sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Dispersas LXXXIII - Imutável

Cruz e Sousa


Obra Completa
Volume 1
POESIA


O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos


DISPERSAS 

IMUTÁVEL 
(Revista do Norte, 1 ago., 1902)

Morrem as virgens, nos seus leitos castos, 
Entre a mole e finíssima cambraia... 
E a lua fria nos espaços vastos 
Serenamente dentre as nuvens raia. 

O ocaso da velhice a fronte enturva 
E faz entristecer como um outono... 
E o sol na doce e fulgente curva 
Surge acordando os vegetais do sono. 

A Dor lanceia os peitos lutadores 
E rasga fundo a carne nas entranhas... 
Pelas campinas vão brotando flores, 
Brotam flores pelo alto das montanhas. 

Brilha o sorriso cândido da infância 
Na pequenina boca perfumada... 
O espinho, o cardo, as urzes sem fragrância 
Brilham também aos cantos de alvorada. 

As lágrimas rebentam-nos dos olhos 
Em turvos rios de atros sentimentos... 
O mar bravio ruge nos escolhos 
E estoura sob as convulsões do vento. 

As mães, no berço, embalam docemente 
Os filhos, com os mais íntimos carinhos... 
Nas árvores do campo recendente 
Vão as serpentes devorando os ninhos. 

Passa na estrada um límpido noivado 
Cheiroso a rosa e a flor de laranjeira... 
O coveiro, já velho e encarquilhado 
Abre uma cova à sombra da nogueira. 

Ó profundo contraste incomparável, 
Eterna lei, ciclópica ironia... 
Como tu és estranha e formidável! 
Força impassível! Natureza fria! 


O SOL E O CORAÇÃO

Sol, coração do Espaço que flamejas, 
O coração é qual tu, sol de utopias... 
Mas, coração, dize-me: – Que desejas?... 

Foram-se já todas as alegrias, 
Ó Sol! E tu, coração, que ainda adejas, 
Que fazes sobre as mortas fantasias?!... 

Podes brilhar, ó Sol, vivo e fulgente! 
E tu, coração, que me iludiste, 
Também podes bater, inutilmente. 

Crença, Ilusão, Amor, já nada existe, 
Não mais levarás sobre a corrente 
Da tenebrosa dúvida mais triste. 

Longe, mui longe, em regiões caladas, 
Emudecidos pelo Esquecimento, 
Estão hoje esses sonhos de alvoradas. 

Foram-se, há muito, soltos pelo vento 
Entre as grandes ruínas derrocadas 
Do meu amargo e pobre pensamento, 

Entre as profundas, tétricas ruínas 
Em que o doce fantasma desses sonhos 
Atravessou em lágrimas divinas. 

Fantasma ideal, de cânticos risonhos, 
Que da vida encontrei pelas colinas 
E hoje vaga entre bulcões medonhos! 

Fantasma que eu amei, visão errante 
Que sempre junto a mim vivia perto, 
Por mais longe que eu fosse e mais distante.  

Visão que era como a água do deserto 
Para o meu coração sempre anelante, 
Sequioso de amor e sempre aberto... 

Ó pobre coração, em vão te agitas, 
Em vão tu bates, coração estreito, 
Tal qual tu, Sol, nos páramos crepitas. 

Nada mais, para mim, de satisfeito 
Brilha com o Sol nas plagas infinitas, 
Como não canta o coração no peito... 

Podes, enfim, sumir-te nos Espaços, 
Sol! E tu, coração, sempre batendo, 
Quebrar da terra os “Transitórios Laços” 
Eternamente desaparecendo!... 



Primeira comunhão





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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.
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Organização e Estudo
Lauro Junkes
Presidente da Academia Catarinense de Letras
© Copyright 2008
Avenida Gráfica e Editora Ltda.
Projeto Gráfico, Editoração e Capa
ESPAÇO CRIAÇÃO ARQUITETURA DESIGN E COMPUTAÇÃO GRÁFICA LTDA.
www.espacoecriacao.com.br
Fone/Fax: (48) 3028.7799
Revisão Linguístico-Ortográfica
PROFª Drª TEREZINHA KUHN JUNKES
PROF. Dr. LAURO JUNKES
Impressão e Acabamento
Avenida Gráfica e Editora Ltda.
Formato
14 x 21cm

FICHA CATALOGRÁFICA

Catalogação na fonte por M. Margarete Elbert - CRB14/167
S725o      Sousa, Cruz e, 1861-1898
                        Obra completa : poesia / João da Cruz e Sousa ; organização
                  e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008.
                         v. 1 (612 p.)
                         Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do
                  traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.
                            1. Sousa, Cruz e, 1861-1898. 2. Poesia catarinense. I.
                  Junkes, Lauro. II. Titulo.
                                                                                      CDU: 869.0(816.4)-1

"A gente só tem saída na poesia."

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