quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (E agora, na minha segunda volta à Paris)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado


continuando...

     E agora, na minha segunda volta à Paris, eu recebera, logo no dia seguinte à minha chegada, uma nova carta de Gilberte que, sem dúvida, havia esquecido da outra, ou pelo menos o sentido dela, de que já falei; pois sua partida de Paris, em fins de 1914, era ali apresentada retrospectivamente de modo bem diverso.

- Você não sabe, meu caro amigo - dizia ela -, mas já faz quase dois anos que estamos em Tansonville. Cheguei aqui ao mesmo tempo que os alemães; todos quiseram impedir-me de partir. Chamavam-me de louca. Como diziam "você se achará em segurança em Paris e vai partir para essas regiões invadidas, justo no momento em que todos procuram fugir de lá". Eu ignorava tudo o que esse raciocínio continha de exato. Mas, que quer, só possuo uma qualidade, não sou covarde, ou melhor se prefere, sou fiel, e, quando soube que minha querida Tansonville estava também não quis que o nosso velho caseiro ficasse sozinho a defendê-la. Julguei que meu lugar era a seu lado. De resto, foi graças a esta resolução que mais ou menos pude salvar o castelo, quando todos os outros das vizinhanças, abandonados por proprietários enlouquecidos, foram quase todos destruídos de alto a baixo e não apenas salvar o castelo, mas as preciosas coleções que meu querido papai prezava. 

     Numa palavra, Gilberte agora estava convencida de que não fora à Tansonville, como me escrevera em 1914, para fugir dos alemães e estar sem esperança, mas, ao contrário, para encontrá-los e defender seu castelo contra eles. 
     No entanto, não tinha permanecido em Tansonville, mas nem por isso deixara haver ali um vaivém constante de militares, muito superior ao que na rua de Combray.  
     Françoise só fazia derramar lágrimas, e Gilberte podia dizer, e agora sem fugir à verdade, que levava uma vida de frente de batalha. Assim, todos os jornais falavam de sua conduta admirável com os maiores elogios, e pensava-se em condecorá-la. O fim de sua carta era rigorosamente exato. Você não faz ideia do que é esta guerra, meu caro amigo, e da importância que nela assume uma estrada, uma ponte, uma elevação. Quantas vezes pensei em você, nos passeios, tornados deliciosos graças a você, que fazíamos por toda essa região hoje devastada, no momento em que imensos combates se travavam pela posse de um determinado caminho, de um certo outeiro de que você gostava, onde subimos juntos tantas vezes! Provavelmente, você, como eu, não imaginava que a obscura Roussainville e a enfadonha Méséglise, de onde nos levavam nossas cartas, e onde foram buscar o médico quando você esteve doente, seriam jamais lugares célebres. Pois bem, meu caro amigo, elas são gloriosas para sempre, no mesmo nível de Austerlitz ou de Valmy. A batalha de Méséglise durou mais de oito meses, nela os alemães perderam mais de seiscentos mil homens; destruíram Méséglise, mas não a tomaram. A pequena vereda de que você gostava tanto, a que chamávamos de ladeirinha de espinheiros, e onde pretende ter se apaixonado por mim na infância, ao passo que, na verdade, afirmo-lhe que era eu quem estava apaixonada por você, nem posso lhe dizer a importância que ela adquiriu. O imenso campo de trigo a que ela conduz é o famoso marco 307, cujo nome você deve ter lido tantas vezes nos comunicados. Os franceses explodiram a pontezinha sobre o Vivonne, a qual, dizia você, não lhe recordava a infância tanto quanto desejaria; os alemães explodiram outras, durante um ano e meio ocuparam uma metade de Combray, e os franceses a outra metade.
     No dia seguinte àquele em que eu havia recebido esta carta, ou seja, na antevéspera do dia em que, andando na escuridão, ouvindo soar o ruído de meus passos, ruminando todas essas lembranças, Saint-Loup, vindo do front, quase de regresso, fizera-me uma visita de apenas alguns minutos, que só em ser anunciada me deixou violentamente emocionado. Françoise quisera precipitar-se para ele, esperando que Saint-Loup pudesse mandar reformar o tímido aprendiz de açougueiro, cuja classe partiria dentro de um ano. Mas ela própria se susteve, pela inutilidade de semelhante pedido, pois de há muito o tímido matador de animais havia mudado de açougue. E, ou porque a dona do nosso temesse perder a freguesia, ou porque estivesse de boa-fé, declarou a Françoise que ignorava onde se empregava o rapaz, que, de resto, não daria um bom açougueiro. Françoise, então, havia procurado em todo canto, mas Paris é grande, e os açougues numerosos, e ela não pudera achar o jovem tímido e sangrento.
     Quando Saint-Loup entrou no meu quarto, aproximei-me dele com a sensação de timidez, com a impressão de sobrenatural que davam, no fundo, todos os convocados em licença, e que experimentamos quando somos levados à presença de uma pessoa atacada de moléstia mortal, e que, no entanto, ainda se levanta, veste-se e passeia. Parecia (parecera, sobretudo no começo, pois para quem não vivera, como eu, longe de Paris, sobreviera o hábito, cortando das coisas que diversas vezes a raiz da impressão profunda e de pensamento que lhes não tinha sentido real), parecia quase haver algo de cruel nessas licenças dadas aos combatentes. Nas primeiras, dizia-se: "Não hão de querer voltar, desertarão." E, não regressavam apenas de lugares que nos pareciam irreais porque só tínhamos ouvido falar deles pelos jornais, e porque não imaginávamos a possibilidade de alguém tomar parte nesses combates titânicos e voltar com apenas um ombro; era das margens da morte, às quais voltariam, que eles regressavam; um momento para ficar conosco, incompreensíveis para nós, enchendo-nos de assombro, e de uma sensação de mistério, como esses mortos que evocamos, que nos aparecem por um segundo, que não ousamos interrogar quando muito, poderiam responder: "Não poderíeis fazer ideia." Pois é extraordinário verificar a que ponto, seja entre os que escaparam do fogo, que são os combatentes de licença entre os vivos, seja entre os espíritos que um médium hipnotizado ou o único efeito do contato com o mistério é o de aumentar, se possível, a implicância das frases. Assim, abordei Robert, que ainda trazia na testa uma cicatriz mais augusta e misteriosa para mim que a impressão deixada na terra pelo um gigante. E eu não tivera coragem de lhe fazer qualquer pergunta, e ele dissera simples palavras; e estas ainda eram bem pouco diferentes das de antes da guerra como se, apesar dela, as pessoas continuassem a ser o que eram: o retorno das conversas era o mesmo, apenas o assunto diferia, e ainda assim!
     Julguei entender que Robert encontrara no exército expedientes que poucos o tinham feito esquecer que Morel procedera tão mal com ele como seu tio. Todavia, conservava-lhe grande amizade e era possuído de bruscos de tornar a vê-lo, sempre adiados. Julguei mais delicado para com Gilberte indicar à Robert que, para encontrar Morel, bastava que ele fosse à casa da Sra. Verdurin. Disse humildemente a Robert quão pouco se sentia a guerra; retrucou-me que, mesmo em Paris, às vezes ocorriam "coisas incríveis". A um ataque de zepelins que houvera na véspera, e me perguntou se o vira, mas me falaria antigamente de algum espetáculo de grande beleza estética. No entanto se compreende que haja uma espécie de coqueteria em dizer: "É maravilhoso! Que rosa! E que verde-claro!" no momento em que se pode a todo instante ver a morte; porém isto não existia em Saint-Loup, em Paris, a propósito de um insignificante, mas que, da nossa varanda, no silêncio de uma noite onde houve de súbito, uma festa verdadeira de foguetes úteis e protetores, toque de clarins não eram para a parada etc. Comentei a beleza dos aviões que subiam à noite.

