quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (17.1) - Amaranta Úrsula voltou

Cem Anos de SOLIDÃO


Gabriel Garcia Márquez


(17.1)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío


     AMARANTA ÚRSULA voltou com os primeiros anjos de dezembro [1] , puxada por brisas de veleiro, trazendo o marido amarrado pelo pescoço com um cordel de seda. Apareceu sem avisar, com um vestido cor de marfim, um colar de pérolas que batia pelos joelhos, anéis de esmeraldas e topázios, e o cabelo redondo e liso, arrematado em pontas nas orelhas, como asas de andorinha. O homem com quem se casara seis meses antes era um flamengo maduro, esbelto, com ares de navegante. Bastou empurrar a porta da sala para compreender que a sua ausência tinha sido mais prolongada e demolidora do que ela supunha.

— Meu Deus — gritou mais alegre que alarmada — bem se vê que não há mulher nesta casa! 

     A bagagem não cabia na varanda. Além do antigo baú de Fernanda com que a mandaram para o colégio, trazia duas malas-armários, mais quatro malas grandes, um saco para as sombrinhas, oito caixas de chapéus, um viveiro enorme com meia centena de canários, e o biciclo do marido desarmado dentro de um estojo especial que permitia carregá-lo como a um violoncelo. Não se permitiu sequer um dia de descanso, ao fim da longa viagem. Vestiu um batido guarda-pó de algodão que o marido trouxera junto com outros objetos de uso de motorista e empreendeu uma nova restauração da casa. Expulsou as formigas ruivas que já tinham se apoderado da varanda, ressuscitou as roseiras, arrancou as ervas daninhas pela raiz e tornou a semear fetos, orégãos e begônias nos vasos da amurada. Pôs-se à frente de um grupo de carpinteiros, serralheiros e pedreiros que consertaram as rachaduras do chão, nivelaram as portas e janelas, restauraram os móveis e branquearam as paredes por dentro e por fora, de modo que três meses depois da sua chegada respirava-se outra vez o ar de juventude e de festa que tinha existido nos tempos da pianola. Nunca se vira na casa ninguém com mais bom humor a qualquer hora e em qualquer circunstância, nem ninguém mais disposto a cantar e dançar e a jogar no lixo as coisas e os costumes deteriorados. Com uma vassourada, acabou com as lembranças funerárias e os montes de cacarecos inúteis e instrumentos de superstição que se amontoavam pelos cantos, e a única coisa que conservou, por gratidão a Úrsula, foi o retrato de Remedios na sala. “Olhem que maravilha”, gritava morrendo de rir. “Uma bisavó de quatorze anos!” Quando um dos pedreiros contou que a casa estava cheia de fantasmas e que a única maneira de espantá-los era procurar os tesouros que tinham deixado enterrados, ela respondeu às gargalhadas que não acreditava em superstições de homens. Era tão espontânea, tão emancipada, com um espírito tão moderno e livre que Aureliano não soube o que fazer com o corpo quando a viu chegar. “Que gigante!”, ela gritou, feliz, com os braços abertos. “Vejam como cresceu o meu adorado antropófago!” Antes que ele tivesse tempo de reagir, ela já havia colocado um disco no gramofone que trouxera consigo e estava tentando ensinar-lhe as danças da moda. Obrigou-o a trocar as esquálidas calças que herdara do Coronel Aureliano Buendía, deu-lhe de presente camisas juvenis e sapatos de duas cores e empurrava-o para a rua quando passava muito tempo no quarto de Melquíades.
