volume II
À Sombra das Moças em Flor
Primeira Parte
Primeira Parte
Ao Redor da Sra. Swann
(m)
continuando...
A mania de Swann de descobrir semelhanças no terreno da pintura era defensável, pois mesmo aquilo a que chamamos expressão individual é-como percebemos com tanta tristeza quando amamos e gostaríamos de acreditar na realidade única do indivíduo-algo bem geral e que pôde encontrar-se em épocas diversas. Mas a julgar por Swann, os cortejos dos Reis Magos, já tão anacrônicos quando Benozzo Gozzoli aí introduziu os Médicis, muito mais o seriam ainda, visto conterem o retrato de uma multidão de homens contemporâneos, não de Gozzoli mas de Swann, ou seja, posteriores não mais somente de quinze séculos à Natividade, mas de quatro séculos ao próprio pintor. Nesses cortejos não havia, segundo Swann, um só parisiense importante que estivesse faltando, como naquele ato de uma peça de Sardou, no qual, por amizade ao autor e à principal intérprete, e também por moda, todas as notabilidades parisienses, médicos célebres, homens políticos, advogados, vieram, para divertir-se, cada qual numa noite, apresentar-se em cena.
A mania de Swann de descobrir semelhanças no terreno da pintura era defensável, pois mesmo aquilo a que chamamos expressão individual é-como percebemos com tanta tristeza quando amamos e gostaríamos de acreditar na realidade única do indivíduo-algo bem geral e que pôde encontrar-se em épocas diversas. Mas a julgar por Swann, os cortejos dos Reis Magos, já tão anacrônicos quando Benozzo Gozzoli aí introduziu os Médicis, muito mais o seriam ainda, visto conterem o retrato de uma multidão de homens contemporâneos, não de Gozzoli mas de Swann, ou seja, posteriores não mais somente de quinze séculos à Natividade, mas de quatro séculos ao próprio pintor. Nesses cortejos não havia, segundo Swann, um só parisiense importante que estivesse faltando, como naquele ato de uma peça de Sardou, no qual, por amizade ao autor e à principal intérprete, e também por moda, todas as notabilidades parisienses, médicos célebres, homens políticos, advogados, vieram, para divertir-se, cada qual numa noite, apresentar-se em cena.
- Mas que relação tem ela com o Jardim da Aclimação?
- Todas! - O que imagina, Odette? Acha que ela tem um traseiro azul-celeste como os
macacos?
- Charles, você é de uma inconveniência! Não, eu pensava no termo que lhe disse o
cingalês. Conte-lhe, é na verdade uma palavra espirituosa.
- É uma idiotice. Você sabe que a Sra. Blatin gosta de interpelar todo mundo com um ar
que julga ser amável e sobretudo protetor.
- O que os nossos bons vizinhos do Tâmisa denominam patronizing - interrompeu Odette.
-
Ela foi ultimamente ao Jardim da Aclimação onde há negros, cingaleses, creio, disse minha
mulher que é muito mais forte em etnografia do que eu.
- Ora, Charles, não caçoe.
- Mas não estou caçoando de jeito nenhum. Afinal, ela se dirigiu a um desses negros:
"Bom dia, negro!"
- Não era nada!
- Em todo caso, o qualificativo não agradou ao negro: "Eu negro?",- disse ele furioso à Sra.
Blatin, "mas tu camelo!"
- Acho muito engraçado! Adoro essa anedota. Não é "linda"? Parece que a gente vê a Sra.
Blatin: "Eu negro, mas tu camelo!"
Manifestei muita vontade de ir ver os cingaleses, um dos quais chamara a Sra. Blatin de
camelo. Eles absolutamente não me interessavam. Mas eu pensava que, para ir ao Jardim da
Aclimação e depois voltar, atravessaríamos aquela alameda das Acácias onde admirara tanto a
Sra. Swann, e que talvez o mulato amigo de Coquelin, a quem jamais pudera me mostrar
saudando a Sra. Swann, me visse sentado ao lado dela no fundo de uma vitória.
Durante esses minutos em que Gilberte, tendo saído para se preparar, não estava conosco
no salão, o Sr. e a Sra. Swann se agradavam em me revelar as raras virtudes da filha. E tudo o
que observava parecia provar que falavam a verdade. Notei que, como sua mãe me dissera, ela
tinha não só com suas amigas, mas para os criados, para os pobres, atenções delicadas,
demoradamente refletidas, um desejo de agradar e um medo de descontentar, que se traduziam
por pequenas coisas que muitas vezes lhe faziam muito mal. Fizera um trabalho para a nossa
vendedora dos Champs-Élysées e saiu pela neve para entregá-lo sem um dia de atraso.
