domingo, 12 de janeiro de 2025

Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Calaram-se: sob a agitação dos trêmulos - j)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann

ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust

um amor de swann

III(j) 

     Calaram-se: sob a agitação dos trêmulos de violino que a protegiam com o seu leve frêmito a duas oitavas de distância — e como numa região de montanhas, por trás da imobilidade aparente e vertiginosa de uma cascata, se avista, duzentos pés abaixo, o vulto minúsculo de uma passeante — a pequena frase acabava de aparecer, longínqua, graciosa, protegida pelo longo fluir da cortina transparente, incessante e sonora. E Swann, do fundo de seu coração, dirigiu-se a ela como a uma confidente de seu amor, como a uma amiga de Odette que deveria dizer-lhe que não se importasse com aquele Forcheville.

— Ah!, chegou tarde — disse a sra. Verdurin a um fiel que apenas fora convidado na qualidade de “palito” —, tivemos “um” Brichot incomparável, de uma eloquência! Mas já partiu. Não é mesmo, senhor Swann? Creio que é a primeira vez que se encontram — acrescentou, para ressaltar que Swann o conhecia graças a ela. — Não é verdade que esteve delicioso o nosso Brichot?

     Swann inclinou-se polidamente. 

— Como? Não lhe interessou? — perguntou secamente a sra. Verdurin. 
— Mas sim, minha senhora, e muito, fiquei encantado. Talvez um pouco peremptório e um pouco jovial para meu gosto. Eu lhe desejaria às vezes um pouco de hesitação e de brandura, mas sente-se que ele sabe muitas coisas e parece um excelente homem.  

     Todos se retiraram muito tarde. As primeiras palavras de Cottard à sua esposa foram:

— Raramente tenho visto a senhora Verdurin tão bem-disposta como esta noite. 
— Que vem a ser exatamente essa senhora Verdurin, uma mulher desfrutável? — perguntou Forcheville ao pintor, a quem convidara para voltarem juntos. 

     Odette o viu afastar-se com pesar, não se atreveu a voltar sem Swann, mas mostrou-se de mau humor durante o trajeto, e quando ele lhe perguntou se deveria entrar em casa dela, respondeu, erguendo os ombros com impaciência. “Está visto.” Depois que partiram todos os convidados, disse a sra. Verdurin ao marido:

— Não notaste o riso tolo de Swann quando falamos na senhora La Trémoïlle?

     Observara que Swann e Forcheville tinham várias vezes suprimido a partícula a esse nome. Não duvidando que fosse para mostrar que não se intimidavam com títulos, desejava imitar-lhes a altivez, mas não apreendera bem por que forma gramatical poderia ser traduzida. E como a sua viciosa maneira de falar podia mais que a sua intransigência republicana, ainda dizia os “de La Trémoïlle”, ou antes, por uma abreviatura em uso nas canções de café-concerto e nas legendas dos caricaturistas e que dissimulava o de, “os d’La Trémoïlle”, mas logo caía em si, dizendo: “A senhora La Trémoïlle”.

— A duquesa, como diz Swann — acrescentou ela com um sorriso que provava tratar-se apenas de uma citação e que não patrocinava tão ingênua e ridícula denominação. 
— Digo-te que o achei extremamente tolo. 

     E o sr. Verdurin respondeu:

— Não tem franqueza, é um cavalheiro cauteloso, sempre entre o sim e o não. Quer sempre poupar a cabra e a couve. Que diferença de Forcheville! Ao menos aí está um homem que diz redondamente o que pensa. Quer nos agrade ou não. Não é como o outro, que nunca é branco nem preto. Aliás Odette parece que prefere o Forcheville, e eu lhe dou toda a razão. E depois, já que Swann quer fazer de aristocrata conosco, de paladino das duquesas, ao menos o outro tem o seu título; sempre é o conde de Forcheville — acrescentou com ar sutil, como se, a par da história do referido condado, lhe sopesasse minuciosamente o valor particular. 
— Pois não é que ele resolveu lançar contra Brichot — prosseguiu a sra. Verdurin — algumas insinuações venenosas e ridículas?! Naturalmente, como viu que Brichot era estimado na casa, foi uma maneira de nos atingir, de estragar-nos o jantar. Imagine-se o que ele não dirá na saída! 
— Mas eu já te disse — respondeu o sr. Verdurin. — É um fracassado, o tipo do sujeitinho que tem inveja a tudo o que é um pouco grande.

