Cem Anos de SOLIDÃO
Gabriel Garcia Márquez
(17.1)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
AMARANTA ÚRSULA voltou com os primeiros anjos de
dezembro [1] , puxada por brisas de veleiro, trazendo o marido amarrado pelo
pescoço com um cordel de seda. Apareceu sem avisar, com um vestido cor
de marfim, um colar de pérolas que batia pelos joelhos, anéis de esmeraldas e
topázios, e o cabelo redondo e liso, arrematado em pontas nas orelhas, como
asas de andorinha. O homem com quem se casara seis meses antes era um
flamengo maduro, esbelto, com ares de navegante. Bastou empurrar a porta
da sala para compreender que a sua ausência tinha sido mais prolongada e
demolidora do que ela supunha.
— Meu Deus — gritou mais alegre que alarmada — bem se vê que não
há mulher nesta casa!
A bagagem não cabia na varanda. Além do antigo baú de Fernanda com que a mandaram para o colégio, trazia duas malas-armários, mais quatro malas grandes, um saco para as sombrinhas, oito caixas de chapéus, um viveiro enorme com meia centena de canários, e o biciclo do marido desarmado dentro de um estojo especial que permitia carregá-lo como a um violoncelo. Não se permitiu sequer um dia de descanso, ao fim da longa viagem. Vestiu um batido guarda-pó de algodão que o marido trouxera junto com outros objetos de uso de motorista e empreendeu uma nova restauração da casa. Expulsou as formigas ruivas que já tinham se apoderado da varanda, ressuscitou as roseiras, arrancou as ervas daninhas pela raiz e tornou a semear fetos, orégãos e begônias nos vasos da amurada. Pôs-se à frente de um grupo de carpinteiros, serralheiros e pedreiros que consertaram as rachaduras do chão, nivelaram as portas e janelas, restauraram os móveis e branquearam as paredes por dentro e por fora, de modo que três meses depois da sua chegada respirava-se outra vez o ar de juventude e de festa que tinha existido nos tempos da pianola. Nunca se vira na casa ninguém com mais bom humor a qualquer hora e em qualquer circunstância, nem ninguém mais disposto a cantar e dançar e a jogar no lixo as coisas e os costumes deteriorados. Com uma vassourada, acabou com as lembranças funerárias e os montes de cacarecos inúteis e instrumentos de superstição que se amontoavam pelos cantos, e a única coisa que conservou, por gratidão a Úrsula, foi o retrato de Remedios na sala. “Olhem que maravilha”, gritava morrendo de rir. “Uma bisavó de quatorze anos!” Quando um dos pedreiros contou que a casa estava cheia de fantasmas e que a única maneira de espantá-los era procurar os tesouros que tinham deixado enterrados, ela respondeu às gargalhadas que não acreditava em superstições de homens. Era tão espontânea, tão emancipada, com um espírito tão moderno e livre que Aureliano não soube o que fazer com o corpo quando a viu chegar. “Que gigante!”, ela gritou, feliz, com os braços abertos. “Vejam como cresceu o meu adorado antropófago!” Antes que ele tivesse tempo de reagir, ela já havia colocado um disco no gramofone que trouxera consigo e estava tentando ensinar-lhe as danças da moda. Obrigou-o a trocar as esquálidas calças que herdara do Coronel Aureliano Buendía, deu-lhe de presente camisas juvenis e sapatos de duas cores e empurrava-o para a rua quando passava muito tempo no quarto de Melquíades.