- Você nem imagina o que é o seu coração, pois ela o oculta.- dizia o pai.
Tão jovem, parecia muito mais ajuizada que os pais. Quando o Sr. Swann falava das
grandes amizades da esposa, Gilberte desviava a cabeça para outro lado, sem ar de censura,
pois o pai não lhe parecia poder ser objeto da mais leve crítica. Um dia em que lhe falei da Srta.
Vinteuil, ela me disse:
- Jamais a conhecerei, por um motivo: é que ela não era amável com seu pai; pelo que se
diz, causava-lhe desgosto. Não poderá você compreender isto como eu, não é mesmo? Você que
não poderia, sem dúvida, sobreviver, como eu ao meu, o que aliás é muito natural. Como
esquecer algum dia alguém a quem se amou sempre?
E certa vez em que se mostrou mais especialmente carinhosa e como lhe observei quando
ele estava longe:
- Sim, pobre papai, foi por estes dias o aniversário da morte do seu pai. Você pode
entender o que deve estar sentindo, compreende isto, sentimos sobre essas coisas. Então
procuro ser menos má que de costume.
- Seu pai não a considera má, acha-a perfeita.
-Pobre papai, é porque ele é muito bom.
Seus pais não me fizeram apenas o elogio da filha esse mês; mesmo antes que a tivesse
conhecido, me aparecia diante de uma igreja, numa paisagem da Ìle-de-France, e que a seguir,
evocando-me não mais sonhos e sim minhas recordações, estava sempre diante da sebe de
espinheiros na ladeira por onde eu ia para os lados de Méséglise. Como pergunta Swann,
esforçando-me para assumir o tom indiferente de um amigo curioso das preferências de uma
criança, quais eram, dentre os companheiros de Gilberte, aqueles de quem ela mais gostava, a
Sra. Swann respondeu:
- Mas você deve estar mais adiantado que eu sobre tais confidências que é o predileto, o
grande crack, como dizem os ingleses.
Sem dúvida, nessas coincidências tão perfeitas, quando a realidade a dobrar-se incide
sobre o que sonhamos por muito tempo, ela nos oculta inteiramente, se confunde com ele, como
duas figuras iguais e superpostas quase formando somente uma, enquanto, pelo contrário, para
dar todo o seu significado de alegria, gostaríamos de manter em todos os nossos desejos, no
momento em que os tocamos - e para estarmos bem certos de que são eles o prestígio de serem
intangíveis. E o pensamento não pode sequer voltar ao antigo estado para confrontá-lo com o
novo, pois já não dispõe de campo livre; o conhecimento que adquirimos, a lembrança dos
primeiros minutos inesperados, as frases que ouvimos, são o que obstruem a entrada da nossa
consciência, comandam muito mais as aberturas da nossa memória do que as da nossa
imaginação, e retroagem mais sobre o nosso passado que já não somos senhores de levá-los em
conta, do que sobre a forma, ainda livre, do nosso futuro. Durante muito tempo eu acreditara que
ir à casa da Sra. Swann era uma vaga quimera que jamais alcançaria; depois de haver passado
um quarto de hora em sua casa, foi o tempo em que não a conhecia que se tornou quimérico e
vago como uma possibilidade que a realização de outra possibilidade aniquilou. Como poderia
sonhar ainda com a sala de jantar como se fosse um lugar inacessível, quando não podia fazer
um movimento de espírito sem dar com os raios infrangíveis que dele emitia ao infinito, até o meu
passado mais distante, a lagosta americana que acabava de comer? Swann devia ter visto ocorrer
algo semelhante, no que lhe dizia respeito: pois o apartamento em que me recebia podia ser
considerado o lugar em que tinham ido confundir-se e coincidir, não só o apartamento ideal que
minha imaginação havia engendrado, mas um outro ainda, o que o amor ciumento de Swann, tão
inventivo como os meus sonhos, lhe descrevera tantas vezes; aquele apartamento comum a ele e
a Odette que lhe parecera tão inacessível naquela noite em que Odette o levara com Forcheville
para tomar laranjada em sua casa; e o que, para ele, viera absorver-se no plano da sala de jantar
onde comíamos, era aquele paraíso inesperado onde outrora ele não podia imaginar, sem
perturbar-se, que diria ao mordomo deles estas mesmas palavras:
- "Madame está pronta?", que eu lhe ouvia pronunciar agora com leve impaciência
mesclada a uma certa satisfação de amor-próprio. E, sem dúvida, não mais do que o podia
Swann, eu não chegava a conhecer a minha própria felicidade, e quando Gilberte exclamou:
- Quem diria que a menininha que você olhava sem lhe falar, que jogava barras, seria a
grande amiga em cuja casa você iria todos os dias que quisesse?! - estava falando de uma
mudança que eu era obrigado a considerar de fora, mas que não possuía internamente, pois se
compunha de dois estados em que não conseguia pensar ao mesmo tempo, sob pena de que
cessassem de ser distintos um do outro.