     Ativa, miúda, indomável como Úrsula, e quase tão bela e provocante como Remedios, a bela, era dotada de um estranho instinto para se antecipar à moda. Quando recebia pelo correio os figurinos mais recentes, estes lhe serviam apenas para comprovar que não tinha errado nos modelos que inventava e que cosia na rudimentar máquina de manivela de Amaranta. Era assinante de quanta revista de moda, informação artística e música popular se publicasse na Europa, e mal passava os olhos por elas para perceber que as coisas andavam pelo mundo como ela imaginava. Não era compreensível que uma mulher com aquele espírito tivesse vindo de regresso para um povoado morto, deprimido pela poeira e pelo calor, e menos ainda com um marido que tinha dinheiro de sobra para viver bem em qualquer lugar do mundo e que a amava tanto que tinha se submetido a ser levado e trazido por ela na coleira de seda. Entretanto, à medida que o tempo passava, tornava-se mais evidente a sua intenção de ficar, pois não urdia planos que não fossem de longo prazo, nem tomava decisões que não estivessem orientadas para a obtenção de uma vida cômoda e de uma velhice tranqüila em Macondo. O viveiro dos canários demonstrava que esses propósitos não eram improvisados. Lembrando-se de que sua mãe lhe havia contado numa carta o extermínio dos pássaros, atrasara a viagem por vários meses até encontrar um navio que fizesse escala nas ilhas Afortunadas e lá selecionou vinte e cinco casais dos canários mais finos, para repovoar o céu de Macondo. Essa foi a mais lamentável das suas numerosas iniciativas frustradas. A medida que os pássaros se reproduziam, Amaranta Úrsula os ia soltando aos casais, e demoravam mais para se sentir livres do que para fugir do povoado. Em vão procurou conquistá-los com o viveiro que Úrsula construíra na primeira restauração. Em vão falsificou para eles ninhos de esparto nas amendoeiras e espalhou alpiste nos telhados e alvoroçou os cativos para que os seus cantos dissuadissem os desertores, porque estes se espantavam à primeira tentativa e davam uma volta pelo céu, só o tempo indispensável para encontrar o rumo de regresso às ilhas Afortunadas.
     Um ano depois da volta, embora não tivesse conseguido fazer nenhuma amizade nem promover nenhuma festa, Amaranta Úrsula continuava acreditando que era possível salvar aquela comunidade eleita pelo infortúnio. Gastón, seu marido, tinha cuidado para não contrariá-la, embora desde o meio-dia mortal em que descera do trem compreendesse que a determinação de sua mulher tinha sido provocada por uma miragem de saudade. Certo de que ela seria derrotada pela realidade, não se deu sequer o trabalho de armar o biciclo, mas se pôs a perseguir os ovos mais visíveis das teias de aranha que os pedreiros desprendiam e os abria com as unhas e passava horas contemplando com uma lupa as aranhinhas minúsculas que saíam do seu interior. Mais tarde, acreditando que Amaranta Úrsula continuava com as reformas para não dar o braço a torcer, resolveu armar a aparatosa bicicleta cuja roda anterior era muito maior que a posterior e se dedicou a capturar e dissecar quanto inseto aborígine encontrava nos arredores, que remetia em vidros de geleia para o seu antigo professor de história natural da Universidade de Luik, onde fizera estudos superiores de entomologia, embora a sua vocação dominante fosse a de aeronauta. Quando andava de bicicleta usava calças de acrobata, meias de velho gaiteiro e boné de detetive, mas quando andava a pé vestia linho cru, impecável, com sapatos brancos, gravata borboleta de seda, chapéu de palhinha e uma bengala de vime na mão. Tinha umas pupilas pálidas que acentuavam o seu ar de navegante e um bigodinho de pelos de esquilo. Embora fosse pelo menos quinze anos mais velho que sua mulher, os seus gostos juvenis, a sua vigilante determinação de fazê-la feliz e as suas virtudes de bom amante compensavam a diferença. Na realidade, quem visse aquele quarentão de hábitos cautelosos, com o seu cordão de seda no pescoço e a sua bicicleta de circo, não poderia pensar que tinha com a sua jovem esposa um pacto de amor desenfreado e que ambos cediam às urgências recíprocas no lugares menos adequados e onde os surpreendesse a inspiração, como o fizeram desde que começaram a se encontrar, com uma paixão que o correr do tempo e as circunstâncias cada vez mais insólitas iam aprofundando e enriquecendo. Gastón era não só um amante feroz, de uma sabedoria e uma imaginação inesgotáveis, como também talvez fosse o primeiro homem na história da espécie que tinha feito uma aterragem de emergência e por pouco não se matara com a namorada só para fazer amor num campo de violetas.
