sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Swann queria partir - s)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann

ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust

um amor de swann

III(s) 

     Swann queria partir, mas no momento em que ia enfim escapar-se, o general de Froberville lhe pediu para apresentá-lo à sra. de Cambremer, e ele viu-se obrigado a voltar com o outro ao salão, para procurá-la. 

— Olhe, Swann, eu preferia ser marido daquela mulher a ser massacrado pelos selvagens, que me diz?

     Estas palavras, “massacrado pelos selvagens”, vararam dolorosamente o coração de Swann; logo sentiu necessidade de continuar a conversa com o general. 

— Ah! — disse-lhe ele —, houve vidas muito belas que acabaram dessa maneira… Como sabe… esse navegador de que Dumont d’Urville[1] trouxe as cinzas, La Pérouse… (E Swann já se sentia feliz como se houvesse falado de Odette.) É um belo caráter, e que muito me interessa, o de La Pérouse… — acrescentou com um ar melancólico. 
— Ah, perfeitamente, La Pérouse — disse o general. — É um nome conhecido. Tem uma rua.  
— Conhece alguém na rua La Pérouse? — indagou Swann com um ar agitado. 
— Só conheço a senhora de Chanlivault, irmã daquele bravo Chaussepierre. Ela nos deu um lindo sarau de comédia no outro dia. É um pequeno salão que será um dia muito elegante, há de ver! 
— Ah! Ela mora na rua La Pérouse? É simpática: uma rua tão bonita, tão triste. 
— Qual! É que não vai lá há algum tempo: já não é triste, começam a construir em todo aquele bairro.

     Quando enfim Swann apresentou o sr. Froberville à jovem sra. de Cambremer, como era a primeira vez que ela ouvia o nome do general, esboçou o sorriso de alegria e surpresa que teria se nunca se houvesse pronunciado diante dela outro nome senão aquele, pois, desconhecendo os amigos de sua nova família, a cada pessoa que lhe traziam, pensava que era um deles, e julgava então dar mostra de tato, aparentando tê-lo ouvido citar tantas vezes desde que se casara; então estendia a mão com um ar hesitante, destinado a provar a reserva adquirida que tinha de vencer e a simpatia espontânea que triunfava da primeira. De sorte que os seus sogros, que ela ainda julgava as pessoas mais brilhantes da França, declaravam-na um anjo; tanto mais que preferiam parecer, casando-a com o filho, ter antes cedido ao atrativo de suas qualidades que ao de sua grande fortuna.

— Vê-se que a senhora tem alma de musicista — disse o general, aludindo ao episódio do castiçal.

