O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Segunda Parte
6.
Liébediev, Ptítsin e o General Ívolguin correram a arrumar cadeiras para as moças. A de Agláia foi o General Ívolguin quem a trouxe. Liébediev ofereceu uma outra ao Príncipe Chtch... também, expressando, com a curvatura do seu dorso, um profundo respeito. Vária saudou as senhoritas como habitualmente, com um sussurro absorto.
- Em verdade, príncipe, contava encontrá-lo, por assim dizer, de cama. Exagerei
as coisas, na minha aflição, confesso. Senti-me terrivelmente desapontada, ainda
agora mesmo, ao deparar com o seu rosto feliz, mas lhe juro que isso não durou
mais do que um minuto, foi só enquanto não pensei. Sempre ajo e falo com mais
sensibilidade quando me dão tempo para pensar. Creio que o mesmo se dá com o
senhor. E, realmente, o restabelecimento de um filho meu não me daria mais
satisfação do que o seu restabelecimento, príncipe; e caso não me esteja
acreditando, a vergonha é para o senhor e não para mim. Este garoto malvado se
compraz em brincadeiras de mau gosto como esta, à minha custa. Parece-me
que ele é seu protégé. Se de fato é, eu o aviso desde já
que uma bela manhã me negarei o prazer e a honra de continuar nossa
amizade.
- Mas que foi que eu fiz? - perguntou Kólia. - Quanto mais eu lhe garantisse que o
príncipe já estava quase bom, a senhora não haveria de querer acreditar em
mim, porque lhe é muito mais interessante imaginá-lo em seu leito de morte.
- Veio para se demorar? - interrogou Lizavéta Prokófievna, dirigindo-se ao príncipe.
- Veio para se demorar? - interrogou Lizavéta Prokófievna, dirigindo-se ao príncipe.
- Por todo o verão, e talvez um pouco mais.
- Veio sozinho, pois não? Ou está
casado?
- Casado? Eu? - e o príncipe sorriu ante a simplicidade do escárnio.
-
Não sei por que está rindo. Podia muito bem acontecer. Estive pensando nesta
vila. Por que o senhor não foi ter conosco? Temos lugar de sobra. Mas seja como
quis. Alugou dessa pessoa aí?... Dessa? - acrescentou, abaixando a voz, apontando
Liébediev. - Por que é que ele vive dando pulinhos?
Nisto, Vera apareceu, vindo lá
da casa para a varanda, e, como sempre, com o nenezinho no colo.
Liébediev, que não parava em volta das cadeiras, completamente atarantado,
sem saber o que fazer de si próprio e tampouco querendo ir embora,
desesperadamente zonzo investiu logo contra a filha, gesticulando e a
escorraçando da varanda; e, por distração, até batendo com o pé.
- Estará ele
louco? - observou logo a Sra. Epantchina.
- Não, está mais...
- Bêbado, decerto. Esta sua roda não é lá tão atraente assim - deixou escapar,
depois de olhar de soslaio para as outras visitas. - Mas que bonita menina! Quem
é?
- É Vera Lukiánovna, a filha aqui de Liébediev.
- Ah!... Ela é muito mimosa.
Gostaria de conhecê-la.
Mal ouviu as palavras acolhedoras da Sra. Epantchiná, Liébediev tratou logo de vir trazendo a filha, empurrando-a, para apresentá-la.
- Os meus filhos sem mãe! - ganiu, aproximando-se. – E esta criancinha de colo
também é órfã; é irmã daquela, é a minha filha Liubóv... nascida do meu
legítimo casamento com a minha defunta mulher Elena, que morreu, não faz seis
meses, de parto, pela vontade do Altíssimo... Sim... ela substitui a mãe, para o
pequernicho, apesar de só ser irmã e não mais... não mais... não mais...
- E o
senhor não passa de um maluco, se me permite! E por ora, chega. - Lizavéta
Prokófievna se ia desmandando em sua indignação.
- Perfeitamente - concordou Liébediev, com uma curvatura respeitosa.
- Escute, Sr. Liébediev, é verdade o que dizem por aí? Que O senhor interpreta o
Apocalipse? - perguntou Agláia.
- Perfeitamente... Há mais de quinze anos.
- Já
ouvi qualquer coisa a seu respeito. Ou foi nos jornais?
- Não, era um outro
intérprete, um outro que já morreu. Eu sou o sucessor – disse Liébediev fora de si
de tanto júbilo.
- Então fará o favor de interpretá-lo para mim, qualquer dia
destes, já que somos vizinhos. O Apocalipse me é incompreensível.
- Devo
preveni-la, Agláia Ivánovna, de que tudo isso é simples charlatanismo da parte
dele. - o General Ívolguin pôs logo as coisas nos seus lugares; estava sentado ao
lado de Agláia, latejando de vontade de entrar na conversa. - Naturalmente que
nas férias se toleram disparates - prosseguiu - e certos divertimentos! E
encarregar um tão extraordinário intruso da interpretação do Apocalipse é um
divertimento como qualquer outro, e até mesmo uma diversão notavelmente
hábil... Mas... vejo que a senhorita está me olhando com surpresa! General
Ívolguin! Tenho a honra de apresentar-me. Muitas vezes a ergui no meu colo,
Agláia Ivánovna.