     Quando a verdade é que não havia um fiel que não fosse mais malévolo do que Swann; mas tinham todos a precaução de temperar as suas maledicências com conhecidos gracejos, com uma pontinha de emoção e cordialidade; ao passo que a mínima reserva que Swann se permitia, despojada de fórmulas convencionais tais como: “Não é por falar mal, mas…”, e às quais não se dignava baixar-se, lhes parecia uma verdadeira perfídia. Há autores originais em quem a menor ousadia causa revolta porque não lisonjearam de início os gostos do público e não lhe serviram os lugares-comuns a que estava habituado; era da mesma forma que Swann indignava ao sr. Verdurin. No caso de Swann, como no daqueles autores, era a novidade da linguagem que fazia acreditar na perversidade das suas intenções.
     Swann ignorava ainda o desvalimento de que se achava ameaçado em casa dos Verdurin e continuava a ver os ridículos do casal sob um prisma cor-de-rosa, através de seu amor.
     Na maioria das vezes, só se encontrava com Odette à noite; mas de dia, como receasse fatigá-la indo à sua casa, queria ao menos não deixar de ocupar-lhe o pensamento, e a todo instante procurava ensejo de fazer-se lembrado, mas de maneira agradável para ela. Se via na montra de um florista ou de um ourives alguma planta ou joia que lhe agradassem, logo pensava em enviá-las a Odette, imaginando que aquele prazer que sentira ao vê-las também ela o sentiria, e viria a aumentar o seu afeto, e mandava-as imediatamente à rua La Pérouse para não retardar o instante em que, ao receber Odette alguma coisa da sua parte, pudesse ele de algum modo sentir-se junto dela. Queria principalmente que ela as recebesse antes de sair para que a sua gratidão lhe valesse uma acolhida mais afetuosa quando o visse nos Verdurin, ou talvez, quem sabe, se o fornecedor fosse bastante expedito, uma carta que ela lhe enviaria antes do jantar, ou a sua vinda em pessoa à casa dele, numa visita suplementar, para agradecer-lhe. Como antes, quando experimentava as reações do despeito em Odette, procurava extrair-lhe íntimas parcelas de sentimento que ela ainda não lhe havia revelado.
     Muitas vezes se via Odette em embaraços financeiros e, em caso de dívida urgente, lhe pedia auxílio. Swann sentia-se feliz com isso, como de tudo o que pudesse dar a Odette uma grande ideia do amor que lhe dedicava, ou simplesmente da sua influência, do útil que lhe poderia ser. Indubitavelmente, se lhe houvessem dito no princípio: “É a tua posição que lhe agrada”, e agora: “É pela tua fortuna que ela te ama”, Swann não o acreditaria, mas não ficaria muito descontente que a imaginassem presa a ele — que os sentissem mutuamente unidos — por alguma coisa de tão forte como o esnobismo ou o dinheiro. Mas, mesmo pensando que fosse verdade, era bem possível que não sofresse ao descobrir no amor de Odette esse esteio mais duradouro que o agrado ou as qualidades que ela pudesse achar em seu amigo: o interesse, o interesse que nunca deixaria chegar a hora em que ela não mais sentisse a vontade de vê-lo. De momento, cumulando-a de presentes, prestando-lhe serviços, podia descansar confiadamente nessas vantagens exteriores à sua pessoa e à sua inteligência, do exaustivo cuidado de lhe agradar por si mesmo. E aquela voluptuosidade de estar enamorado, de só viver de amor, de cuja realidade outrora duvidava, o preço que em suma lhe custava, como diletante de sensações imateriais, vinha ainda aumentar-lhe o valor — como se veem pessoas, até então incertas de que o espetáculo do mar e o rumor das vagas sejam coisas deveras deliciosas, logo se convencerem disso, bem como da rara qualidade e desinteresse de seus gastos, quando alugam a cem francos por dia o quarto de hotel que lhes permite apreciá-los.
     Um dia em que reflexões desse gênero lhe evocavam de novo a época em que lhe haviam falado de Odette como de uma mulher sustentada, e em que uma vez mais se divertia em comparar essa personificação estranha, a mulher sustentada — irisado amálgama de elementos desconhecidos e diabólicos, ornado, como uma aparição de Gustave Moreau, de venenosas flores entrelaçadas a joias preciosas —, com aquela mesma Odette em cuja fisionomia vira passar os mesmos sentimentos de piedade por um infeliz, de revolta contra uma injustiça, de gratidão por um benefício, que outrora vira sua própria mãe e seus amigos experimentarem, aquela Odette cujas palavras tantas vezes versavam sobre as coisas que ele melhor conhecia, as suas coleções, o seu quarto, o seu velho criado, o banqueiro a quem confiara seus títulos, sucedeu que esta última imagem lhe lembrou que precisava retirar dinheiro do banco. Se no mês atual, com efeito, auxiliasse menos liberalmente a Odette do que no mês passado, quando lhe dera cinco mil francos, e não lhe oferecesse o desejado colar de diamantes, não renovaria em sua amiga a admiração que tinha ela por sua generosidade e aquela