segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - m)

em busca do tempo perdido

volume II
À Sombra das Moças em Flor

Primeira Parte
Ao Redor da Sra. Swann


(m)

continuando...

     A mania de Swann de descobrir semelhanças no terreno da pintura era defensável, pois mesmo aquilo a que chamamos expressão individual é-como percebemos com tanta tristeza quando amamos e gostaríamos de acreditar na realidade única do indivíduo-algo bem geral e que pôde encontrar-se em épocas diversas. Mas a julgar por Swann, os cortejos dos Reis Magos, já tão anacrônicos quando Benozzo Gozzoli aí introduziu os Médicis, muito mais o seriam ainda, visto conterem o retrato de uma multidão de homens contemporâneos, não de Gozzoli mas de Swann, ou seja, posteriores não mais somente de quinze séculos à Natividade, mas de quatro séculos ao próprio pintor. Nesses cortejos não havia, segundo Swann, um só parisiense importante que estivesse faltando, como naquele ato de uma peça de Sardou, no qual, por amizade ao autor e à principal intérprete, e também por moda, todas as notabilidades parisienses, médicos célebres, homens políticos, advogados, vieram, para divertir-se, cada qual numa noite, apresentar-se em cena. 

- Mas que relação tem ela com o Jardim da Aclimação? 
- Todas! - O que imagina, Odette? Acha que ela tem um traseiro azul-celeste como os macacos? 
- Charles, você é de uma inconveniência! Não, eu pensava no termo que lhe disse o cingalês. Conte-lhe, é na verdade uma palavra espirituosa. 
- É uma idiotice. Você sabe que a Sra. Blatin gosta de interpelar todo mundo com um ar que julga ser amável e sobretudo protetor.  
- O que os nossos bons vizinhos do Tâmisa denominam patronizing - interrompeu Odette. 
- Ela foi ultimamente ao Jardim da Aclimação onde há negros, cingaleses, creio, disse minha mulher que é muito mais forte em etnografia do que eu. 
- Ora, Charles, não caçoe. 
- Mas não estou caçoando de jeito nenhum. Afinal, ela se dirigiu a um desses negros: "Bom dia, negro!" - Não era nada! 
- Em todo caso, o qualificativo não agradou ao negro: "Eu negro?",- disse ele furioso à Sra. Blatin, "mas tu camelo!" 
- Acho muito engraçado! Adoro essa anedota. Não é "linda"? Parece que a gente vê a Sra. Blatin: "Eu negro, mas tu camelo!"

     Manifestei muita vontade de ir ver os cingaleses, um dos quais chamara a Sra. Blatin de camelo. Eles absolutamente não me interessavam. Mas eu pensava que, para ir ao Jardim da Aclimação e depois voltar, atravessaríamos aquela alameda das Acácias onde admirara tanto a Sra. Swann, e que talvez o mulato amigo de Coquelin, a quem jamais pudera me mostrar saudando a Sra. Swann, me visse sentado ao lado dela no fundo de uma vitória.
     Durante esses minutos em que Gilberte, tendo saído para se preparar, não estava conosco no salão, o Sr. e a Sra. Swann se agradavam em me revelar as raras virtudes da filha. E tudo o que observava parecia provar que falavam a verdade. Notei que, como sua mãe me dissera, ela tinha não só com suas amigas, mas para os criados, para os pobres, atenções delicadas, demoradamente refletidas, um desejo de agradar e um medo de descontentar, que se traduziam por pequenas coisas que muitas vezes lhe faziam muito mal. Fizera um trabalho para a nossa vendedora dos Champs-Élysées e saiu pela neve para entregá-lo sem um dia de atraso.

- Você nem imagina o que é o seu coração, pois ela o oculta.- dizia o pai.

     Tão jovem, parecia muito mais ajuizada que os pais. Quando o Sr. Swann falava das grandes amizades da esposa, Gilberte desviava a cabeça para outro lado, sem ar de censura, pois o pai não lhe parecia poder ser objeto da mais leve crítica. Um dia em que lhe falei da Srta. Vinteuil, ela me disse: 

- Jamais a conhecerei, por um motivo: é que ela não era amável com seu pai; pelo que se diz, causava-lhe desgosto. Não poderá você compreender isto como eu, não é mesmo? Você que não poderia, sem dúvida, sobreviver, como eu ao meu, o que aliás é muito natural. Como esquecer algum dia alguém a quem se amou sempre?