No entanto, esse apartamento, visto que fora desejado tão ardentemente por sua vontade,
devia conservar para Swann uma certa doçura, se o julgasse por mim, para quem não perdera
todo seu mistério. O encanto singular, no qual eu durante tanto tempo imaginara banhar-se a vida
dos Swann, não o expulsara inteiramente da sua residência ao penetrar nela; fizera-o recuar,
dominado que fora por esse estranho, esse pária que eu tinha sido e para o qual a Srta. Swann
empurrava graciosamente, para que se sentasse, uma poltrona deliciosa, hostil e escandalizada;
porém esse encanto, percebo-o ainda na minha recordação. Seria porque, nesses dias em que o
Sr. e a Sra. Swann me convidavam para almoçar, e logo depois para sair com eles e Gilberte, eu
imprimia com meu olhar - enquanto esperava sozinho sobre o tapete, as poltronas, os consolos,
os biombos, os quadros, com a ideia, em mim gravada, de que a Sra. Swann ou o marido, ou
Gilberte iam entrar? Seria porque tais coisas viveram desde então na minha memória, ao lado dos
Swann acabaram por assumir alguma coisa deles? Seria porque, sabendo que eles passavam
sua existência no meio delas, fazia de todas elas como que os emblemas de sua vida particular,
de seus hábitos dos quais fora por tão longo tempo que me continuaram a parecer estranhos
mesmo quando me fizeram misturar-me à eles? E sempre que penso nesse salão que Swann
(semelhante crítica implicasse de sua parte a intenção de não contrariar em nada os de sua
mulher) achava tão disparatado, pois sendo todo ele concebido ainda que do gosto meio estufa,
meio ateliê, do apartamento em que conhecera entretanto começara a substituir naquela
embrulhada um certo número chineses; que agora julgava um tanto "artificiais", "fora de moda",
por um de pequenos móveis forrados de velhas sedas Luís XVI (sem contar as o trazidas por
Swann do apartamento do cais de Orléans) -, na minha memória existe, ao contrário, naquele
salão composto, uma coesão, uma unidade, um encanto individual; que nunca sequer tiveram os
mais intactos conjuntos que nos legou no passado; nem ainda, os mais vivos onde se assinala a
marca que somente nós podemos, pela crença de que têm uma existência própria, certas coisas
que vemos uma alma, que a seguir conservam-se dentro de nós. Todas as ideias que eu formava
das horas diversas que existem para os outros homens, que os Swann passavam naquele
apartamento; que significava, para o tempo cotidiano de suas vidas, o que o corpo é para a alma
e que devia exprimir sua singularidade, todas essas ideias estavam repartidas amalgamadas por
toda a parte igualmente perturbadoras e indefiníveis nos móveis, na espessura dos tapetes, na
orientação das janelas, no serviço doméstico. Quando, após o almoço, íamos tomar café ao sol,
na grande janeta enquanto a Sra. Swann me perguntava qual a quantidade de açúcar que
colocava no café, não era apenas o tamborete forrado de seda, que ela chegava que desprendia
com o encanto doloroso que eu percebera outrora espinheiro-rosa e depois ao lado do bosque de
loureiros no nome de Gilberte, a hostilidade que me haviam testemunhado seus pais e que este
pequeno móvel - parecia ter sabido e partilhado tão bem, que eu não me sentia digno e um tanto
desprezível de impor meus pés no seu estofamento sem defesa: uma alma pessoal ligava-o
secretamente à luz das duas horas da tarde, diferente do que era por toda a parte, além, no golfo,
onde fazia brincar à nossos pés suas ondas de ouro em meio às quais os canapés azulados e as
vaporosas tapeçarias como ilhas encantadas; e até o quadro de Rubens, pendurado sobre a
lareira; também do mesmo gênero e quase a mesma força de encanto que as laçadas do Sr.
