em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
III(x)
continuando...
Muitas vezes, outrora, ao pensar com terror que algum dia deixaria de amar Odette, resolvera ficar em vigilância e, logo que sentisse que o amor começava a abandoná-lo, apegar-se a ele, retê-lo bem. Mas eis que ao enfraquecimento de seu amor correspondia simultaneamente um enfraquecimento do desejo de permanecer enamorado. Pois a gente não pode mudar, isto é, tornar-se uma outra pessoa e ao mesmo tempo continuar obedecendo aos sentimentos daquela que não mais se é. Às vezes, lendo no jornal o nome de algum homem que supunha ter sido dos prováveis amantes de Odette, tornava a sentir ciúme. Mas era bem leve, e como lhe provava que ainda não emergira completamente daquela época em que tanto sofrera — mas em que também conhecera um modo tão voluptuoso de sentir — e que os acasos do caminho talvez ainda lhe permitissem perceber furtivamente e de longe a sua passada beleza, aquele ciúme antes lhe proporcionava uma agradável excitação, como ao melancólico parisiense que deixa Veneza para voltar à França, um último mosquito vem provar que a Itália e o verão ainda não estão muito longe. Mas, em geral, aquela época tão particular da sua vida de que agora saía, quando ele se esforçava, se não por continuar nela, mas ao menos por ter, enquanto ainda fosse tempo, uma visão nítida daquilo tudo, via que já lhe não era possível; aquele amor que acabava de deixar, desejaria ainda avistá-lo como uma paisagem que fosse desaparecendo; mas é tão difícil a gente desdobrar-se e conceder a si mesmo o espetáculo verídico de um sentimento que já não se possui, que logo o cérebro se lhe obscurecia, ele não via mais nada, desistia de olhar, tirava o lornhão, esfregava-lhe os vidros; e dizia consigo que melhor seria repousar um pouco, que ainda havia tempo, e recolhia-se em seu canto, com essa falta de curiosidade e esse torpor do viajante sonolento que baixa o chapéu sobre os olhos, para dormir, no trem que ele sente que o vai arrastando cada vez mais depressa para longe da terra onde tanto tempo viveu e que prometera a si mesmo não deixar fugir sem lhe dar um último adeus. Também como aquele viajante, ao despertar já em terras de França, quando Swann colheu por acaso a prova de que Forcheville fora amante de Odette, reconheceu que isso não o fazia sofrer, que o amor agora estava longe, e lamentou não haver notado o momento em que desaparecia para sempre. E da mesma forma que, ao beijar Odette pela primeira vez, procurara gravar na memória a face que por tanto tempo ela lhe apresentara e que a lembrança daquele beijo iria transformar, assim desejaria, pelo menos em pensamento, despedir-se, enquanto ela ainda existia, daquela Odette que lhe inspirava amor e ciúme, daquela Odette que lhe causava sofrimentos e que agora não mais tornaria a ver.
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
continuando...
Muitas vezes, outrora, ao pensar com terror que algum dia deixaria de amar Odette, resolvera ficar em vigilância e, logo que sentisse que o amor começava a abandoná-lo, apegar-se a ele, retê-lo bem. Mas eis que ao enfraquecimento de seu amor correspondia simultaneamente um enfraquecimento do desejo de permanecer enamorado. Pois a gente não pode mudar, isto é, tornar-se uma outra pessoa e ao mesmo tempo continuar obedecendo aos sentimentos daquela que não mais se é. Às vezes, lendo no jornal o nome de algum homem que supunha ter sido dos prováveis amantes de Odette, tornava a sentir ciúme. Mas era bem leve, e como lhe provava que ainda não emergira completamente daquela época em que tanto sofrera — mas em que também conhecera um modo tão voluptuoso de sentir — e que os acasos do caminho talvez ainda lhe permitissem perceber furtivamente e de longe a sua passada beleza, aquele ciúme antes lhe proporcionava uma agradável excitação, como ao melancólico parisiense que deixa Veneza para voltar à França, um último mosquito vem provar que a Itália e o verão ainda não estão muito longe. Mas, em geral, aquela época tão particular da sua vida de que agora saía, quando ele se esforçava, se não por continuar nela, mas ao menos por ter, enquanto ainda fosse tempo, uma visão nítida daquilo tudo, via que já lhe não era possível; aquele amor que acabava de deixar, desejaria ainda avistá-lo como uma paisagem que fosse desaparecendo; mas é tão difícil a gente desdobrar-se e conceder a si mesmo o espetáculo verídico de um sentimento que já não se possui, que logo o cérebro se lhe obscurecia, ele não via mais nada, desistia de olhar, tirava o lornhão, esfregava-lhe os vidros; e dizia consigo que melhor seria repousar um pouco, que ainda havia tempo, e recolhia-se em seu canto, com essa falta de curiosidade e esse torpor do viajante sonolento que baixa o chapéu sobre os olhos, para dormir, no trem que ele sente que o vai arrastando cada vez mais depressa para longe da terra onde tanto tempo viveu e que prometera a si mesmo não deixar fugir sem lhe dar um último adeus. Também como aquele viajante, ao despertar já em terras de França, quando Swann colheu por acaso a prova de que Forcheville fora amante de Odette, reconheceu que isso não o fazia sofrer, que o amor agora estava longe, e lamentou não haver notado o momento em que desaparecia para sempre. E da mesma forma que, ao beijar Odette pela primeira vez, procurara gravar na memória a face que por tanto tempo ela lhe apresentara e que a lembrança daquele beijo iria transformar, assim desejaria, pelo menos em pensamento, despedir-se, enquanto ela ainda existia, daquela Odette que lhe inspirava amor e ciúme, daquela Odette que lhe causava sofrimentos e que agora não mais tornaria a ver.