     Mas o concerto recomeçou e Swann compreendeu que não poderia retirar-se antes do fim daquele novo número do programa. Afligia-o ficar preso no meio daquela gente cuja tolice e ridículo tanto mais dolorosamente o feriam porque, ignorando o seu amor, incapazes, se o conhecessem, de por ele interessar-se e de fazer outra coisa senão sorrir como de uma infantilidade ou deplorá-lo como uma loucura, todos lhe faziam aparecer sob o aspecto de um estado subjetivo que só existia para ele, Swann, e de que nada de exterior afirmava a realidade; sofria sobretudo, e a tal ponto que até o som dos instrumentos lhe dava desejos de gritar, por prolongar seu exílio naquele lugar aonde Odette jamais viria, onde ninguém, onde nada a conhecia, de onde ela estava de todo ausente. 
     Mas de súbito foi como se ela tivesse entrado, e essa aparição foi para ele uma dor tão dilacerante que teve de levar a mão ao peito. É que o violino subira a notas altas onde permanecia como para uma espera, uma espera que se prolongava sem que o instrumento cessasse de as sustentar, na exaltação em que estava de já perceber o objeto da sua espera que se aproximava, e com um desesperado esforço para durar até sua chegada, acolhê-lo antes de expirar, manter-lhe ainda um momento com todas as suas derradeiras forças o caminho aberto para que ele pudesse passar, como se sustenta uma porta que sem isso se fecharia. E antes que Swann tivesse tempo de compreender e dizer consigo: “É a pequena frase da sonata de Vinteuil, não escutemos!”, todas as lembranças do tempo em que Odette estava enamorada dele e que até aquele dia conseguira manter invisíveis nas profundezas de seu ser, iludidas por aquela brusca revelação do tempo de amor que lhes parecia ter voltado, despertaram e subiram em revoada para lhe cantar apaixonadamente, sem piedade para com seu atual infortúnio, os refrões esquecidos da felicidade.
     Em vez das expressões abstratas “tempo em que eu era feliz”, “tempo em que eu era amado” que tantas vezes pronunciara até então e sem muito sofrer, pois sua inteligência só encerrara ali algumas pretensas amostras do passado que dele nada conservavam, Swann reencontrou tudo o que havia fixado para sempre a específica e volátil essência daquela felicidade perdida; reviu tudo, as pétalas nevadas e crespas do crisântemo que ela lhe lançara no carro, que ele apertara contra os lábios — o timbre em relevo da Maison Dorée na carta em que ele tinha lido: “Minha mão treme tanto ao escrever-lhe” —, a aproximação de suas sobrancelhas quando ela lhe dissera num ar súplice: “Não vai ser daqui a muito tempo que me fará sinal?”; sentiu o odor do ferro do cabeleireiro que lhe ajeitava a escovinha, enquanto Lorédan ia buscar a pequena operária, os temporais que caíram tão seguidamente naquela primavera, o regresso glacial em sua vitória, ao luar, todas as malhas de hábitos mentais, de impressões de estação, de reações cutâneas, que haviam estendido sobre uma sequência de semanas uma rede uniforme em que seu corpo se achava novamente preso. Naquele momento satisfazia ele uma curiosidade voluptuosa, conhecendo os prazeres das criaturas que vivem pelo amor. Julgara que poderia agarrar-se àquilo, que não seria obrigado a conhecer-lhe as dores; quão pouco lhe significava agora o encanto de Odette perto daquele formidável terror que o prolongava como um halo turvo, aquela imensa angústia de não saber a cada momento o que ela fazia, de não possuí-la em toda parte e sempre! Lembrou-se do tom com que ela exclamara: “Mas eu sempre poderei vê-lo, estou sempre livre!”, ela que jamais o estava! O interesse, a curiosidade que tivera pela vida dele, o apaixonado desejo de que ele lhe fizesse o favor — temido por ele naquele tempo como uma causa de aborrecidos transtornos — de deixá-la penetrar em sua vida; como fora obrigada a rogar-lhe para que se deixasse conduzir à casa dos Verdurin; e, quando a fazia vir à sua casa uma vez por mês, como fora preciso, antes que ele se deixasse dobrar, que Odette lhe repetisse a delícia que havia de ser aquele hábito de se verem todos os dias com que ela sonhava e que a ele apenas parecia um fastidioso incômodo, hábito de que ela depois se desgostara e definitivamente rompera, ao passo que se tornara para ele uma necessidade tão invencível e dolorosa. Não saberia dizer o quanto fora verdadeiro quando, na terceira vez em que a via, como ela lhe repetisse: “Mas por que não me deixa vir mais seguido?”, respondera-lhe, num galanteio: “Por medo de sofrer”. Ai!, agora, ainda às vezes acontecia que ela lhe escrevesse de um restaurante ou de um hotel em papel que trazia impresso o nome do estabelecimento; mas era como se letras de fogo o queimassem. “Escrito do Hotel Vouillemont?[2] Que terá ido lá fazer? Com quem? Que se passou?”. Recordou os lampiões que se apagavam no bulevar dos Italianos quando a encontrara, contra todas as esperanças, entre as sombras errantes, naquela noite que lhe parecera quase sobrenatural e que, com efeito — noite de um tempo em que nem sequer precisava indagar consigo se não a contrariaria ao procurá-la, ao encontrá-la, tão certo estava de que ela não tinha maior alegria do que vê-lo e regressar com ele —, bem pertencia a um mundo misterioso para onde jamais se pode voltar depois que as suas portas se fecharam. E Swann percebeu, imóvel em face daquela felicidade revivida, um infeliz que lhe causou piedade porque não o reconheceu logo, tanto que teve de baixar os olhos para que não vissem que estavam cheios de lágrimas. Era ele próprio.
