavlíchtchev
tivesse efetivamente um filho. Mas fiquei muitíssimo admirado que aquele filho
desvendasse, tão diligentemente, isto é, quero dizer, tão publicamente o segredo
do seu nascimento, desgraçando o nome de sua mãe. Pois já naquela ocasião
Tchebárov me ameaçava com a Publicidade!
- Coisa ridícula! - comentou o
sobrinho de Liébediev - O senhor não tem o direito. O senhor não tem O direito; -
exclamava Burdóvskii, ao que guinchou com veemência Ippolít: - O filho não é
responsável pelo procedimento imoral do pai, nem a mãe tem do que ser
censurada.
- Mais razão ainda, então, para poupá-la, pensaria eu, no caso - aventurou
singelamente o príncipe.
- O senhor não é tão somente ingênuo, príncipe; vai, talvez, um pouco além... -
chacoteou o sobrinho de Liébediev, maldosamente. - E que direito tinha o senhor?
- ganiu Ippolít, em uma voz deformadíssima.
- Todavia, nenhum. Todavia, nenhum - prontamente redargüiu o príncipe. - Os
senhores têm razão nisso, admito, mas me saiu, e que hei de fazer? E comigo
mesmo eu disse, naquela ocasião, que não devia deixar o meu sentimento pessoal
intervir no caso, porque se considero ser preciso satisfazer a solicitação do Sr.
Burdóvskii por causa do meu sentimento para com
Pavlíchtchev, eu devia satisfazê-la de qualquer modo, mesmo que respeitasse
ou não Sr. Burdóvskii. Apenas fiz tal reparo, senhores, porque me pareceu
anômalo, para um filho, desvendar o segredo materno tão publicamente... E de
fato foi principalmente neste terreno que me capacitei que Tchebárov era um
tratante e tinha instigado o Sr. Burdóvskii a uma tal fraude por dolo.
- Mas isso é
intolerável! - partiu de entre os seus visitantes, alguns dos quais chegaram a se
levantar.
- Senhores, foi justamente então que compreendi que o pobre Sr. Burdóvskii devia
ser uma pessoa simples e sem ajuda, facilmente dominada por cavalheiros de
indústria, e que, por conseguinte, eu precisava ajudá-lo. E o farei como a um
“filho de Pavlíchtchev” - primeiramente, livrando-o do Sr. Tchebárov, em
segundo lugar, oferecendo-lhe os meus amistosos bons ofícios e guia, e, em
terceiro lugar, decidindo dar-lhe dez mil rublos, exatamente quanto, segundo
meus cálculos, Pavlíchtchev deve ter gasto comigo.
- O quê! Só dez mil rublos? -
vociferou Ippolít. - Bem, príncipe, nós somos muito fraquinhos em aritmética, ou
melhor, o senhor é um ás em contas, muito embora se faça de simplório -
zombou o sobrinho de Liébediev.
- Eu não concordo em receber dez mil rublos.
- Segura isso, Antíp! - compelia-o
o boxeador, em um sussurro claro e rápido, inclinando-se para ele por detrás da
cadeira de Ippolít! - Segura isso! E depois veremos!!!
- Escute, Sr. Míchkin - goelou Ippólit -, compreenda bem que nós não somos
cretinos, vulgares cretinos, como provavelmente pensam todas essas suas visitas,
tanto essas damas que nos desprezam condignamente, como esse senhor da alta
sociedade - apontou para Evguénii Pávlovitch - a quem não tenho, naturalmente,
a a honra de conhecer, muito embora cuide já ter ouvido falar em Sua
Excelência.
- Mas, por Deus, os senhores de novo não me entendem - voltou-se o príncipe
para eles, com agitação.