Ativa, miúda, indomável como Úrsula, e quase tão bela e provocante
como Remedios, a bela, era dotada de um estranho instinto para se
antecipar à moda. Quando recebia pelo correio os figurinos mais recentes,
estes lhe serviam apenas para comprovar que não tinha errado nos modelos
que inventava e que cosia na rudimentar máquina de manivela de
Amaranta. Era assinante de quanta revista de moda, informação artística e
música popular se publicasse na Europa, e mal passava os olhos por elas para
perceber que as coisas andavam pelo mundo como ela imaginava. Não era
compreensível que uma mulher com aquele espírito tivesse vindo de regresso
para um povoado morto, deprimido pela poeira e pelo calor, e menos ainda
com um marido que tinha dinheiro de sobra para viver bem em qualquer
lugar do mundo e que a amava tanto que tinha se submetido a ser levado e
trazido por ela na coleira de seda. Entretanto, à medida que o tempo
passava, tornava-se mais evidente a sua intenção de ficar, pois não urdia
planos que não fossem de longo prazo, nem tomava decisões que não
estivessem orientadas para a obtenção de uma vida cômoda e de uma
velhice tranqüila em Macondo. O viveiro dos canários demonstrava que esses
propósitos não eram improvisados. Lembrando-se de que sua mãe lhe havia
contado numa carta o extermínio dos pássaros, atrasara a viagem por vários
meses até encontrar um navio que fizesse escala nas ilhas Afortunadas e lá
selecionou vinte e cinco casais dos canários mais finos, para repovoar o céu
de Macondo. Essa foi a mais lamentável das suas numerosas iniciativas
frustradas. A medida que os pássaros se reproduziam, Amaranta Úrsula os ia
soltando aos casais, e demoravam mais para se sentir livres do que para fugir
do povoado. Em vão procurou conquistá-los com o viveiro que Úrsula
construíra na primeira restauração. Em vão falsificou para eles ninhos de
esparto nas amendoeiras e espalhou alpiste nos telhados e alvoroçou os
cativos para que os seus cantos dissuadissem os desertores, porque estes se
espantavam à primeira tentativa e davam uma volta pelo céu, só o tempo
indispensável para encontrar o rumo de regresso às ilhas Afortunadas.
Um ano depois da volta, embora não tivesse conseguido fazer
nenhuma amizade nem promover nenhuma festa, Amaranta Úrsula
continuava acreditando que era possível salvar aquela comunidade eleita
pelo infortúnio. Gastón, seu marido, tinha cuidado para não contrariá-la,
embora desde o meio-dia mortal em que descera do trem compreendesse
que a determinação de sua mulher tinha sido provocada por uma miragem
de saudade. Certo de que ela seria derrotada pela realidade, não se deu
sequer o trabalho de armar o biciclo, mas se pôs a perseguir os ovos mais
visíveis das teias de aranha que os pedreiros desprendiam e os abria com as
unhas e passava horas contemplando com uma lupa as aranhinhas
minúsculas que saíam do seu interior. Mais tarde, acreditando que Amaranta
Úrsula continuava com as reformas para não dar o braço a torcer, resolveu
armar a aparatosa bicicleta cuja roda anterior era muito maior que a
posterior e se dedicou a capturar e dissecar quanto inseto aborígine
encontrava nos arredores, que remetia em vidros de geleia para o seu antigo
professor de história natural da Universidade de Luik, onde fizera estudos
superiores de entomologia, embora a sua vocação dominante fosse a de
aeronauta. Quando andava de bicicleta usava calças de acrobata, meias de
velho gaiteiro e boné de detetive, mas quando andava a pé vestia linho cru,
impecável, com sapatos brancos, gravata borboleta de seda, chapéu de
palhinha e uma bengala de vime na mão. Tinha umas pupilas pálidas que
acentuavam o seu ar de navegante e um bigodinho de pelos de esquilo.
Embora fosse pelo menos quinze anos mais velho que sua mulher, os seus
gostos juvenis, a sua vigilante determinação de fazê-la feliz e as suas virtudes
de bom amante compensavam a diferença. Na realidade, quem visse aquele
quarentão de hábitos cautelosos, com o seu cordão de seda no pescoço e a
sua bicicleta de circo, não poderia pensar que tinha com a sua jovem esposa
um pacto de amor desenfreado e que ambos cediam às urgências recíprocas
no lugares menos adequados e onde os surpreendesse a inspiração, como o
fizeram desde que começaram a se encontrar, com uma paixão que o correr
do tempo e as circunstâncias cada vez mais insólitas iam aprofundando e
enriquecendo. Gastón era não só um amante feroz, de uma sabedoria e uma
imaginação inesgotáveis, como também talvez fosse o primeiro homem na
história da espécie que tinha feito uma aterragem de emergência e por
pouco não se matara com a namorada só para fazer amor num campo de
violetas.