Enganava-se. Devia revê-la ainda uma vez, algumas semanas mais tarde. Foi,
enquanto dormia, no crepúsculo de um sonho. Passeava ele com a sra. Verdurin, o dr.
Cottard, um jovem de fez a quem não podia identificar, o pintor, Odette, Napoleão III e
meu avô, por uma estrada paralela ao mar e que o dominava a pique, ora de muito alto,
ora de alguns metros apenas, de maneira que subiam e desciam constantemente; os
passeantes que desciam já não eram visíveis aos que ainda subiam, a pouca luz que
restava ia enfraquecendo e parecia então que uma noite escura iria baixar imediatamente.
Às vezes as vagas saltavam até a borda e Swann sentia na face respingos gelados. Odette
lhe dizia que enxugasse o rosto, ele não podia, o que o deixava confuso perante ela,
como se estivesse de camisa de dormir. Esperava que não o notassem, devido à
obscuridade, mas a sra. Verdurin fitou-o com espanto durante um longo momento
enquanto ele via o rosto dela se ir deformando, o nariz alongar-se e aparecerem-lhe
grandes bigodes. Virou-se para olhar Odette: suas faces estavam pálidas, com pontinhos
vermelhos, os traços repuxados, tinha grandes olheiras, mas fitava-o com uns olhos
cheios de ternura, prestes a destacar-se como lágrimas para tombarem sobre ele, e Swann
sentia que a amava tanto que desejaria levá-la consigo imediatamente. De repente Odette
olhou seu relógio de pulso e disse: “Tenho de ir embora”; fez a todos uma despedida
geral, sem chamar Swann à parte, sem lhe dizer onde se encontrariam naquela noite ou
num outro dia. Não ousou perguntar-lhe, desejava acompanhá-la, e via-se obrigado,
sem se voltar para ela, a responder sorrindo a uma pergunta da sra. Verdurin, mas seu
coração batia horrivelmente, ele sentia ódio a Odette, e desejava furar aqueles olhos que
tanto amara momentos antes e lacerar aquelas faces sem frescor. Continuava a subir com
a sra. Verdurin, isto é, a afastar-se a cada passo de Odette, que descia em sentido
inverso. Ao fim de um segundo, fazia muitas horas que ela havia partido. O pintor
observou a Swann que Napoleão iii se eclipsara um instante depois dela: “Com certeza
estava combinado entre os dois”, acrescentou. “Devem ter-se juntado no fundo da
encosta, mas não quiseram despedir-se juntos por causa das conveniências. Ela é sua
amante.” O jovem desconhecido pôs-se a chorar. Swann tentou consolá-lo. “Afinal de
contas ela tem razão”, disse-lhe Swann, enxugando-lhe os olhos e retirando-lhe o fez
para que ele ficasse mais à vontade. “Eu o aconselhei a Odette várias vezes. Para que
tanta tristeza? Era mesmo o homem que poderia compreendê-la.” Assim falava Swann a
si mesmo, pois o jovem que a princípio não pudera identificar era também ele; como
certos romancistas, Swann havia dividido a sua personalidade entre duas personagens: a
que estava sonhando e a que ele via diante de si com um fez na cabeça.
Quanto a Napoleão III, era a Forcheville que alguma vaga associação de ideias,
depois certa mudança na fisionomia habitual do barão, e finalmente a fita da Legião de
Honra que lhe cruzava o peito, haviam induzido Swann a atribuir-lhe esse nome; mas,
na verdade, e por tudo o que a personagem presente no sonho lhe significava e evocava,
tratava-se mesmo de Forcheville. Pois, de imagens incompletas e mutáveis, o Swann
adormecido tirava conclusões falsas, e aliás momentaneamente com tamanho poder
criador que ele próprio se reproduzia por simples divisão, como certos organismos
inferiores; com o calor que sentia na palma da mão modelava a mão de um estranho, que
supunha estar apertando e, de sentimentos a impressões de que ainda não tinha
consciência, fazia nascer peripécias que, por seu encadeamento lógico, introduziriam em
dado momento no seu sono a personagem necessária para receber seu amor ou despertá-lo. De súbito baixou uma noite escura, um sino tocou a rebate, passou gente a correr,
fugindo das suas casas em chamas; Swann ouvia o rumor das vagas que saltavam e o seu
coração que, com a mesma violência, batia de angústia dentro do peito. De repente as
palpitações redobraram de velocidade, ele sentiu um sofrimento, uma ânsia
inexplicáveis; um camponês cheio de queimaduras lhe gritava de passagem: “Vá
perguntar a Charlus aonde Odette foi terminar a noite com o seu camarada, Charlus
esteve com Odette antigamente e ela lhe conta tudo. Foram eles que atearam o fogo”.