- Muita satisfação. Já conheço Varvára Ardaliónovna e Nina
Aleksándrovna - sussurrou Agláia, fazendo desesperados esforços para não cair
na gargalhada.
Lizavéta Prokófievna ficou rubra. A tensão que se estava acumulando desde
muito em seus nervos repentinamente achou uma saída. Ela não podia suportar o
General Ivôlguin, com quem já tivera relações outrora.
- O senhor está
mentindo. Aliás, como sempre, bátiuchka. O senhor nunca a ergueu no colo -
interrompeu-o ela com ar indignado.
- A senhora está esquecida. Já sim, mamãe,
em Tver - asseverou logo Agláia. - Quando nós estávamos morando em Tver, eu
tinha seis anos; lembro-me bem. Ele fez para mim um arco e uma flecha e me
ensinou a atirar; eu até matei um pombo. O senhor se lembra de que nós
matamos um pombo, juntos? - E de que o senhor me trouxe um capacete feito de
papelão e uma espada de pau?
- Eu também me lembro - fez Adelaída.
- É mesmo, estou me lembrando - interveio Aleksándra. - Até as duas brigaram
por causa do pombinho morto. E ficaram de castigo uma em cada canto.
Adelaída ficou no canto com o capacete na cabeça e a espada na mão.
Quando o General Ívolguin disse a Agláia que a tinha carregado ao colo,
dissera isso sem nenhuma significação, apenas para encetar conversa e porque
sempre iniciava uma conversa deste jeito com gente nova, quando queria fazer
relações. Mas, desta vez aconteceu que estava dizendo a verdade, muito embora,
Como se deu no momento, tivesse esquecido. Foi só quando Agláia declarou que
tinham matado um pombo juntos que a memória se lhe avivou; então se
recordou de tudo, minúcia por minúcia, segundo acontece com gente idosa,
muitas vezes, ao relembrar qualquer coisa. Seria difícil dizer que é que haveria
nessa reminiscência que pudesse produzir tão forte efeito no pobre general que
estava, como de costume, um pouco bêbado; mas o fato é que imediatamente
ficou comovido.
- Lembro-me, lembro-me perfeitamente. Eu era capitão. A senhorita era uma
bonequinha assim... Ah, Nina Aleksándrovna! Gánia... Antigamente eu
frequentava a casa de Iván Fiódorovitch!...
- E veja agora para o que deu! -
atirou-lhe a Sra. Epantchiná. - Então não bebeu ainda quanto quis, para que isso o
afete tanto assim? E não se lembra quanto tem desgostado sua senhora! Em vez
de olhar pelos filhos acabou indo parar em uma prisão de sujeitos que não
pagam! Deixe disso, bátiuchka; meta-se em qualquer canto, atrás de uma porta e
chore a sua antiga inocência; e talvez Deus lhe perdoe. Vamos, vamos, deixe
disso. Não há nada melhor para ajudar um homem a se emendar do que pensar
no passado com saudade!
É desnecessário repetir que ela estava falando seriamente. O General Ívolguin,
como todo beberrão, era muito sensível, e, como todos os bêbados que caíam
demasiado, sempre que se recordava dos tempos felizes ficava de beiço trêmulo.
Obedeceu, levantou-se e se dirigiu humildemente para a porta. Lizavéta
Prokófievna logo ficou com pena dele.
- Ardalión Aleksándrovitch, bom homem!
- chamou-o. - Espere aí. Todos nós somos pecadores. Quando sentir a
consciência mais aliviada venha ver-me. Sentaremos e falaremos sobre o
passado. Quem sabe se não sou cinquenta vezes mais pecadora do que o senhor?
Mas, por enquanto, até à vista; vá, de que lhe adianta ficar aí parado? - disse logo,
receosa, ao vê-lo voltar.
- Deixe-o sozinho, é melhor - disse o príncipe, contendo
Kólia que ia atrás do pai.
- Se ele se desapontar ainda mais, todo este minuto será perdido para ele.
- É isso
mesmo; deixe-o sozinho, por uma meia hora - apoiou Lizavéta Prokófievna.
- Estão vendo no que deu ter falado a verdade uma vez na vida? Resultou
em pranto – ousou comentar Liébediev.
- Também é outro, o senhor aí, se não é mentira o que já ouvi a seu respeito,
bátiuchka - disse Lizavéta Prokófievna, fazendo-o calar prontamente.
As relações
mútuas das visitas pouco a pouco foram se mostrando. O príncipe era
naturalmente sensível e apreciou, ao máximo, a simpatia demonstrada pela Sra.
Epantchiná e filhas e lhes disse que antes delas terem vindo já tencionava fazerlhes uma visita aquele dia mesmo, apesar do seu estado ainda precário e do
adiantado da hora. Lizavéta Prokófievna, reparando nas pessoas que o estavam
visitando, observou que ainda lhe era possível cumprir essa intenção. Ptítsin, que
era homem muito educado e cortês, prontamente se retirou para os cômodos de
Liébediev, tendo até querido levar este consigo. Liébediev, por sua vez, prometeu
ir logo. Vária, no entanto. entrara em conversa com as moças, e ali continuou.