Tinham-se conhecido três anos antes de se casarem quando o biplano
esportivo em que ele fazia piruetas sobre o colégio em que Amaranta Úrsula
estudava tentou uma manobra intrépida para se desviar do mastro da
bandeira e a primitiva armação de lona e papel de alumínio ficou
pendurada pela cauda nos cabos da energia elétrica. A partir de então, sem
fazer caso da perna engessada, nos fins de semana ele ia buscar Amaranta
Úrsula na pensão de religiosas onde viveu sempre, cujo regulamento não era
tão severo quanto Fernanda desejava e levava-a para o seu clube de
esportes. Começaram a se amar a 500 metros de altura, no ar dominical das
planícies, e se sentiam mais compenetrados à medida que mais minúsculos
iam fazendo os seres da terra. Ela falava de Macondo como da aldeia mais
luminosa e plácida do mundo e de uma casa enorme, perfumada de orégão,
onde queria viver até a velhice com um marido leal e dois filhos travessos que
se chamassem Rodrigo e Gonzalo, e em hipótese alguma Aureliano e José
Arcadio, e uma filha que se chamasse Virginia, e em hipótese alguma
Remedios. Evocara com uma tenacidade tão ansiosa o povoado idealizado
pela saudade que Gastón compreendeu que ela não ia querer casar se ele
não a levasse para viver em Macondo. Concordou, como concordou mais
tarde com o cordão de seda, porque pensou que era um capricho transitório
que mais valia matar com o tempo. Mas quando já tinham transcorrido dois
anos em Macondo e Amaranta Úrsula continuava tão contente como no
primeiro dia, ele começou a dar mostras de alarme. Já por essa época havia
dissecado quanto inseto era dissecável na região, falava o castelhano como
um nativo e tinha decifrado todas as palavras cruzadas das revistas que
recebiam pelo correio. Não tinha o pretexto do clima para apressar o regresso
porque a natureza o havia dotado de um fígado colonial, que resistia sem
problemas ao calor da sesta e à água com micróbios. Gostava tanto da comida
crioula que uma vez comeu de enfiada oitenta e dois ovos de iguana.
Amaranta Úrsula, pelo contrário, fazia vir pelo trem peixes e mariscos em
caixas de gelo, carnes em lata e frutas em calda, que era a única coisa que
podia comer, e continuava se vestindo à moda europeia e recebendo
figurinos pelo correio, apesar de não ter onde ir nem a quem visitar e de que
a estas alturas o marido carecia de humor para apreciar os seus vestidos
curtos, os seus chapéus tombados para o lado e os seus colares de sete voltas.
O seu segredo parecia consistir em encontrar sempre uma maneira de estar
ocupada, resolvendo problemas domésticos que ela mesma criava e fazendo
mal certas coisas que corrigia no dia seguinte, com uma diligência perniciosa
que teria feito Fernanda pensar no vício hereditário de fazer para desfazer.
O seu temperamento festivo continuava agora tão desperto que quando
recebia discos novos convidava Gastón a ficar na sala até muito tarde para
ensaiar as danças que as suas companheiras de colégio descreviam com
desenhos e terminavam, geralmente, fazendo amor nas cadeiras de balanço
austríacas ou no chão duro. A única coisa que lhe faltava para ser
completamente feliz era o nascimento dos filhos, mas respeitava o pacto que
tinha feito com o marido de não tê-los antes de completarem cinco anos de
casados. Procurando alguma coisa com que encher as horas mortas, Gastón
costumava passar a manhã no quarto de Melquíades, com o esquivo
Aureliano. Satisfazia-se em evocar com ele os lugares mais íntimos da sua
terra, que Aureliano conhecia como se tivesse estado nela por muito tempo.
Quando Gastón lhe perguntou como tinha feito para obter informações que
não estavam na enciclopédia, recebeu a mesma posta que José Arcadio:
“Tudo se sabe.” Além do sânscrito Aureliano tinha aprendido inglês e francês
e alguma coisa de latim e de grego. Como agora saía todas as tardes e
Amaranta Úrsula tinha estabelecido uma soma semanal para os gastos
pessoais, o quarto parecia uma filial da livraria do sábio catalão. Lia com
avidez até altas horas da noite, embora pela forma com que se referia às suas
leituras Gastón pensasse que ele não comprava os livros para se informar,
mas verificar a exatidão dos seus conhecimentos e que nenhum interessava
mais que os pergaminhos, aos quais dedicava melhores horas da manhã.
Tanto Gastón quanto sua esposa gostariam de incorporá-lo à vida familiar,
mas Aureliano era homem hermético, com uma nuvem de mistério que o
tempo ia tornando mais densa. Era uma condição tão impenetrável que
Gastón fracassou nos seus esforços de fazer intimidade com ele e teve que
procurar outro passatempo para encher suas horas mortas. Foi por essa
época que concebeu ideia de estabelecer um serviço de correio aéreo.