- Em primeiro lugar, Sr. Keller, em seu artigo o senhor descreveu a minha
fortuna muito por ouvir dizer! Eu absolutamente não herdei milhões. Tenho talvez
uma oitava ou uma décima parte do que o senhor supõe. E, em segundo lugar,
dezenas de milhares não foram gastos comigo na Suíça. Pagavam-se a Schneider
seiscentos rublos por ano; e isso mesmo ele só recebeu durante os três primeiros
anos, e Pavlíchtchev nunca foi a Paris para buscar lindas governantas; isso é
outra calúnia. Na minha opinião, muito menos de dez mil rublos foram
gastos comigo, ao todo; mas eu me propus dar dez mil e hão de admitir que eu
não haveria de oferecer ao Sr. Burdóvskii, em pagamento, mais do que lhe era
devido, mesmo que eu simpatizasse imensamente com ele! E não haveria de
fazê-lo por um sentimento de delicadeza apenas, pois lhe deveria pagar o que lhe
era devido e não lhe fazer uma esmola! Não sei por que hão de os senhores se
negar a compreender isto. E além disso, resolvi, por amizade e ativa simpatia,
compensar mais tarde o infeliz Sr. Burdóvskii, que evidentemente fora enganado,
pois não podia ele, de outra maneira, concordar em uma coisa tão baixa como,
por exemplo, essa de dar publicidade a este escândalo referente à sua mãe,
como deixou, no artigo do Sr. Keller... Mas por que estão os senhores ficando
zangados, outra vez? Temos de nos estar equivocando completamente uns aos
outros? Ora, aconteceu o que eu já pensava! Estou convencido agora, pelo que
vejo, que meu pressentimento era correto - tentou a custo o príncipe persuadi-los,
ansioso por pacificar a excitação deles, sem reparar que, ao contrário, a estava
aumentando.
- Convencido agora de quê? - caíram-lhe em cima, quase em fúria.
- Ora, em
primeiro lugar, tive tempo para ver nitidamente quanto o Sr. Burdóvskii se parece
comigo; e agora vejo claramente o que ele é. É um homem inocente, dominado
por qualquer um. Um homem desamparado... E por conseguinte, eu devo ajudá-lo. E, em segundo lugar, Gavríl Ardaliónovitch - a quem o caso foi confiado, e
com quem não falei durante muito tempo porque estive viajando e, depois disso,
doente em Petersburgo, me disse ainda hoje que examinou o dossiê de
Tchebárov, atentamente, acabando por deduzir que Tchebárov é quem eu já
cuidava que fosse. Sei, senhores, que muita gente me considera como um idiota,
e que, dada a minha reputação de jogar fora dinheiro, à vontade, Tchebárov
pensou que podia facilmente vir como impostor sobre mim, contando
principalmente com a minha estima por Pavlíchtchev. Mas o ponto capital
ouçam-me, senhores, ouçam-me bem! - o ponto capital é que está provado
agora que o Sr. Burdóvskii não é em absoluto filho de Pavlíchtchev! Gavríl
Ardaliónovitch acabou de me dizer e me garante que tem legítimas provas disso.
Bem, que pensam os senhores disto? É difícil acreditar em uma coisa destas,
depois da celeuma que foi feita! E escutem, as provas existentes são
positivamente categóricas! Quase não creio ainda, chego a não acreditar,
asseguro-lhes que estou duvidando até, visto Gavríl Ardaliónovitch não ter tido
tempo para me mostrar todos os documentos. Mas que Tchebárov é um tratante,
quanto a isso não há mais dúvida! Ele usou do pobre Sr. Burdóvskii e dos senhores
todos que vieram auxiliar um amigo (notoriamente
ele carece de uma ajuda, compreendo, naturalmente!); abusou dos senhores
todos e os envolveu em um caso fraudulento, pois lhes sustento que de fato se
trata de um dolo; é uma trapaça!
- Como, trapaça!? Então não é filho de Pavlíchtchev? Mas, como assim? - tais
eram as exclamações ouvidas de todos os lados. Todo o bando de Burdóvskii
como que caiu em uma inexpressiva perturbação.