     E certa vez em que se mostrou mais especialmente carinhosa e como lhe observei quando ele estava longe: 

- Sim, pobre papai, foi por estes dias o aniversário da morte do seu pai. Você pode entender o que deve estar sentindo, compreende isto, sentimos sobre essas coisas. Então procuro ser menos má que de costume. 
- Seu pai não a considera má, acha-a perfeita. -Pobre papai, é porque ele é muito bom.

     Seus pais não me fizeram apenas o elogio da filha esse mês; mesmo antes que a tivesse conhecido, me aparecia diante de uma igreja, numa paisagem da Ìle-de-France, e que a seguir, evocando-me não mais sonhos e sim minhas recordações, estava sempre diante da sebe de espinheiros na ladeira por onde eu ia para os lados de Méséglise. Como pergunta Swann, esforçando-me para assumir o tom indiferente de um amigo curioso das preferências de uma criança, quais eram, dentre os companheiros de Gilberte, aqueles de quem ela mais gostava, a Sra. Swann respondeu: 

- Mas você deve estar mais adiantado que eu sobre tais confidências que é o predileto, o grande crack, como dizem os ingleses.

     Sem dúvida, nessas coincidências tão perfeitas, quando a realidade a dobrar-se incide sobre o que sonhamos por muito tempo, ela nos oculta inteiramente, se confunde com ele, como duas figuras iguais e superpostas quase formando somente uma, enquanto, pelo contrário, para dar todo o seu significado de alegria, gostaríamos de manter em todos os nossos desejos, no momento em que os tocamos - e para estarmos bem certos de que são eles o prestígio de serem intangíveis. E o pensamento não pode sequer voltar ao antigo estado para confrontá-lo com o novo, pois já não dispõe de campo livre; o conhecimento que adquirimos, a lembrança dos primeiros minutos inesperados, as frases que ouvimos, são o que obstruem a entrada da nossa consciência, comandam muito mais as aberturas da nossa memória do que as da nossa imaginação, e retroagem mais sobre o nosso passado que já não somos senhores de levá-los em conta, do que sobre a forma, ainda livre, do nosso futuro. Durante muito tempo eu acreditara que ir à casa da Sra. Swann era uma vaga quimera que jamais alcançaria; depois de haver passado um quarto de hora em sua casa, foi o tempo em que não a conhecia que se tornou quimérico e vago como uma possibilidade que a realização de outra possibilidade aniquilou. Como poderia sonhar ainda com a sala de jantar como se fosse um lugar inacessível, quando não podia fazer um movimento de espírito sem dar com os raios infrangíveis que dele emitia ao infinito, até o meu passado mais distante, a lagosta americana que acabava de comer? Swann devia ter visto ocorrer algo semelhante, no que lhe dizia respeito: pois o apartamento em que me recebia podia ser considerado o lugar em que tinham ido confundir-se e coincidir, não só o apartamento ideal que minha imaginação havia engendrado, mas um outro ainda, o que o amor ciumento de Swann, tão inventivo como os meus sonhos, lhe descrevera tantas vezes; aquele apartamento comum a ele e a Odette que lhe parecera tão inacessível naquela noite em que Odette o levara com Forcheville para tomar laranjada em sua casa; e o que, para ele, viera absorver-se no plano da sala de jantar onde comíamos, era aquele paraíso inesperado onde outrora ele não podia imaginar, sem perturbar-se, que diria ao mordomo deles estas mesmas palavras:

- "Madame está pronta?", que eu lhe ouvia pronunciar agora com leve impaciência mesclada a uma certa satisfação de amor-próprio. E, sem dúvida, não mais do que o podia Swann, eu não chegava a conhecer a minha própria felicidade, e quando Gilberte exclamou: 
- Quem diria que a menininha que você olhava sem lhe falar, que jogava barras, seria a grande amiga em cuja casa você iria todos os dias que quisesse?! - estava falando de uma mudança que eu era obrigado a considerar de fora, mas que não possuía internamente, pois se compunha de dois estados em que não conseguia pensar ao mesmo tempo, sob pena de que cessassem de ser distintos um do outro. 