Era o seu criado de quarto que vinha despertá-lo e lhe dizia:
— Senhor, são oito horas, e o cabeleireiro chegou, eu lhe disse que passasse daqui a
uma hora.
Mas essas palavras, penetrando nas ondas do sono em que Swann estava
mergulhado, só lhe haviam chegado até a consciência depois de sofrer essa desviação
que faz com que no fundo d’água um raio pareça um sol, da mesma forma que,
momentos antes, o tinir da campainha, adquirindo no fundo daqueles abismos uma
sonoridade de sino em rebate, engendrara o episódio do incêndio. Nisto, o cenário que
tinha sob os olhos desfez-se em pó, Swann ergueu as pálpebras, ouviu uma última vez o
rumor de uma das vagas do mar que se ia afastando. Tocou a face. Estava seca. E
lembrava contudo a sensação da água fria e o gosto do sal. Levantou-se da cama, vestiu-se. Mandara chamar cedo o cabeleireiro porque na véspera tinha avisado por escrito a
meu avô que iria de tarde a Combray, pois soubera que a sra. de Cambremer — srta.
Legrandin — devia ali passar alguns dias. Associando, na memória, ao encanto daquele
rosto jovem, o de uma campina que desde muito não via, deparavam-lhe ambos um
atrativo que o decidira a deixar Paris por alguns dias. Como os diferentes acasos que
nos põem em presença de certas pessoas não coincidem com o tempo em que nós as
amamos, mas, ultrapassando-o, podem suceder antes que ele comece e repetir-se depois
que findou, as primeiras aparições que faz em nossa vida um ser destinado a agradar-nos mais tarde assumem retrospectivamente para nós um valor de advertência, de
presságio. Dessa maneira se reportara Swann muitas vezes à imagem de Odette
encontrada no teatro, naquela primeira noite em que não pensava tornar a vê-la — como
recordava agora o sarau da sra. de Saint-Euverte em que tinha apresentado o general de
Froberville à sra. de Cambremer. Tão múltiplos são os interesses de nossa vida que não
é raro que, numa mesma circunstância, os marcos de uma felicidade que ainda não existe
estejam pousados ao lado da agravação de um mal de que sofremos. E sem dúvida
poderia isso ter acontecido a Swann em outro lugar que não os salões da sra. de Saint-Euverte. E no caso em que ele se encontrasse noutra parte aquela noite, quem sabe lá que
outras venturas e penas não lhe teriam acontecido, que depois se lhe afigurariam
inevitáveis! Mas o que lhe parecia ter sido inevitável era o que acontecera, e não estava
longe de ver alguma coisa de providencial no fato de ter resolvido ir ao sarau da sra. de
Saint-Euverte, porque o seu espírito, desejoso de admirar a riqueza inventiva da vida e
incapaz de encarar por muito tempo uma questão difícil, como a de saber o que teria
sido preferível, descobria nos sofrimentos que experimentara aquela noite e nos
insuspeitados prazeres que então germinavam — e cujo balanço era tão difícil de
estabelecer — uma espécie de encadeamento necessário.
Mas uma hora depois de despertar, quando dava instruções ao cabeleireiro para que
o seu penteado não se desarranjasse no trem, tornou a pensar no sonho, reviu, tal como
os sentira bem perto de si, a tez pálida de Odette, as suas faces demasiado magras, os
traços cansados, os olhos pisados, tudo aquilo que — no decurso das sucessivas
ternuras que tinham feito de seu durável amor um longo esquecimento da imagem
primeira que recebera de Odette — tinha deixado de notar desde os primeiros tempos da
sua ligação e nos quais certamente a sua memória, enquanto ele dormia, fora buscar a
sensação exata. E com essa intermitente grosseria que lhe voltava logo que ele não mais
sofria e que rebaixava o nível de seu caráter moral, exclamou consigo mesmo: “E dizer
que eu estraguei anos inteiros de minha vida, que desejei a morte, que tive o meu maior
amor, por uma mulher que não me agradava, que não era o meu tipo!”.
continua na página 247...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Muitas vezes, outrora - x)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)olume 6
Volume 7
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