     Tinham-se conhecido três anos antes de se casarem quando o biplano esportivo em que ele fazia piruetas sobre o colégio em que Amaranta Úrsula estudava tentou uma manobra intrépida para se desviar do mastro da bandeira e a primitiva armação de lona e papel de alumínio ficou pendurada pela cauda nos cabos da energia elétrica. A partir de então, sem fazer caso da perna engessada, nos fins de semana ele ia buscar Amaranta Úrsula na pensão de religiosas onde viveu sempre, cujo regulamento não era tão severo quanto Fernanda desejava e levava-a para o seu clube de esportes. Começaram a se amar a 500 metros de altura, no ar dominical das planícies, e se sentiam mais compenetrados à medida que mais minúsculos iam fazendo os seres da terra. Ela falava de Macondo como da aldeia mais luminosa e plácida do mundo e de uma casa enorme, perfumada de orégão, onde queria viver até a velhice com um marido leal e dois filhos travessos que se chamassem Rodrigo e Gonzalo, e em hipótese alguma Aureliano e José Arcadio, e uma filha que se chamasse Virginia, e em hipótese alguma Remedios. Evocara com uma tenacidade tão ansiosa o povoado idealizado pela saudade que Gastón compreendeu que ela não ia querer casar se ele não a levasse para viver em Macondo. Concordou, como concordou mais tarde com o cordão de seda, porque pensou que era um capricho transitório que mais valia matar com o tempo. Mas quando já tinham transcorrido dois anos em Macondo e Amaranta Úrsula continuava tão contente como no primeiro dia, ele começou a dar mostras de alarme. Já por essa época havia dissecado quanto inseto era dissecável na região, falava o castelhano como um nativo e tinha decifrado todas as palavras cruzadas das revistas que recebiam pelo correio. Não tinha o pretexto do clima para apressar o regresso porque a natureza o havia dotado de um fígado colonial, que resistia sem problemas ao calor da sesta e à água com micróbios. Gostava tanto da comida crioula que uma vez comeu de enfiada oitenta e dois ovos de iguana. Amaranta Úrsula, pelo contrário, fazia vir pelo trem peixes e mariscos em caixas de gelo, carnes em lata e frutas em calda, que era a única coisa que podia comer, e continuava se vestindo à moda europeia e recebendo figurinos pelo correio, apesar de não ter onde ir nem a quem visitar e de que a estas alturas o marido carecia de humor para apreciar os seus vestidos curtos, os seus chapéus tombados para o lado e os seus colares de sete voltas. O seu segredo parecia consistir em encontrar sempre uma maneira de estar ocupada, resolvendo problemas domésticos que ela mesma criava e fazendo mal certas coisas que corrigia no dia seguinte, com uma diligência perniciosa que teria feito Fernanda pensar no vício hereditário de fazer para desfazer. O seu temperamento festivo continuava agora tão desperto que quando recebia discos novos convidava Gastón a ficar na sala até muito tarde para ensaiar as danças que as suas companheiras de colégio descreviam com desenhos e terminavam, geralmente, fazendo amor nas cadeiras de balanço austríacas ou no chão duro. A única coisa que lhe faltava para ser completamente feliz era o nascimento dos filhos, mas respeitava o pacto que tinha feito com o marido de não tê-los antes de completarem cinco anos de casados. Procurando alguma coisa com que encher as horas mortas, Gastón costumava passar a manhã no quarto de Melquíades, com o esquivo Aureliano. Satisfazia-se em evocar com ele os lugares mais íntimos da sua terra, que Aureliano conhecia como se tivesse estado nela por muito tempo. Quando Gastón lhe perguntou como tinha feito para obter informações que não estavam na enciclopédia, recebeu a mesma posta que José Arcadio: “Tudo se sabe.” Além do sânscrito Aureliano tinha aprendido inglês e francês e alguma coisa de latim e de grego. Como agora saía todas as tardes e Amaranta Úrsula tinha estabelecido uma soma semanal para os gastos pessoais, o quarto parecia uma filial da livraria do sábio catalão. Lia com avidez até altas horas da noite, embora pela forma com que se referia às suas leituras Gastón pensasse que ele não comprava os livros para se informar, mas verificar a exatidão dos seus conhecimentos e que nenhum interessava mais que os pergaminhos, aos quais dedicava melhores horas da manhã. Tanto Gastón quanto sua esposa gostariam de incorporá-lo à vida familiar, mas Aureliano era homem hermético, com uma nuvem de mistério que o tempo ia tornando mais densa. Era uma condição tão impenetrável que Gastón fracassou nos seus esforços de fazer intimidade com ele e teve que procurar outro passatempo para encher suas horas mortas. Foi por essa época que concebeu ideia de estabelecer um serviço de correio aéreo.