    No entanto, esse apartamento, visto que fora desejado tão ardentemente por sua vontade, devia conservar para Swann uma certa doçura, se o julgasse por mim, para quem não perdera todo seu mistério. O encanto singular, no qual eu durante tanto tempo imaginara banhar-se a vida dos Swann, não o expulsara inteiramente da sua residência ao penetrar nela; fizera-o recuar, dominado que fora por esse estranho, esse pária que eu tinha sido e para o qual a Srta. Swann empurrava graciosamente, para que se sentasse, uma poltrona deliciosa, hostil e escandalizada; porém esse encanto, percebo-o ainda na minha recordação. Seria porque, nesses dias em que o Sr. e a Sra. Swann me convidavam para almoçar, e logo depois para sair com eles e Gilberte, eu imprimia com meu olhar - enquanto esperava sozinho sobre o tapete, as poltronas, os consolos, os biombos, os quadros, com a ideia, em mim gravada, de que a Sra. Swann ou o marido, ou Gilberte iam entrar? Seria porque tais coisas viveram desde então na minha memória, ao lado dos Swann acabaram por assumir alguma coisa deles? Seria porque, sabendo que eles passavam sua existência no meio delas, fazia de todas elas como que os emblemas de sua vida particular, de seus hábitos dos quais fora por tão longo tempo que me continuaram a parecer estranhos mesmo quando me fizeram misturar-me à eles? E sempre que penso nesse salão que Swann (semelhante crítica implicasse de sua parte a intenção de não contrariar em nada os de sua mulher) achava tão disparatado, pois sendo todo ele concebido ainda que do gosto meio estufa, meio ateliê, do apartamento em que conhecera entretanto começara a substituir naquela embrulhada um certo número chineses; que agora julgava um tanto "artificiais", "fora de moda", por um de pequenos móveis forrados de velhas sedas Luís XVI (sem contar as o trazidas por Swann do apartamento do cais de Orléans) -, na minha memória existe, ao contrário, naquele salão composto, uma coesão, uma unidade, um encanto individual; que nunca sequer tiveram os mais intactos conjuntos que nos legou no passado; nem ainda, os mais vivos onde se assinala a marca que somente nós podemos, pela crença de que têm uma existência própria, certas coisas que vemos uma alma, que a seguir conservam-se dentro de nós. Todas as ideias que eu formava das horas diversas que existem para os outros homens, que os Swann passavam naquele apartamento; que significava, para o tempo cotidiano de suas vidas, o que o corpo é para a alma e que devia exprimir sua singularidade, todas essas ideias estavam repartidas amalgamadas por toda a parte igualmente perturbadoras e indefiníveis nos móveis, na espessura dos tapetes, na orientação das janelas, no serviço doméstico. Quando, após o almoço, íamos tomar café ao sol, na grande janeta enquanto a Sra. Swann me perguntava qual a quantidade de açúcar que colocava no café, não era apenas o tamborete forrado de seda, que ela chegava que desprendia com o encanto doloroso que eu percebera outrora espinheiro-rosa e depois ao lado do bosque de loureiros no nome de Gilberte, a hostilidade que me haviam testemunhado seus pais e que este pequeno móvel - parecia ter sabido e partilhado tão bem, que eu não me sentia digno e um tanto desprezível de impor meus pés no seu estofamento sem defesa: uma alma pessoal ligava-o secretamente à luz das duas horas da tarde, diferente do que era por toda a parte, além, no golfo, onde fazia brincar à nossos pés suas ondas de ouro em meio às quais os canapés azulados e as vaporosas tapeçarias como ilhas encantadas; e até o quadro de Rubens, pendurado sobre a lareira; também do mesmo gênero e quase a mesma força de encanto que as laçadas do Sr. Swann e o mantô de pelerine, que eu tanto desejara ter um igual. Agora a Sra. Swann pedia ao marido que substituísse por outro, parecia mais elegante, quando lhes dava a honra de sair com eles. Ela também ia se vestir, embora eu protestasse que nenhuma roupa de passeio nem de longe era maravilhoso como o chambre de crepe da China ou de seda, rosa murcho, Tiepolo, branco, malva, verde, vermelho, amarelo liso ou com desenho, que a Sra. Swann havia almoçado e que ia tirar. Ao dizer que ela deveria sair assim, a Sra. Swann ria, troçando da minha ignorância ou de prazer pelo meu cumprimento, desculpava-se de possuir tantos peignoirs, por achar que somente com eles é que se sentia à vontade, e nos deixou, para ir pôr um desses vestidos majestosos que se impõem a todos e entre os quais, no entanto, eu era por vezes chamado a escolher aquele que preferia que ela vestisse.
     No Jardim da Aclimação, como eu me mostrava orgulhoso ao descer do carro e poder andar ao lado da Sra. Swann! Enquanto, em seu andar despreocupado, a Sra. Swann deixava flutuar a capa, lançava-lhe olhares de admiração aos quais ela correspondia, de maneira coquete, com um largo sorriso. Agora, se encontrávamos um ou outro dos companheiros, menino ou menina, de Gilberte, que de longe nos saudava, eu era por minha vez olhado por eles como uma dessas criaturas que tanto invejara, um dos amigos de Gilberte que conheciam sua família e estavam associados à outra parte de sua vida, a que não se passava nos Champs-Élysées.
     Frequentemente, nas alamedas do Bois ou do Jardim da Aclimação, cruzávamos e éramos saudados por esta ou aquela grande amiga de Swann, que ele não chegava a ver e que sua mulher lhe apontava:

- "Charles, não está vendo a Sra. de Montmorency?" E Swann, com o sorriso amistoso devido a uma longa familiaridade, no entanto se descobria largamente com uma elegância própria dele. Às vezes a dama parava, feliz por fazer uma gentileza à Sra. Swann, gentileza sem maiores conseqüências e da qual sabia que a Sra. Swann não se aproveitaria a seguir, pois Swann a acostumara a tomar uma atitude de reserva. Mas Odette assumira todas as maneiras da sociedade e, por mais elegante e nobre que fosse o porte da dama, ela a igualava sempre; parada por um instante junto da amiga que o marido acabava de encontrar, apresentava-nos, a mim e a Gilberte, com tanta desenvoltura, conservava tanta liberdade e tanta calma em sua gentileza, que teria sido difícil dizer qual das duas era a dama, a esposa de Swann ou a aristocrata a passeio. No dia em que fomos ver os cingaleses, percebemos, na volta, vindo em nossa direção e seguida de duas outras que pareciam escoltá-la, uma dama idosa mas bonita ainda, envolta num mantô escuro e com uma pequena touca presa ao pescoço por duas fitas. 
- Ah, eis alguém que vai lhe interessar! - Disse-me Swann. - A velha senhora, já a poucos passos de nós, sorria com terna doçura. - Swann se descobriu, Odette se inclinou numa reverência e quis beijar a mão da dama semelhante a um quadro de Winterhalter, que a ergueu e beijou. 
- Ora, ponha o seu chapéu - disse ela a Swann; com voz grossa e um tanto zangada da amiga da família. - Vou lhe apresentar a Sua Alteza Imperial - disse-me a Sra. Swann. Swann me tomou à parte por um instante, quanto a Odette conversava com a alteza sobre o bom tempo e os novos animais chegados ao Jardim da Aclimação. 
- É a princesa Mathilde - disse-me ele – Você sabe, é a amiga de Flaubert, de SainteBeuve, de Dumas. Imagine, é a sobrinha de Napoleão II. Foi pedida em casamento por Napoleão III e pelo imperador da Rússia. Não é interessante? Fale um pouco com ela. Mas preferia não ficar parado aqui durante uma hora. E, dirigindo-se à velha disse: 
- Encontrei-me com Taine. Disse-me que a princesa está zangada com ele. 
- Comportou-se como um porco [em francês, cochon] - disse ela em voz áspera chiando a palavra como se se tratasse do nome do bispo contemporâneo de Joanna d'Arc [Cauchon]. - Depois do artigo que escreveu sobre o Imperador, dei-lhe cartão de despedida. 

continua na página 49...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - k)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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