gratidão que o faziam tão feliz, e até arriscaria a dar-lhe a entender que diminuíra o seu amor, em vista de se tornarem menores as suas manifestações. Então, de súbito, indagou se aquilo não seria precisamente “sustentá-la” (como se, de fato, essa noção de sustentar se pudesse inferir não de elementos misteriosos ou perversos, mas pertencentes ao fundo cotidiano e privado de sua vida, tal como aquela nota de mil francos, doméstica e familiar, rasgada e colada, que o seu criado, depois de pagar o aluguel e as contas do mês, guardara na gaveta do velho móvel de onde Swann a retirara para remetê-la a Odette, com mais quatro notas) e se não se poderia aplicar a Odette, desde que a conhecia (pois não suspeitou um só instante que ela jamais pudesse receber dinheiro de outra pessoa antes dele), aquela designação de “mulher sustentada”, que julgara tão incompatível com Odette. Não pôde aprofundar tal ideia, pois um ataque de preguiça de espírito, que lhe era congênita, intermitente e providencial, veio naquele momento extinguir toda luz em sua inteligência, tão subitamente como, mais tarde, depois de instalada por toda parte a iluminação elétrica, se poderia cortar a eletricidade numa casa. Seu pensamento tateou um instante nas trevas, ele retirou os óculos, enxugou-lhes os vidros, passou a mão pelos olhos, e só tornou a ver a luz quando se encontrou em presença de uma ideia muito diferente, isto é, de que no próximo mês deveria mandar a Odette seis ou sete mil francos, em vez de cinco mil, por causa da surpresa e júbilo que isso lhe causaria.
     À noite, quando não ficava em casa esperando a hora de encontrar-se com Odette nos Verdurin ou nalgum dos restaurantes de verão do Bois ou de Saint-Cloud de que tanto gostava, ia ele jantar nalguma das casas elegantes de que era outrora conviva habitual. Não queria perder contato com pessoas que talvez um dia pudessem ser úteis a Odette, e graças às quais conseguia por enquanto lhe ser agradável, não raras vezes. Depois, o hábito que por tanto tempo tivera da sociedade e do luxo lhe havia dado não só o desdém, mas a necessidade de tais coisas, de sorte que, desde que lhe apareciam no mesmo plano as casas mais modestas e as mansões mais principescas, de tal modo estavam os seus sentidos acostumados às segundas que sentiria algum mal-estar ao encontrar-se nas primeiras. Tinha na mesma consideração — e num grau de identidade que ninguém acreditaria — os pequenos burgueses que davam algum baile num quinto andar, escada D, porta da esquerda, e a princesa de Parma, que oferecia as mais belas festas de Paris; mas não tinha a sensação de estar num baile ao ficar com os pais de família no quarto da dona da casa, e, ao ver os toucadores recobertos de toalhas, os leitos transformados em vestiários, amontoados de capas e chapéus, tinha a mesma sensação de abafamento que pode hoje causar a pessoas habituadas a vinte anos de eletricidade o cheiro de um lampião que fumega ou de uma vela que escorre.
     Quando jantava na cidade, mandava atrelar o carro para as sete e meia; vestia-se pensando em Odette, e assim não se sentia sozinho, pois o pensamento constante de Odette dava aos instantes em que se achava longe dela o mesmo encanto daqueles em que estavam juntos. Subia ao carro, mas sentia que aquele pensamento para ali saltara ao mesmo tempo, instalando-se em seus joelhos como um animal de estimação que se leva a toda parte e que ele conservaria consigo à mesa, sem que os outros convivas o soubessem. Acariciava-o, aquecia-se nele, e, numa espécie de langor, sentia, coisa inédita, um leve frêmito que lhe arrepiava o pescoço e o nariz, enquanto fixava na lapela um ramo de ancólias. Sentindo-se desde algum tempo indisposto e melancólico, principalmente depois que Odette apresentara Forcheville aos Verdurin, desejaria ir descansar um pouco no campo. Mas não teria coragem de deixar Paris um único dia enquanto Odette ali estivesse. A atmosfera estava quente; eram os mais belos dias de primavera. E muito embora atravessasse uma cidade pétrea para meter-se nalgum recinto fechado, o que sempre tinha diante dos olhos era um parque que possuía perto de Combray, onde, desde as quatro horas, antes de chegar à horta de aspargos, graças ao vento que sopra dos campos de Méséglise, se podia, debaixo de uma latada, gozar de tanta frescura como à beira do tanque bordado de miosótis e palmas-de-santa-rita, e onde, quando ele jantava, corriam em torno da mesa, afestoados pelo jardineiro, os ramos de groselhas e rosas.
     Findo o jantar, se o encontro no Bois ou em Saint-Germain era para logo, ele partia tão depressa ao sair da mesa — sobretudo se ameaçava chuva, obrigando os “fiéis” a se recolherem mais cedo — que a princesa Des Laumes (uma vez em que haviam jantado tarde em sua casa e Swann se retirara sem esperar pelo café, a fim de se encontrar com os Verdurin na ilha do Bois) fez esta observação:

— Francamente, se Swann fosse trinta anos mais velho e sofresse da bexiga, seria desculpável escapar desse modo. Mas assim já é fazer pouco da gente.

     Pensava Swann que o encanto primaveril que não podia ir gozar em Combray pelo menos o encontraria na Ilha dos Cisnes ou em Saint-Cloud. Mas como não podia pensar senão em Odette, nem sequer sabia se sentira o perfume das flores e se houvera luar. Acolhia-o a pequena frase da sonata, tocada ao piano no jardim do restaurante. Se ali não havia piano, tinham os Verdurin enorme trabalho em fazê-lo descer de um quarto ou do refeitório. Não queria isso dizer que Swann houvesse caído de novo nas suas boas graças. Mas a ideia de organizar um engenhoso prazer para alguém, mesmo para uma pessoa a quem não estimavam, lhes despertava, durante os momentos necessários a tais preparativos, efêmeros e ocasionais sentimentos de simpatia e cordialidade. Às vezes dizia ele consigo que era mais uma noite de primavera que passava, e constrangia-se a prestar atenção às árvores, ao céu. Mas a inquietação que lhe causava a presença de Odette, e também uma leve indisposição febril que não o deixava desde algum tempo, privavam-no da calma e do bem-estar que são o fundo indispensável às impressões que pode proporcionar a natureza. 
     Um dia em que aceitara convite para jantar nos Verdurin, como dissesse que no dia seguinte iria a um banquete de antigos camaradas, respondera-lhe Odette em plena mesa, diante de Forcheville, que era agora um dos fiéis, diante do pintor, diante de Cottard: 

— Sim, eu sei que você tem o seu banquete, de modo que só o verei em minha casa, mas não vá muito tarde. 