     Não era um projeto novo. Na realidade, tinha-o já bastante adiantado quando conheceu Amaranta Úrsula, só não era para Macondo mas sim para o Congo Belga, onde família fazia investimentos no óleo de palmeira. O casamento, a decisão de passar uns meses em Macondo para satisfazer a esposa obrigaram-no a adiá-lo. Mas quando viu que Amaranta Úrsula estava empenhada em organizar um comitê melhorias públicas e até ria dele por insinuar a possibilidade de regresso, compreendeu que as coisas ainda eram para muito tempo e voltou a entrar em contato com os seus sócios de Bruxelas, pensando que para ser pioneiro dava mesma ser no Caribe ou na África. Enquanto progrediam as gestões, preparou um campo de aterragem, na antiga região encantada, que agora parecia uma planície de pedernal esfacelado, e estudou a direção dos ventos, a geografia do litoral e as rotas mais adequadas para a navegação aérea, sem saber que a sua diligencia, tão parecida com a de Mr.Herbert, estava infundindo no povo a perigosa suspeita de que o seu propósito não era planejar itinerários e sim plantar banana. Entusiasmado com um acontecimento que, quanto mais não fosse, podia justificar o seu estabelecimento definitivo em Macondo, fez várias viagens à capital da província, entrevistou-se com as autoridades, obteve licenças e assinou contratos de exclusividade. Enquanto isso, mantinha com os sócios de Bruxelas uma correspondência parecida com a de Fernanda com os médicos invisíveis e acabou por convencê-los a embarcarem no primeiro aeroplano aos cuidados de um mecânico experimentado que o armasse no porto mais próximo e o levasse voando para Macondo. Um ano depois das primeiras mensurações e cálculos meteorológicos, confiando nas promessas repetidas dos seus correspondentes, adquirira o costume de passear pelas ruas olhando o céu, com a atenção voltada para os rumores da brisa, na espera de que aparecesse o aeroplano.
     Embora ela não tivesse notado, a volta de Amaranta Úrsula ocasionou uma mudança radical na vida de Aureliano. Depois da morte de José Arcadio, tornara-se um cliente assíduo da livraria do sábio catalão. Além disso, a liberdade de que desfrutava agora e o tempo de que dispunha despertaram-lhe uma certa curiosidade pelo povoado, que conheceu sem assombro. Percorreu as ruas empoeiradas e solitárias, examinando com um interesse mais científico do que humano o interior das casas em ruínas, as telas metálicas das janelas, furadas pela ferrugem e pelos pássaros moribundos, e os habitantes abatidos pelas lembranças. Tentou reconstruir com a imaginação o arrasado esplendor da antiga cidade da companhia bananeira, cuja piscina seca estava cheia até a boca de sapatos podres de homem e sapatilhas de mulher e em cujas casas devastadas pelo mato encontrou o esqueleto de um cão policial ainda preso a uma argola com uma corrente de aço um telefone que tilintava, tilintava, tilintava, até que ele tirou o fone do gancho, ouviu o que uma mulher angustiada remota perguntava em inglês e respondeu que sim, que a greve a terminado, que os três mil mortos tinham sido jogados mar, que a companhia bananeira tinha ido embora, e que Macondo finalmente estava em paz, há muitos anos já. Aquelas correrias levaram-no ao prostrado bairro de tolerância, onde em outros tempos queimavam-se maços de notas para animar a cumbia e que agora era um desfiladeiro de ruas mais angustiosas e miseráveis do que as outras, com algumas lanternas vermelhas ainda acesas e com os ermos salões de dança enfeitados com fiapos de guirlandas, onde as macilentas e gordas viúvas de ninguém, as bisavós francesas e as matriarcas babilônicas continuavam esperando junto às vitrolas. Aureliano não encontrou quem se lembrasse da sua família, nem mesmo do Coronel Aureliano Buendía, salvo o mais antigo dos negros antilhanos, um ancião cuja cabeça algodoada lhe dava o aspecto de um negativo de fotografia, que continuava cantando na porta da casa os salmos lúgubres do entardecer. Aureliano conversava com ele no arrevesado papiamento [2] que aprendeu em poucas semanas e às vezes partilhava o caldo de cabeças de galo que lhe preparava a bisneta, uma negra grande, de ossos sólidos, cadeiras de égua e tetas