em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
III(o)
Por certo que Swann não tinha consciência direta da extensão daquele amor. Quando procurava medi-lo, acontecia-lhe às vezes que lhe parecia diminuído, quase reduzido a nada; por exemplo, o pouco de gosto, quase o desgosto, que lhe haviam inspirado, antes de amar Odette, os seus traços acentuados, a sua pele sem frescura, e que tornava a sentir alguns dias. “Na verdade há um sensível progresso, pensava ele no dia seguinte; bem considerando as coisas, eu ontem não sentia quase nenhum prazer em estar no seu leito, é curioso como até a achava feia.” E sem dúvida era sincero, mas o seu amor estendia-se muito além das regiões do desejo físico. A própria pessoa de Odette não ocupava nele um lugar considerável. Quando dava com os olhos no retrato de Odette sobre a mesa, ou quando ia vê-la, tinha dificuldade em identificar a figura de carne ou de cartão com a dolorosa e constante perturbação que o habitava. Dizia-se quase com espanto: “É ela!”, como se de súbito nos mostrassem exteriorizada ante os olhos uma de nossas doenças e não a achássemos semelhante ao que sofremos. “Ela”, tentava Swann perguntar o que era; pois há uma semelhança entre o amor e a morte, mais do que essas tão vagas que se repetem sempre: a de fazer-nos interrogar mais fundo, no medo de que nos fuja a sua essência, o mistério da personalidade. E aquela doença que era o amor de Swann de tal modo se multiplicara, estava tão estreitamente ligada a todos os hábitos de Swann, a todos os seus atos, a seu pensamento, a sua saúde, a seu sono, a sua vida, até ao que ele desejava após a morte, era de tal sorte um só todo com ele, que não lhe poderiam arrancar sem o destruir quase por completo: como se diz em cirurgia, o seu amor não era mais operável.
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
um amor de swann
Por certo que Swann não tinha consciência direta da extensão daquele amor. Quando procurava medi-lo, acontecia-lhe às vezes que lhe parecia diminuído, quase reduzido a nada; por exemplo, o pouco de gosto, quase o desgosto, que lhe haviam inspirado, antes de amar Odette, os seus traços acentuados, a sua pele sem frescura, e que tornava a sentir alguns dias. “Na verdade há um sensível progresso, pensava ele no dia seguinte; bem considerando as coisas, eu ontem não sentia quase nenhum prazer em estar no seu leito, é curioso como até a achava feia.” E sem dúvida era sincero, mas o seu amor estendia-se muito além das regiões do desejo físico. A própria pessoa de Odette não ocupava nele um lugar considerável. Quando dava com os olhos no retrato de Odette sobre a mesa, ou quando ia vê-la, tinha dificuldade em identificar a figura de carne ou de cartão com a dolorosa e constante perturbação que o habitava. Dizia-se quase com espanto: “É ela!”, como se de súbito nos mostrassem exteriorizada ante os olhos uma de nossas doenças e não a achássemos semelhante ao que sofremos. “Ela”, tentava Swann perguntar o que era; pois há uma semelhança entre o amor e a morte, mais do que essas tão vagas que se repetem sempre: a de fazer-nos interrogar mais fundo, no medo de que nos fuja a sua essência, o mistério da personalidade. E aquela doença que era o amor de Swann de tal modo se multiplicara, estava tão estreitamente ligada a todos os hábitos de Swann, a todos os seus atos, a seu pensamento, a sua saúde, a seu sono, a sua vida, até ao que ele desejava após a morte, era de tal sorte um só todo com ele, que não lhe poderiam arrancar sem o destruir quase por completo: como se diz em cirurgia, o seu amor não era mais operável.
De tal modo havia aquele amor desligado Swann de todos os interesses que, quando
voltava por acaso à sociedade, considerando que suas relações, como um engaste
elegante que ela aliás não saberia exatamente apreciar, podiam realçá-lo um pouco aos
olhos de Odette (e isso com efeito poderia ser verdade se essas relações não fossem
aviltadas por aquele mesmo amor que por Odette depreciava todas as coisas em que ele
tocava, pelo fato de que parecia proclamá-las menos preciosas), ali experimentava, junto
com o desamparo de estar em lugares e com pessoas que ela não conhecia, o prazer
desinteressado que lhe daria um quadro ou um romance onde estão pintados os
divertimentos de uma classe ociosa; tal como, em casa, se comprazia a considerar o
funcionamento da sua vida doméstica, a elegância de seu guarda-roupa e da sua
criadagem, a boa colocação do seu dinheiro, da mesma forma que ler em Saint-Simon,
um de seus autores prediletos, a mecânica dos dias, a especificação das refeições de
Madame de Maintenon,[1] ou a ponderada avareza e a magnificência de Lulli. E na
parca medida em que esse desprendimento não era absoluto, a razão desse prazer novo
que experimentava Swann consistia em emigrar um momento para as raras partes de si
mesmo ainda estranhas ao seu amor e à sua pena. Sob esse aspecto, essa personalidade,
que lhe atribuía minha tia-avó, de “filho de Swann”, distinta de sua personalidade mais
individual de Charles Swann, era aquela em que melhor se comprazia agora. No dia do
aniversário da princesa de Parma, em que quisera remeter-lhe umas frutas (porque ela
podia ser indiretamente útil a Odette, conseguindo convites para espetáculos de gala e
comemorações), e não sabendo como encomendá-las, encarregara disso uma prima de
sua mãe que, encantada de lhe prestar um serviço, lhe escrevera comunicando que não
adquirira todas as frutas no mesmo local, mas as uvas em Crapote, pois são a sua
especialidade, os morangos em Jauret, as peras em Chevet,[2] onde eram mais bonitas
etc., “cada fruta olhada e examinada uma a uma por mim”. E com efeito, pelos
agradecimentos da princesa, pudera avaliar a fragrância dos morangos e a macieza das
peras. Mas principalmente o “cada fruta olhada e examinada uma a uma por mim” fora
um alívio à sua pena, levando-lhe a consciência para uma região a que raramente se
dirigia, embora pertencesse a ele de direito, na qualidade de herdeiro de uma família de
rica e sólida burguesia em que se haviam conservado hereditariamente, prestes a serem
postos a seu serviço logo que o desejasse, o conhecimento dos “bons endereços” e a arte
de bem fazer uma encomenda.