Swann e o mantô de pelerine, que eu tanto desejara ter um igual. Agora a Sra. Swann pedia ao
marido que substituísse por outro, parecia mais elegante, quando lhes dava a honra de sair com
eles. Ela também ia se vestir, embora eu protestasse que nenhuma roupa de passeio nem de
longe era maravilhoso como o chambre de crepe da China ou de seda, rosa murcho, Tiepolo,
branco, malva, verde, vermelho, amarelo liso ou com desenho, que a Sra. Swann havia almoçado
e que ia tirar. Ao dizer que ela deveria sair assim, a Sra. Swann ria, troçando da minha ignorância
ou de prazer pelo meu cumprimento, desculpava-se de possuir tantos peignoirs, por achar que
somente com eles é que se sentia à vontade, e nos deixou, para ir pôr um desses vestidos
majestosos que se impõem a todos e entre os quais, no entanto, eu era por vezes chamado a
escolher aquele que preferia que ela vestisse.
No Jardim da Aclimação, como eu me mostrava orgulhoso ao descer do carro e poder
andar ao lado da Sra. Swann! Enquanto, em seu andar despreocupado, a Sra. Swann deixava
flutuar a capa, lançava-lhe olhares de admiração aos quais ela correspondia, de maneira coquete,
com um largo sorriso. Agora, se encontrávamos um ou outro dos companheiros, menino ou
menina, de Gilberte, que de longe nos saudava, eu era por minha vez olhado por eles como uma
dessas criaturas que tanto invejara, um dos amigos de Gilberte que conheciam sua família e
estavam associados à outra parte de sua vida, a que não se passava nos Champs-Élysées.
Frequentemente, nas alamedas do Bois ou do Jardim da Aclimação, cruzávamos e éramos
saudados por esta ou aquela grande amiga de Swann, que ele não chegava a ver e que sua
mulher lhe apontava:
- "Charles, não está vendo a Sra. de Montmorency?" E Swann, com o sorriso amistoso
devido a uma longa familiaridade, no entanto se descobria largamente com uma elegância própria
dele. Às vezes a dama parava, feliz por fazer uma gentileza à Sra. Swann, gentileza sem maiores
conseqüências e da qual sabia que a Sra. Swann não se aproveitaria a seguir, pois Swann a
acostumara a tomar uma atitude de reserva. Mas Odette assumira todas as maneiras da
sociedade e, por mais elegante e nobre que fosse o porte da dama, ela a igualava sempre; parada
por um instante junto da amiga que o marido acabava de encontrar, apresentava-nos, a mim e a
Gilberte, com tanta desenvoltura, conservava tanta liberdade e tanta calma em sua gentileza, que
teria sido difícil dizer qual das duas era a dama, a esposa de Swann ou a aristocrata a passeio. No
dia em que fomos ver os cingaleses, percebemos, na volta, vindo em nossa direção e seguida de
duas outras que pareciam escoltá-la, uma dama idosa mas bonita ainda, envolta num mantô
escuro e com uma pequena touca presa ao pescoço por duas fitas.
- Ah, eis alguém que vai lhe interessar! - Disse-me Swann. - A velha senhora, já a poucos
passos de nós, sorria com terna doçura. - Swann se descobriu, Odette se inclinou numa
reverência e quis beijar a mão da dama semelhante a um quadro de Winterhalter, que a ergueu e
beijou.
- Ora, ponha o seu chapéu - disse ela a Swann; com voz grossa e um tanto zangada da
amiga da família. - Vou lhe apresentar a Sua Alteza Imperial - disse-me a Sra. Swann. Swann me
tomou à parte por um instante, quanto a Odette conversava com a alteza sobre o bom tempo e os
novos animais chegados ao Jardim da Aclimação.
- É a princesa Mathilde - disse-me ele – Você sabe, é a amiga de Flaubert, de SainteBeuve, de Dumas. Imagine, é a sobrinha de Napoleão II. Foi pedida em casamento por Napoleão
III e pelo imperador da Rússia. Não é interessante? Fale um pouco com ela. Mas preferia não ficar
parado aqui durante uma hora. E, dirigindo-se à velha disse:
- Encontrei-me com Taine. Disse-me que a princesa está zangada com ele.
- Comportou-se como um porco [em francês, cochon] - disse ela em voz áspera chiando a
palavra como se se tratasse do nome do bispo contemporâneo de Joanna d'Arc [Cauchon]. -
Depois do artigo que escreveu sobre o Imperador, dei-lhe cartão de despedida.
continua na página 49...
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Volume 1
Volume 2
À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - k)
Volume 3Volume 4
Volume 5
Volume 6
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