     Quando o compreendeu, sua piedade cessou, mas sentiu ciúmes do outro ele próprio que ela havia amado, ciúmes daqueles de quem pensara sem muito sofrer: “Ela decerto os ama”, agora que tinha trocado a ideia vaga de amar, na qual não há amor, pelas pétalas do crisântemo e o timbre da “Maison d’Or”, estes sim, cheios de amor. Depois, como o seu sofrimento se tornasse demasiado vivo, passou a mão pela fronte, deixou tombar o monóculo, enxugou-lhe o vidro. E sem dúvida, se se tivesse visto em tal momento, acrescentaria à coleção daqueles que estudara, o monóculo que lhe removia como um pensamento importuno e sobre cuja embaciada face procurava, com um lenço, apagar cuidados.
     Há no violino — quando não se vê o instrumento e não se pode ligar o que se ouve à sua imagem, coisa que modifica a sonoridade — acentos que lhe são tão comuns com certas vozes de contralto, que se tem a ilusão de que uma cantora veio juntar-se ao concerto. Erguemos os olhos e só vemos as caixas dos violinos, preciosas como estojos chineses, mas, por um momento, ainda nos iludimos com o enganoso apelo da sereia; às vezes também se julga ouvir um gênio cativo que se debate no fundo da sábia caixa, enfeitiçada e fremente, como um diabo numa pia d’água benta; ou então é no ar que o sentimos, como um ser sobrenatural e puro que passasse desenrolando a sua invisível mensagem.
     Como se os instrumentistas estivessem, mais que tocando a frase, executando os ritos por ela exigidos para aparecer e procedendo aos sortilégios necessários para conseguir e prolongar por alguns instantes o prodígio da sua evocação. Swann, que tanto não a podia ver qual se ela pertencesse a um mundo ultravioleta, e que gozava como que o refrigério de uma metamorfose na momentânea cegueira que o acometia ao aproximar-se dela, Swann a sentia presente, como uma deusa protetora e confidente do seu amor e que, para chegar até ele diante da multidão, e levá-lo à parte para lhe falar, tomava o disfarce daquela aparência sonora. E enquanto passava, leve, apaziguadora e murmurada como um perfume, dizendo-lhe o que tinha a dizer, e de que ele perscrutava todas as palavras, lamentando vê-las fugirem tão depressa, Swann fazia sem querer o gesto de beijar de passagem o corpo harmonioso e fugitivo. Já não se sentia exilado e só, visto que ela, que se dirigia a ele, lhe falava a meia-voz de Odette. Pois já não tinha, como outrora, a impressão de que Odette e ele eram desconhecidos da pequena frase. Tantas vezes fora ela testemunha das alegrias de ambos! É verdade que muitas vezes o advertira da fragilidade daquelas alegrias. E ao passo que naquela época adivinhava sofrimento no seu sorriso, na sua entonação límpida e desencantada, agora lhe achava antes a graça de uma resignação quase alegre. Dessas mágoas de que ela outrora lhe falava e que ele a via arrastar sorrindo em seu curso sinuoso e rápido sem ser por elas atingido, dessas mágoas que agora se haviam tornado suas sem que tivesse a esperança de jamais se libertar delas, ela lhe parecia dizer, como o dissera, antes, da sua felicidade: “Que é isso? Não é nada, isso tudo”. E pela primeira vez o pensamento de Swann se transportou, num impulso de piedade e ternura, para aquele Vinteuil, para aquele irmão desconhecido e sublime que tanto deveria ter sofrido também; qual teria sido a sua vida? Ao fundo de que dores fora ele buscar aquela força de Deus, aquele poder ilimitado de criar? Quando era a pequena frase que lhe falava da inconsistência de seus sofrimentos, Swann achava até certa doçura naquela mesma sabedoria que no entanto momentos antes lhe parecera intolerável quando julgava lê-la no rosto dos indiferentes que consideravam o seu amor com uma divagação sem importância. É que a pequena frase, pelo contrário, qualquer que fosse o seu juízo sobre a brevidade desses estados d’alma, via nisso alguma coisa, não como o fazia toda aquela gente, de menos sério que a vida positiva, mas, antes, de tão superior a ela, que só isso valia a pena ser expresso. Todos os encantos de uma tristeza íntima, era a eles que ela tentava imitar e recriar, e até a sua própria essência, que consiste em serem incomunicáveis e parecerem frívolos a qualquer outra pessoa que não seja a que os experimenta, a pequena frase a havia captado e tornado visível. De tal sorte que fazia confessar seu valor e gozar sua divina doçura, àqueles mesmos ouvintes — desde que tivessem um mínimo de pendor musical — que em seguida os desconheceriam na vida, em cada amor particular que vissem nascer perto de si. Por certo a forma sob a qual ela os codificara não podia resolver-se em raciocínios. Mas fazia mais de um ano que, revelando a si mesmo muitas riquezas da sua própria alma, lhe nascera, ao menos por algum tempo, o amor à música, e Swann considerava os motivos