volume VII
O Tempo Recuperado
continuando...
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- Você não sabe, meu caro amigo - dizia ela -, mas já faz quase dois anos que
estamos em Tansonville. Cheguei aqui ao mesmo tempo que os alemães; todos quiseram
impedir-me de partir. Chamavam-me de louca. Como diziam "você se achará em segurança
em Paris e vai partir para essas regiões invadidas, justo no momento em que todos
procuram fugir de lá". Eu ignorava tudo o que esse raciocínio continha de exato. Mas, que
quer, só possuo uma qualidade, não sou covarde, ou melhor se prefere, sou fiel, e, quando
soube que minha querida Tansonville estava também não quis que o nosso velho caseiro
ficasse sozinho a defendê-la. Julguei que meu lugar era a seu lado. De resto, foi graças a
esta resolução que mais ou menos pude salvar o castelo, quando todos os outros das
vizinhanças, abandonados por proprietários enlouquecidos, foram quase todos destruídos
de alto a baixo e não apenas salvar o castelo, mas as preciosas coleções que meu querido
papai prezava.
Numa palavra, Gilberte agora estava convencida de que não fora à Tansonville,
como me escrevera em 1914, para fugir dos alemães e estar sem esperança, mas, ao
contrário, para encontrá-los e defender seu castelo contra eles.
No entanto, não tinha permanecido em Tansonville, mas nem por isso deixara haver
ali um vaivém constante de militares, muito superior ao que na rua de Combray.
Françoise só fazia derramar lágrimas, e Gilberte podia dizer, e agora sem fugir à
verdade, que levava uma vida de frente de batalha. Assim, todos os jornais falavam de sua
conduta admirável com os maiores elogios, e pensava-se em condecorá-la. O fim de sua
carta era rigorosamente exato. Você não faz ideia do que é esta guerra, meu caro amigo, e
da importância que nela assume uma estrada, uma ponte, uma elevação. Quantas vezes
pensei em você, nos passeios, tornados deliciosos graças a você, que fazíamos por toda
essa região hoje devastada, no momento em que imensos combates se travavam pela
posse de um determinado caminho, de um certo outeiro de que você gostava, onde subimos
juntos tantas vezes! Provavelmente, você, como eu, não imaginava que a obscura
Roussainville e a enfadonha Méséglise, de onde nos levavam nossas cartas, e onde foram
buscar o médico quando você esteve doente, seriam jamais lugares célebres. Pois bem,
meu caro amigo, elas são gloriosas para sempre, no mesmo nível de Austerlitz ou de Valmy.
A batalha de Méséglise durou mais de oito meses, nela os alemães perderam mais de
seiscentos mil homens; destruíram Méséglise, mas não a tomaram. A pequena vereda de
que você gostava tanto, a que chamávamos de ladeirinha de espinheiros, e onde pretende
ter se apaixonado por mim na infância, ao passo que, na verdade, afirmo-lhe que era eu
quem estava apaixonada por você, nem posso lhe dizer a importância que ela adquiriu. O
imenso campo de trigo a que ela conduz é o famoso marco 307, cujo nome você deve ter
lido tantas vezes nos comunicados. Os franceses explodiram a pontezinha sobre o Vivonne,
a qual, dizia você, não lhe recordava a infância tanto quanto desejaria; os alemães
explodiram outras, durante um ano e meio ocuparam uma metade de Combray, e os
franceses a outra metade.
No dia seguinte àquele em que eu havia recebido esta carta, ou seja, na antevéspera
do dia em que, andando na escuridão, ouvindo soar o ruído de meus passos, ruminando
todas essas lembranças, Saint-Loup, vindo do front, quase de regresso, fizera-me uma visita
de apenas alguns minutos, que só em ser anunciada me deixou violentamente emocionado.
Françoise quisera precipitar-se para ele, esperando que Saint-Loup pudesse mandar
reformar o tímido aprendiz de açougueiro, cuja classe partiria dentro de um ano. Mas ela
própria se susteve, pela inutilidade de semelhante pedido, pois de há muito o tímido matador
de animais havia mudado de açougue. E, ou porque a dona do nosso temesse perder a
freguesia, ou porque estivesse de boa-fé, declarou a Françoise que ignorava onde se
empregava o rapaz, que, de resto, não daria um bom açougueiro. Françoise, então, havia
procurado em todo canto, mas Paris é grande, e os açougues numerosos, e ela não pudera
achar o jovem tímido e sangrento.