Não era um projeto novo. Na realidade, tinha-o já bastante adiantado
quando conheceu Amaranta Úrsula, só não era para Macondo mas sim para
o Congo Belga, onde família fazia investimentos no óleo de palmeira. O
casamento, a decisão de passar uns meses em Macondo para satisfazer a
esposa obrigaram-no a adiá-lo. Mas quando viu que Amaranta Úrsula estava
empenhada em organizar um comitê melhorias públicas e até ria dele por
insinuar a possibilidade de regresso, compreendeu que as coisas ainda eram
para muito tempo e voltou a entrar em contato com os seus sócios de
Bruxelas, pensando que para ser pioneiro dava mesma ser no Caribe ou na
África. Enquanto progrediam as gestões, preparou um campo de aterragem,
na antiga região encantada, que agora parecia uma planície de pedernal
esfacelado, e estudou a direção dos ventos, a geografia do litoral e as rotas
mais adequadas para a navegação aérea, sem saber que a sua diligencia, tão
parecida com a de Mr.Herbert, estava infundindo no povo a perigosa
suspeita de que o seu propósito não era planejar itinerários e sim plantar
banana. Entusiasmado com um acontecimento que, quanto mais não fosse,
podia justificar o seu estabelecimento definitivo em Macondo, fez várias
viagens à capital da província, entrevistou-se com as autoridades, obteve
licenças e assinou contratos de exclusividade. Enquanto isso, mantinha com
os sócios de Bruxelas uma correspondência parecida com a de Fernanda
com os médicos invisíveis e acabou por convencê-los a embarcarem no
primeiro aeroplano aos cuidados de um mecânico experimentado que o
armasse no porto mais próximo e o levasse voando para Macondo. Um ano
depois das primeiras mensurações e cálculos meteorológicos, confiando nas
promessas repetidas dos seus correspondentes, adquirira o costume de
passear pelas ruas olhando o céu, com a atenção voltada para os rumores da
brisa, na espera de que aparecesse o aeroplano.
Embora ela não tivesse notado, a volta de Amaranta Úrsula ocasionou
uma mudança radical na vida de Aureliano. Depois da morte de José
Arcadio, tornara-se um cliente assíduo da livraria do sábio catalão. Além
disso, a liberdade de que desfrutava agora e o tempo de que dispunha
despertaram-lhe uma certa curiosidade pelo povoado, que conheceu sem
assombro. Percorreu as ruas empoeiradas e solitárias, examinando com um
interesse mais científico do que humano o interior das casas em ruínas, as
telas metálicas das janelas, furadas pela ferrugem e pelos pássaros
moribundos, e os habitantes abatidos pelas lembranças. Tentou reconstruir
com a imaginação o arrasado esplendor da antiga cidade da companhia
bananeira, cuja piscina seca estava cheia até a boca de sapatos podres de
homem e sapatilhas de mulher e em cujas casas devastadas pelo mato
encontrou o esqueleto de um cão policial ainda preso a uma argola com uma
corrente de aço um telefone que tilintava, tilintava, tilintava, até que ele
tirou o fone do gancho, ouviu o que uma mulher angustiada remota
perguntava em inglês e respondeu que sim, que a greve a terminado, que os
três mil mortos tinham sido jogados mar, que a companhia bananeira tinha
ido embora, e que Macondo finalmente estava em paz, há muitos anos já.
Aquelas correrias levaram-no ao prostrado bairro de tolerância, onde em
outros tempos queimavam-se maços de notas para animar a cumbia e que
agora era um desfiladeiro de ruas mais angustiosas e miseráveis do que as
outras, com algumas lanternas vermelhas ainda acesas e com os ermos salões
de dança enfeitados com fiapos de guirlandas, onde as macilentas e gordas
viúvas de ninguém, as bisavós francesas e as matriarcas babilônicas
continuavam esperando junto às vitrolas. Aureliano não encontrou quem se
lembrasse da sua família, nem mesmo do Coronel Aureliano Buendía, salvo o
mais antigo dos negros antilhanos, um ancião cuja cabeça algodoada lhe
dava o aspecto de um negativo de fotografia, que continuava cantando na
porta da casa os salmos lúgubres do entardecer. Aureliano conversava com
ele no arrevesado papiamento [2] que aprendeu em poucas semanas e às
vezes partilhava o caldo de cabeças de galo que lhe preparava a bisneta, uma
negra grande, de ossos sólidos, cadeiras de égua e tetas de melões vivos, e
uma cabeça redonda, perfeita, encouraçada por um duro capacete de
cabelos de arame, que parecia o almofre de um guerreiro medieval.