Na verdade de há muito esquecera que era “um Swann” para que não sentisse,
quando voltava a sê-lo por um momento, um prazer mais vivo do que aqueles que
poderia experimentar no resto do tempo e de que já se achava enfastiado; e se a
amabilidade dos burgueses, para os quais ele permanecera principalmente um Swann, era
menos viva que a da aristocracia (mas por outro lado mais lisonjeira, porque neles, ao
menos, nunca se separa da consideração), uma carta de uma alteza, alguns divertimentos
principescos que esta lhe propusesse, não lhe podia ser tão agradável como a que lhe
pedia para ser testemunha, ou simplesmente para assistir a um casamento na família de
velhos amigos de seus pais, alguns dos quais tinham continuado relações com ele —
como o meu avô, que no ano precedente o convidara para o casamento de minha mãe —
e outros que mal o conheciam pessoalmente, mas se julgavam em obrigação de polidez
para com o filho, o digno sucessor do falecido senhor Swann.
Mas, pelas intimidades já antigas que tinha entre eles, os membros da aristocracia,
em certa medida, faziam parte de sua casa e da sua família. Sentia, ao considerar suas
brilhantes amizades, o mesmo apoio exterior, o mesmo conforto que em olhar as belas
terras, a bela prataria, o belo jogo de mesa que lhe viera dos seus. E o pensamento de
que, se tombasse em casa acometido de um ataque, seria muito naturalmente ao duque de
Chartres, ao príncipe de Reuss, ao duque de Luxemburgo e ao barão de Charlus[3]
que o seu criado correria a avisar, trazia-lhe o mesmo consolo que à nossa velha
Françoise o saber que seria amortalhada em finos lençóis da sua propriedade, marcados,
não cerzidos (ou tão habilmente que isso poderia dar mais elevada ideia da costureira),
mortalha de cuja frequente imagem auferia certa satisfação, se não de bem-estar, ao
menos de amor-próprio. Mas sobretudo, como em todos os seus pensamentos e atos
relativos a Odette, era Swann constantemente dominado e dirigido pelo inconfessado
sentimento de que ele não lhe era talvez menos caro, mas menos agradável de ver que
qualquer outro, que o mais aborrecido fiel dos Verdurin — quando se transladava a um
mundo onde era considerado o homem distinto por excelência, que tudo faziam por
atrair, que se desolavam de não ver, e voltava a acreditar na existência de uma vida mais
feliz, quase a experimentar-lhe o desejo, como acontece a um enfermo acamado desde
meses, em dieta, que lê no jornal o cardápio de um almoço oficial ou o anúncio de uma
excursão à Sicília.