     Embora nunca se houvesse enciumado a sério das provas de amizade que dava Odette a um ou outro dos fiéis, experimentava uma profunda doçura ao vê-la confessar diante de todos, com aquele tranquilo impudor, os seus cotidianos encontros à noite, a situação privilegiada que tinha ele em sua casa e a preferência que isso implicava. Na verdade, muitas vezes considerava Swann que Odette não era absolutamente uma mulher notável; e o domínio que exercia sobre uma criatura que lhe era tão inferior nada tinha que se lhe pudesse afigurar tão lisonjeiro vê-lo assim proclamado à face dos “fiéis”, mas desde que se apercebera de que Odette parecia a muitos homens uma mulher encantadora e desejável, o encanto que para os outros possuía o seu corpo despertara nele um desejo doloroso de a subjugar inteiramente nas mais recônditas partes de seu coração. E começara a atribuir inestimável valor àqueles momentos passados em casa dela à noite, quando a assentava sobre os joelhos e a fazia dizer o que pensava de uma coisa e outra, quando recenseava os únicos bens a cuja posse se apegava agora neste mundo. E chamando-a à parte após o jantar, não deixou de agradecer-lhe efusivamente, procurando fazer-lhe compreender, conforme os graus da gratidão que lhe demonstrava, a escala dos prazeres que ela lhe podia dar, o maior dos quais era garanti-lo das investidas do ciúme, enquanto durasse o seu amor e a conseguinte vulnerabilidade a tal sentimento. 
     Quando saiu do banquete na noite seguinte, chovia a cântaros e, como só dispunha da sua vitória, um amigo o convidou para conduzi-lo à casa de cupê; e visto que Odette, pelo fato de lhe ter pedido que comparecesse, lhe dera a certeza de que não esperava ninguém, ele se recolheria então à casa, de espírito tranquilo e coração contente, de preferência a partir assim sob a chuva. Mas se Odette visse que não fazia questão de passar sempre com ela, sem exceção, o fim da noite, talvez negligenciasse de a reservar precisamente quando ele mais o desejasse.
     Chegou à casa de Odette depois das onze e, como se desculpasse não ter podido vir mais cedo, ela queixou-se de que com efeito era muito tarde, a tempestade a deixara indisposta, estava com dor de cabeça e o preveniu de que não o reteria mais de meia hora, despachando-o à meia-noite; pouco depois, sentiu-se fatigada e manifestou desejo de dormir.

— E então, nada de catleias esta noite? E eu que esperava uma boa catleiazinha! — disse ele.

     E, com um ar meio amuado e nervoso, Odette respondeu:

— Não, meu pequeno, nada de catleias esta noite, bem vês que estou indisposta! 
— Talvez te fizesse bem, mas em todo caso não insisto.

     Pediu-lhe que apagasse a luz antes de sair, ele próprio fechou os cortinados do leito e partiu. Mas, ao chegar em casa, veio-lhe bruscamente a ideia de que Odette talvez estivesse esperando alguém naquela noite, que apenas simulara cansaço e só lhe pedira que apagasse a luz para ele pensar que ela ia dormir e que, após a sua partida, de novo a acendera, fazendo entrar aquele que devia passar a noite com ela. Consultou o relógio. Fazia mais ou menos hora e meia que a deixara; tornou a sair, tomou um fiacre e parou perto da casa de Odette, numa ruazinha perpendicular à que ficava atrás da sua residência e aonde ele ia às vezes bater-lhe à janela do quarto para que ela lhe viesse abrir; apeou do carro, o quarteirão estava deserto e às escuras, bastou-lhe andar alguns passos e foi dar quase diante da casa de Odette. Em meio à obscuridade de todas as janelas de há muito apagadas na rua, viu uma única de onde extravasava — entre os postigos que lhe premiam a polpa misteriosa e dourada — a luz que enchia o quarto e que, em tantas outras noites, por mais longe que a visse ao entrar na rua, logo o alegrava, anunciando- lhe: “Ela está aqui a esperar-te” e que agora o torturava, dizendo-lhe: “Ela está aqui, com aquele a quem esperava”. Queria saber quem era; deslizou ao longo da parede até a janela, mas nada podia distinguir entre as folhas oblíquas dos postigos; ouvia apenas no silêncio da noite o murmúrio de uma conversação.

continua na página 176...
________________

Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Calaram-se: sob a agitação dos trêmulos - j)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
____________________

Nenhum comentário:

Postar um comentário