Quando Saint-Loup entrou no meu quarto, aproximei-me dele com a sensação de
timidez, com a impressão de sobrenatural que davam, no fundo, todos os convocados em
licença, e que experimentamos quando somos levados à presença de uma pessoa atacada
de moléstia mortal, e que, no entanto, ainda se levanta, veste-se e passeia. Parecia
(parecera, sobretudo no começo, pois para quem não vivera, como eu, longe de Paris,
sobreviera o hábito, cortando das coisas que diversas vezes a raiz da impressão profunda e
de pensamento que lhes não tinha sentido real), parecia quase haver algo de cruel nessas
licenças dadas aos combatentes. Nas primeiras, dizia-se: "Não hão de querer voltar,
desertarão." E, não regressavam apenas de lugares que nos pareciam irreais porque só
tínhamos ouvido falar deles pelos jornais, e porque não imaginávamos a possibilidade de
alguém tomar parte nesses combates titânicos e voltar com apenas um ombro; era das
margens da morte, às quais voltariam, que eles regressavam; um momento para ficar
conosco, incompreensíveis para nós, enchendo-nos de assombro, e de uma sensação de
mistério, como esses mortos que evocamos, que nos aparecem por um segundo, que não
ousamos interrogar quando muito, poderiam responder: "Não poderíeis fazer ideia." Pois é
extraordinário verificar a que ponto, seja entre os que escaparam do fogo, que são os
combatentes de licença entre os vivos, seja entre os espíritos que um médium hipnotizado
ou o único efeito do contato com o mistério é o de aumentar, se possível, a implicância das
frases. Assim, abordei Robert, que ainda trazia na testa uma cicatriz mais augusta e
misteriosa para mim que a impressão deixada na terra pelo um gigante. E eu não tivera
coragem de lhe fazer qualquer pergunta, e ele dissera simples palavras; e estas ainda eram
bem pouco diferentes das de antes da guerra como se, apesar dela, as pessoas
continuassem a ser o que eram: o retorno das conversas era o mesmo, apenas o assunto
diferia, e ainda assim!
Julguei entender que Robert encontrara no exército expedientes que poucos o
tinham feito esquecer que Morel procedera tão mal com ele como seu tio. Todavia,
conservava-lhe grande amizade e era possuído de bruscos de tornar a vê-lo, sempre
adiados. Julguei mais delicado para com Gilberte indicar à Robert que, para encontrar
Morel, bastava que ele fosse à casa da Sra. Verdurin. Disse humildemente a Robert quão
pouco se sentia a guerra; retrucou-me que, mesmo em Paris, às vezes ocorriam "coisas
incríveis". A um ataque de zepelins que houvera na véspera, e me perguntou se o vira, mas
me falaria antigamente de algum espetáculo de grande beleza estética. No entanto se
compreende que haja uma espécie de coqueteria em dizer: "É maravilhoso! Que rosa! E que
verde-claro!" no momento em que se pode a todo instante ver a morte; porém isto não
existia em Saint-Loup, em Paris, a propósito de um insignificante, mas que, da nossa
varanda, no silêncio de uma noite onde houve de súbito, uma festa verdadeira de foguetes
úteis e protetores, toque de clarins não eram para a parada etc. Comentei a beleza dos
aviões que subiam à noite.
- Talvez, mais ainda a dos que descem -disse ele. - Reconheço que é muito bonito o
momento em que eles sobem, quando vão fazer constelação, e nisso obedecem a leis tão
precisas como as que regem as constelações, pois o que te parece um espetáculo é o
alinhamento das esquadrilhas, o comando que lhes dão, sua partida para a caça etc. Mas
não preferes o momento em que, definitivamente comparados às estrelas, eles diferem
destas para sair em caça, ou voltar após o toque de recolher, no momento em que fazem
apocalipse e até as estrelas saem do lugar? E as sirenes, não seriam bem wagnerianas, o
que, de resto, seria bem natural para saudar a chegada dos alemães, parecendo hino
nacional, Wachtam Rhein [1], com o Kronprinz e as princesas no camarote imperial; era para se
perguntar se se tratava mesmo de aviadores ou antes das Valquírias que subiam. -
Parecia comprazer-se nessa comparação entre aviadores e Valquírias, explicando-a,
de resto, por motivos puramente musicais:
- Ora, é que a música das sirenes era a de uma Cavalgada! Decididamente, é
preciso a chegada dos alemães para que se ouça Wagner em Paris.
Volume 6
continua na página 065...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
O Tempo Recuperado (E agora, na minha segunda volta à Paris)
________________[1] Wachtam Rhein ('A guarda do Reno'), poema de Max Schneckenburger (1819-1849)
musicado por Karl Wilhelm à Ferrari: François Ferrari, cronista mundano do Fígaro, em
Paris, fins do século XIX e começos do XX. (N. do T)
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