Chamava-se Nigromanta. Nessa época, Aureliano vivia da venda de talheres,
lampiões e outros cacarecos da casa. Quando estava sem um centimo, o que
era o mais frequente, conseguia que nas cantinas do mercado lhe dessem as
cabeças de galo que iam jogar no lixo e as levava a Nigromanta para que
fizesse as suas sopas aumentadas com beldroegas e perfumadas com hortelã.
Ao morrer o bisavô, Aureliano deixou de frequentar a casa, mas encontrava
Nigromanta sob as escuras amendoeiras da praça, atraindo com os seus
assovios de animal da montanha os escassos noctâmbulos. Muitas vezes
acompanhou-a, falando em papiamento das sopas de cabeças de galo e
outros requintes da miséria, e teria continuado a fazê-lo se ela não o tivesse
feito perceber que a sua companhia lhe afugentava a clientela. Embora
algumas vezes sentisse tentação e embora à própria Nigromanta tivesse
parecido uma culminância natural da saudade partilhada, não se deitava
com ela. De modo que Aureliano continuava sendo virgem quando
Amaranta Úrsula regressou a Macondo e lhe deu um abraço fraternal que o
deixou sem fôlego. Cada vez que a via, e pior ainda quando ela lhe ensinava
as danças da moda, ele sentia o mesmo desamparo de esponjas nos ossos que
perturbara o seu tataravô quando Pilar Ternera inventou o pretexto das
cartas na despensa. Tentando sufocar o tormento, mergulhou mais a fundo
nos pergaminhos e evitou os afagos inocentes daquela tia que envenenava as
suas noites com eflúvios de sofrimento, mas quanto mais a evitava com mais
ansiedade esperava o seu riso de cascalho, os seus uivos de gata feliz e as
suas canções de gratidão, agonizando de amor a qualquer hora e nos lugares
menos pensados da casa. Uma noite, a dez metros da sua cama, na mesa de
ourivesaria, os esposos de ventre alucinado arrebentaram o vidro da
prateleira e acabaram se amando num charco de ácido muriático. Aureliano
não só não pôde dormir um minuto como passou o dia seguinte com febre,
chorando de raiva. Fez-se eterna a chegada da primeira noite em que
esperou Nigromanta à sombra das amendoeiras, atravessado pelas agulhas
de gelo da insegurança e apertando na mão a moeda de cinquenta centavos
que pedira a Amaranta Úrsula, não tanto por necessitá-los como para
implicá-la, aviltá-la e prostituí-la de alguma forma com a sua aventura.
Nigromanta levou-o para o seu quarto iluminado com lamparinas de
mentira, para a sua cama de armar com a lona manchada pelos maus
amores e para o seu corpo de cachorra brava, insensível, desalmada, que se
preparou para despachá-lo como se fosse um menino assustado e se
encontrou de repente com um homem cujo poder tremendo exigiu das suas
entranhas um movimento de reacomodação sísmica.
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continua página 235...
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Cem Anos de Solidão (17.1) - Amaranta Úrsula voltou
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[1] No original ángeles de diciembre. Explicação do autor à tradutora: “A
tradução deve ser literal, porque todo mundo sabe que em dezembro
chegam os anjos. Não os viu nunca?”
[2] Copio em tradução o verbete “papiamento” do Dicionário de Términos
Filológicos de Fernando Lázaro Carreter, 3ª edição corrigida, Gredos,
Madrid, 1968, p. 311:
“Língua crioula falada na ilha de Curaçao, ao norte do litoral venezuelano.
Esta ilha foi incorporada à Espanha pelo seu descobridor, Alonso de Ojeda,
em 1499. Em 1634 foi ocupada pelos holandeses. Era habitada, na época,
por 1415 índios e 32 espanhóis. Em 1648 começou o afluxo de escravos
negros que os portugueses importavam da África. Em 1795, a ilha passou
para o domínio dos franceses; em 1800 foi colocada sob o protetorado inglês
e, em 1802, voltou para o poderio holandês. A sua língua oficial é o holandês,
mas a que se usa normalmente é o papiamento (papia, esp. ant. e portanto
papear “falar”). A sua base é o crioulo negro-português que os negros
trouxeram da África, misturado com o espanhol falado nas Antilhas e no
litoral venezuelano. Contém também palavras holandesas (M. L. Wagner).”
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