musicais como verdadeiras ideias, de um outro mundo, de uma outra ordem, ideias veladas de trevas, desconhecidas, impenetráveis à inteligência, mas que nem por isso deixam de ser perfeitamente distintas umas das outras, desiguais de valor e significado. Ao fazer tocar de novo a pequena frase, após a reunião dos Verdurin, procurara saber de que modo ela o aliciava e envolvia, como um perfume, uma carícia, e averiguara que era ao leve afastamento das cinco notas que a compunham e ao retorno constante de duas dentre elas que se devia aquela impressão de retraída e trêmula doçura; mas na verdade sabia que assim raciocinava não sobre a própria frase, mas sobre simples valores que colocara, para comodidade da inteligência, no lugar da misteriosa entidade que havia vislumbrado, antes de conhecer os Verdurin, naquela reunião em que ouvira a sonata pela vez primeira. Sabia que até a lembrança do piano falseava ainda o plano em que via as coisas da música, que o campo aberto ao músico não é um mesquinho teclado de sete notas, mas um teclado incomensurável, ainda quase completamente desconhecido, onde apenas aqui e ali, separadas por espessas trevas inexploradas, algumas dos milhões de teclas de ternura, de paixão, de coragem, de serenidade que o compõem, cada qual tão diferente das outras como um universo de outro universo, foram descobertas por alguns grandes artistas que, despertando em nós o correspondente do tema que encontraram, nos prestam o serviço de mostrar-nos que riqueza, que variedade oculta, sem o sabermos, esconde essa grande noite indevassada e desalentadora da nossa alma, que nós consideramos como vácuo e nada. Vinteuil fora um desses músicos. Na sua pequena frase, embora apresentasse à razão uma superfície obscura, sentia-se um conteúdo tão consistente, tão explícito, ao qual emprestava uma força tão nova, tão original, que aqueles que a tinham ouvido a conservavam em si no mesmo plano que as ideias do entendimento. Swann se reportava a ela como uma concepção da felicidade e do amor e cuja peculiaridade sabia ele imediatamente tão bem em que consistia, como o sabia quanto à Princesa de Clêves ou a René, quando esses nomes se lhe apresentavam à memória. Mesmo quando não pensava na pequena frase, ela existia latente em seu espírito, da mesma forma que algumas outras noções sem equivalente, como as noções de luz, de som, de relevo, de volúpia física, que são as ricas posses com que se diversifica e realça o nosso domínio interior. Talvez as percamos, talvez se extingam, se voltarmos ao nada. Mas, enquanto vivermos, e tal como acontece no tocante a qualquer objeto real, não podemos fazer como se as não tivéssemos conhecido, como não podemos, por exemplo, duvidar da luz da lâmpada que se acende diante dos objetos metamorfoseados de nosso quarto, de onde se escapou até a lembrança das trevas. Assim, a frase de Vinteuil, como determinado tema de Tristão, por exemplo, que nos representa também certa aquisição sentimental, havia esposado a nossa condição mortal e adquirido algo de humano que era assaz comovedor. Sua sorte estava ligada ao futuro e à realidade da nossa alma, de que ela era um dos ornamentos mais particulares, mais diferenciados. Talvez o nada é que seja a verdade e todo o nosso sonho não exista, mas sentimos que então essas frases musicais, essas noções que existem em função do sonho, não hão de ser nada, tampouco. Pereceremos, mas temos como reféns essas divinas cativas que seguirão a nossa sorte. E a morte com elas tem alguma coisa de menos amargo, de menos inglório, de menos provável, talvez.
     Swann não se enganava, pois, em crer que a frase da sonata realmente existia. Humana desse ponto de vista, pertencia no entanto a uma ordem de criaturas sobrenaturais que nunca vimos mas que apesar disso reconhecemos enlevados quando algum explorador do invisível chega a captar uma delas, a trazê-la, do mundo divino a que ele tem acesso, para brilhar alguns instantes acima do nosso. Era o que fizera Vinteuil com a pequena frase. Sentia Swann que o compositor se contentara, com os seus instrumentos de música, em desvelá-la, torná-la visível, em lhe seguir e respeitar o desenho com mão tão sensível, tão prudente, tão delicada e tão segura que o som se alterava a todo momento, esfumando-se para indicar uma sombra, revivescendo quando era preciso seguir um contorno mais ousado. E uma prova de que Swann não se enganava ao acreditar na existência real daquela frase era que qualquer amador um pouco atilado logo se aperceberia da impostura se Vinteuil, com menos poder para divisar e transmitir as suas formas, houvesse procurado dissimular as lacunas de sua vista ou a inabilidade de seus dedos, acrescentando-lhe aqui e ali alguns toques de sua própria invenção.

continua na página 228...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Swann queria partir - s)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Dumont d’Urville (1790-1842) é o navegador francês que deu a volta ao mundo e encontrou em Vanikoro os restos da expedição do navegador La Pérouse. [n. e.]
[2] Hotel elegante da rua Boissy-d’Anglas. [n. e.]

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