- Talvez, mais ainda a dos que descem -disse ele. - Reconheço que é muito bonito o momento em que eles sobem, quando vão fazer constelação, e nisso obedecem a leis tão precisas como as que regem as constelações, pois o que te parece um espetáculo é o alinhamento das esquadrilhas, o comando que lhes dão, sua partida para a caça etc. Mas não preferes o momento em que, definitivamente comparados às estrelas, eles diferem destas para sair em caça, ou voltar após o toque de recolher, no momento em que fazem apocalipse e até as estrelas saem do lugar? E as sirenes, não seriam bem wagnerianas, o que, de resto, seria bem natural para saudar a chegada dos alemães, parecendo hino nacional, Wachtam Rhein [1], com o Kronprinz e as princesas no camarote imperial; era para se perguntar se se tratava mesmo de aviadores ou antes das Valquírias que subiam. - 

     Parecia comprazer-se nessa comparação entre aviadores e Valquírias, explicando-a, de resto, por motivos puramente musicais:

- Ora, é que a música das sirenes era a de uma Cavalgada! Decididamente, é preciso a chegada dos alemães para que se ouça Wagner em Paris. 

O Tempo Recuperado (E agora, na minha segunda volta à Paris)
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[1] Wachtam Rhein ('A guarda do Reno'), poema de Max Schneckenburger (1819-1849) musicado por Karl Wilhelm à Ferrari: François Ferrari, cronista mundano do Fígaro, em Paris, fins do século XIX e começos do XX. (N. do T)

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