Tanto ela como Gánia tinham ficado mais à vontade com o desaparecimento do
general. Gánia acabou se retirando, pouco depois de Ptítsin. Nos poucos minutos
em que ficou nos fundos da varanda mantivera-se discreto e digno, nem sequer
se desapontando com o ar intencional com que a Sra. Epantchiná, por duas vezes,
o examinara de alto a baixo. Quem quer que o tivesse conhecido antes havia
certamente de notar que mudara muito. E isso punha Agláia mais à vontade.
-
Quem saiu agora não foi Gavril Ardaliónovitch? - perguntou ela, sem se dirigir
propriamente a ninguém, interrompendo com a sua pergunta, feita em voz alta,
a conversa geral.
- Foi - respondeu o príncipe.
- Quase que não o conheci. Está muito mudado... Melhorou muito - disse Agláia.
- Felizmente - apoiou o príncipe, com sinceridade.
- Esteve bem doente -
acrescentou Vária, em tom de alegre comiseração.
- Melhorou em quê? -
perguntou Lizavéta Prokófievna, com muita raiva e ar escandalizado.
- Que ideia! Não vejo em quê! Qual é a melhora que lhe notam?
- Não há nada
comparável ao “pobre cavaleiro” - saiu-se, sem mais nem menos, Kólia, que
estava ao lado da cadeira da Sra. Epantchiná.
- É exatamente a minha opinião -
disse o Príncipe Chtch... e riu.
- E eu penso precisamente da mesma maneira -
declarou solenemente Adelaída.
- “Pobre cavaleiro”? Qual? - perguntou a generala, olhando para todos
eles, atarantada e em dúvida; vendo, porém, que Agláia tinha ficado vermelha,
disse logo: - Alguma asneira, naturalmente. Que “pobre cavaleiro” é esse?
- Não
é a primeira vez que esse fedelho, favorito da senhora, tem torcido
perversamente as palavras alheias! - respondeu Agláia. com uma indignação
altiva.
Em todas as explosões de raiva de Agláia (o que se dava muitas vezes) aparecia
logo, apesar do feitio sério que ela tomava, qualquer coisa de infantil ou de
colegial tão ingenuamente espetacular que era impossível deixar de rir ao olhá-la. Isso ainda a exacerbava mais, pois não podia compreender de que era que se
riam e “como podiam e ousavam rir”. Suas irmãs e o Príncipe Chtch... riam
agora e o próprio Príncipe Liév Nikoláievitch, embora também se tornando
vermelho sem saber porquê. Kólia riu estrepitosamente, achando que tinha
triunfado. Agláia, então, ficou seriamente zangada, o que redobrou a sua beleza.
A confusão lhe assentava bem e quanto mais se zangava mais confusa ficava.
- Ele tem torcido perversamente muitas das suas palavras, também! -
acrescentou ela.
- Estou me baseando nas suas próprias exclamações! - disse Kólia. - Há mais ou
menos um mês, a senhora folheava o Dom Quixote, quando disse textualmente
que nada era comparável ao “pobre cavaleiro”. Não sei a quem se referia a
senhora, se era a Dom Quixote ou a Evguénii Pávlovitch, ou qualquer outra
pessoa; mas a senhora se referiu a alguém, e até bem demoradamente.
- O
senhor está mais é se excedendo, rapazinho, com essas suas conjeturas! - ralhou
Lizavéta Prokófievna, querendo contê-lo.
- Mas não sou eu só - teimava Kólía. -
Todo o mundo disse e ainda está dizendo. Ora essa, o Príncipe Chtch..., Adelaída
Ivánovna e os demais declararam agora mesmo que ficavam a favor do “pobre
cavaleiro”. Portanto deve haver um “pobre cavaleiro”. E realmente há; creio
que se não fosse Adelaída Ivánovna nós já saberíamos há muito quem era o
“pobre cavaleiro”.
- Eu? Que foi que eu fiz? - perguntou Adelaída, rindo.
- A
senhora não quis pintar o retrato dele. Eis o que foi que a senhora fez! Naquela
ocasião Agláia Ivánovna lhe suplicou que pintasse o retrato do “pobre cavaleiro”
e lhe descreveu completamente como devia ser o quadro. Ela lhe explicou tudo.
A senhora não pintou.
- Mas como haveria eu de pintar se, conforme lá diz o poema, esse
“cavaleiro pobre” nem sequer, sempre o rosto escondido na viseira, ergue o
olhar para um corpo de mulher?
Como então lhe hei de pintar o rosto? Só se pintar a viseira.., do herói taciturno...
- Que negócio é esse de viseira? - perguntou, zangada, a generala, começando a
desconfiar a que pessoa se referiam as filhas com a tal alcunha de “o pobre
cavaleiro”.
continua página 222...
_____________________
Leia também:
_____________________
Leia também:
Segunda Parte
O Idiota: Segunda Parte (6b) - Liébediev, Ptítsin e o General Ívolguin
___________________
___________________
Nenhum comentário:
Postar um comentário