- Sim, naturalmente que é trapaça! Pois se o Sr. Burdóvskii afinal não é mesmo o
filho de Pavlíchtchev, sua reivindicação é simplesmente fraudulenta (claro que
se, no caso, ele soubesse a verdade); mas a coisa é que foi enganado, eis por que
insisto quanto a que seja aclarado o seu caráter! Eis por que digo que ele merece
ser lastimado por sua simplicidade e não pode ser deixado sem auxílio. Se assim
não fosse, também ele seria um tratante. Estou agora convencido que ele não
compreendeu! Eu estava na mesma atuação que ele, quando fui para a Suíça;
também eu tinha o hábito de gaguejar incoerentemente. Tenta uma pessoa se
exprimir e não pode. Compreendam que eu posso simpatizar com ele, muito
bem, sou quase como ele, se é que me é permitido falar assim. Inteiramente
igual! Portanto, não existe nenhum “filho de Pavlíchtchev”; o que houve foi
mistificação; mas, apesar de tudo, mudei de modo de pensar. E estou pronto a lhe
dar dez mil rublos em memória de Pavlíchtchev. Antes do Sr. Burdóvskii aparecer
em cena, já eu tinha resolvido dedicar dez mil rublos à fundação de uma escola
em memória de Pavlíchtchev; mas agora dá no mesmo ser para uma escola ou
para o Sr. Burdóvskíi, pois apesar dele não ser filho de Pavlíchtchev, merece tanto
como se o fosse, por ter sido tão impiedosamente enganado. Piamente acreditou
ele ser filho de Pavlíchtchev! Falem com Gavríl Ardaliónovitch, ouçam-no,
amigos; terminemos com isto! Não se excitem. Sentem-se! Gavríl
Ardaliónovitch lhes explicará tudo diretamente. E confesso que terei muita
satisfação em ouvir também todos os comprovantes. Disse-me ele que foi a
Pskóv ver sua mãe. Sr. Burdóvskii, que absolutamente não morreu como o
fizeram declarar no artigo... Sentem-se, senhores, sentem-se!
O príncipe sentou-se e conseguiu que Burdóvskii e seus amigos se tornassem a
sentar. Durante os dez ou vinte minutos últimos falara alto e impetuosamente,
com uma impaciência precipitada. Quase arrebatado, tentando falar com todos;
e não pôde depois, amargamente, deixar de se arrepender de certas frases e
suposições que então lhe escaparam. Se não se tivesse esgotado a ponto de perder
a serenidade, não teria sido capaz de tão mal
e tão apressadamente pronunciar alto certas conjeturas e certos desnecessários
protestos.
Mal se tinha sentado em seu lugar e já um ardente remorso fazia doer o seu
coração. Além do fato de ter “insultado” Burdóvskii declarando em público
sofrer o mesmo de igual doença de que ele próprio se fora tratar na Suíça, o
oferecimento de dez mil rublos destinados a uma escola tinha sido feito, a seu ver.
grosseiramente e sem delicadeza, como uma caridade. E, ainda por cima, fizera
isso alto, diante de todo o mundo. “Eu devia ter esperado e só lhe fazer esse
oferecimento amanhã, a sós”, pensava o príncipe. “Agora, talvez não tenha sido
correto! Sim, sou um idiota, verdadeiramente um idiota”, disse para si mesmo,
em um paroxismo de vergonha e de mal-estar. No entanto, Gavríl
Ardaliónovitch, que até então estivera para um canto, em um obstinado silêncio,
avançou, e por convite do príncipe, tomou posição ao lado dele e começou
calmamente, com muita clareza, a dar conta do caso que lhe fora confiado pelo
príncipe. Todas as conversas cessaram instantaneamente. Todos ouviam com
extrema curiosidade, especialmente o grupo de Burdóvskii.
continua página 245...
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