de melões vivos, e uma cabeça redonda, perfeita, encouraçada por um duro capacete de cabelos de arame, que parecia o almofre de um guerreiro medieval. Chamava-se Nigromanta. Nessa época, Aureliano vivia da venda de talheres, lampiões e outros cacarecos da casa. Quando estava sem um centimo, o que era o mais frequente, conseguia que nas cantinas do mercado lhe dessem as cabeças de galo que iam jogar no lixo e as levava a Nigromanta para que fizesse as suas sopas aumentadas com beldroegas e perfumadas com hortelã. Ao morrer o bisavô, Aureliano deixou de frequentar a casa, mas encontrava Nigromanta sob as escuras amendoeiras da praça, atraindo com os seus assovios de animal da montanha os escassos noctâmbulos. Muitas vezes acompanhou-a, falando em papiamento das sopas de cabeças de galo e outros requintes da miséria, e teria continuado a fazê-lo se ela não o tivesse feito perceber que a sua companhia lhe afugentava a clientela. Embora algumas vezes sentisse tentação e embora à própria Nigromanta tivesse parecido uma culminância natural da saudade partilhada, não se deitava com ela. De modo que Aureliano continuava sendo virgem quando Amaranta Úrsula regressou a Macondo e lhe deu um abraço fraternal que o deixou sem fôlego. Cada vez que a via, e pior ainda quando ela lhe ensinava as danças da moda, ele sentia o mesmo desamparo de esponjas nos ossos que perturbara o seu tataravô quando Pilar Ternera inventou o pretexto das cartas na despensa. Tentando sufocar o tormento, mergulhou mais a fundo nos pergaminhos e evitou os afagos inocentes daquela tia que envenenava as suas noites com eflúvios de sofrimento, mas quanto mais a evitava com mais ansiedade esperava o seu riso de cascalho, os seus uivos de gata feliz e as suas canções de gratidão, agonizando de amor a qualquer hora e nos lugares menos pensados da casa. Uma noite, a dez metros da sua cama, na mesa de ourivesaria, os esposos de ventre alucinado arrebentaram o vidro da prateleira e acabaram se amando num charco de ácido muriático. Aureliano não só não pôde dormir um minuto como passou o dia seguinte com febre, chorando de raiva. Fez-se eterna a chegada da primeira noite em que esperou Nigromanta à sombra das amendoeiras, atravessado pelas agulhas de gelo da insegurança e apertando na mão a moeda de cinquenta centavos que pedira a Amaranta Úrsula, não tanto por necessitá-los como para implicá-la, aviltá-la e prostituí-la de alguma forma com a sua aventura. Nigromanta levou-o para o seu quarto iluminado com lamparinas de mentira, para a sua cama de armar com a lona manchada pelos maus amores e para o seu corpo de cachorra brava, insensível, desalmada, que se preparou para despachá-lo como se fosse um menino assustado e se encontrou de repente com um homem cujo poder tremendo exigiu das suas entranhas um movimento de reacomodação sísmica.

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Cem Anos de Solidão (17.1) - Amaranta Úrsula voltou
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[1] No original ángeles de diciembre. Explicação do autor à tradutora: “A tradução deve ser literal, porque todo mundo sabe que em dezembro chegam os anjos. Não os viu nunca?”
[2] Copio em tradução o verbete “papiamento” do Dicionário de Términos Filológicos de Fernando Lázaro Carreter, 3ª edição corrigida, Gredos, Madrid, 1968, p. 311: 
“Língua crioula falada na ilha de Curaçao, ao norte do litoral venezuelano. Esta ilha foi incorporada à Espanha pelo seu descobridor, Alonso de Ojeda, em 1499. Em 1634 foi ocupada pelos holandeses. Era habitada, na época, por 1415 índios e 32 espanhóis. Em 1648 começou o afluxo de escravos negros que os portugueses importavam da África. Em 1795, a ilha passou para o domínio dos franceses; em 1800 foi colocada sob o protetorado inglês e, em 1802, voltou para o poderio holandês. A sua língua oficial é o holandês, mas a que se usa normalmente é o papiamento (papia, esp. ant. e portanto papear “falar”). A sua base é o crioulo negro-português que os negros trouxeram da África, misturado com o espanhol falado nas Antilhas e no litoral venezuelano. Contém também palavras holandesas (M. L. Wagner).”

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