Se se via obrigado a apresentar escusas aos amigos da aristocracia por não lhes fazer
visitas, era exatamente de a visitar que procurava escusar-se com Odette. E essas visitas,
ele ainda as pagava (perguntando-se no fim do mês, por pouco que houvesse abusado
da paciência de Odette, indo vê-la com frequência, se seria suficiente remeter-lhe quatro
mil francos), e para cada uma procurava um pretexto: um presente a dar-lhe, uma
informação de que ela precisava, o sr. de Charlus, a quem encontrara na rua a caminho
da casa de Odette e que exigira que o acompanhasse. E quando não tinha pretexto
algum, pedia ao sr. de Charlus que fosse à casa dela e lhe dissesse espontaneamente,
durante a conversa, que tinha de dizer alguma coisa a Swann e que ela, Odette, fizesse o
favor de mandar chamá-lo; mas no mais das vezes Swann esperava em vão e o sr. de
Charlus lhe dizia à noite que o seu estratagema fracassara. De modo que Odette, além de
se ausentar agora com frequência, poucas vezes o via quando estava em Paris, e ela que,
quando o amava, lhe dizia: “Estou sempre livre” e “Que me importa a opinião dos
outros?”, agora, de cada vez que Swann desejava vê-la, invocava as conveniências ou
pretextava ocupações. Quando Swann falava de ir a uma festa de caridade, a uma
vernissage, a uma estreia onde Odette estivesse, ela lhe dizia que ele desejava proclamar a
sua ligação, que a tratava como a uma mulher airada. A tal ponto que, para não se ver em
toda parte privado de encontrá-la, Swann, que sabia que Odette conhecia e estimava
muito a meu tio-avô Adolphe, de que ele próprio fora amigo, foi visitá-lo um dia em
seu pequeno apartamento da rua de Bellechasse, a fim de lhe pedir que usasse da sua
influência junto a Odette. Como Odette, sempre que falava a Swann de meu tio, tomava
uns ares poéticos, dizendo: “Ah!, ele não é como tu; é uma coisa tão bela, tão grande, tão
bonita, a sua amizade por mim! Não haveria de ser ele que me considerasse tão pouco
para querer mostrar-se comigo em todos os lugares públicos”, Swann ficou embaraçado
e não sabia a que tom devia alçar-se para falar dela a meu tio. Estabeleceu de entrada a
excelência a priori de Odette, o axioma da sua supra-humanidade seráfica, a revelação de
suas virtudes indemonstráveis e cuja noção não podia derivar da experiência. “Quero
falar-lhe. Bem sabe que mulher acima de todas as outras mulheres, que criatura
adorável, que anjo é Odette. Mas bem sabe também o que é a vida de Paris. Nem todos
conhecem Odette pelo mesmo prisma em que nós dois a conhecemos. Há então quem
ache que eu desempenho um papel um tanto ridículo; sucede que nem ao menos ela quer
permitir que nos encontremos fora, no teatro. Não poderia o senhor, em quem ela
confia tanto, dizer-lhe algumas palavras em meu favor, e assegurar-lhe que ela exagera o
mal que lhe pode causar uma saudação minha?”
Meu tio aconselhou Swann que passasse algum tempo sem ver Odette, que com isso
apenas poderia amá-lo ainda mais, e a Odette que deixasse Swann encontrá-la onde ele
bem quisesse. Alguns dias depois, dizia Odette a Swann que acabava de ter uma decepção
ao ver que meu tio era igual a todos os homens: tinha tentado possuí-la à força. Ela
acalmou Swann, que no primeiro momento queria ir provocar meu tio. Mas, da
primeira vez que o encontrou, Swann recusou-se a apertar-lhe a mão. E tanto mais
lamentou esse rompimento com meu tio Adolphe, porquanto desejava, se o revisse
algumas vezes e pudesse conversar confiadamente com ele, tirar a limpo certos rumores
relativos à vida que Odette levara antigamente em Nice. Era em Nice que meu tio
Adolphe passava o inverno. E Swann pensava que talvez fosse lá que ele conhecera
Odette. O pouco que escapara a alguém, diante dele, relativamente a um homem que teria
sido amante de Odette, abalara profundamente a Swann. Mas as coisas que ele, antes de
conhecê-las, teria achado mais terríveis de saber e mais impossíveis de acreditar, uma vez
que as sabia, ficavam incorporadas para sempre à sua tristeza, admitia-as, não mais
poderia compreender que não tivessem acontecido. Somente que cada uma vinha dar, à
ideia que tinha da sua amada, um retoque inapagável. Julgou até compreender, certa vez,
que essa leviandade de costumes que não suspeitara em Odette era bastante conhecida, e
que em Bade e em Nice, quando ali costumava passar vários meses, ela adquirira uma
espécie de notoriedade galante. Procurou aproximar-se de certos farristas, para
interrogá-los; mas estes sabiam que ele conhecia Odette; e depois, tinha medo de os fazer
pensar de novo nela, de os pôr no seu encalço. Mas ele, a quem até então nada pareceria
tão fastidioso como tudo quanto se referisse à vida cosmopolita de Bade ou de Nice, ao
saber que Odette levara uma vida livre nessas cidades de prazer, sem que devesse jamais
descobrir se era unicamente para atender a necessidades de dinheiro que, graças a ele, ela
não mais sofria, ou devido a caprichos que podiam renovar-se, inclinava-se agora com
uma angústia impotente, cega e vertiginosa para o abismo sem fundo onde se haviam
sumido aqueles anos do princípio do Septenato,[4] durante os quais se passava o
inverno no Passeio dos Ingleses, o verão sob as tílias de Bade, e achava-lhes uma
dolorosa mas esplêndida profundeza como a que lhes teria emprestado um poeta; e ter-se-ia aplicado em reconstituir os pequenos fatos da crônica da Côte d’Azur de então, se
pudesse ajudá-lo a compreender alguma coisa do sorriso ou dos olhares — no entanto
tão honestos e tão simples — de Odette, com mais paixão do que o esteta que interroga
os documentos subsistentes da Florença do século XV, a ver se penetra mais avante na
alma da Primavera, da Bella Vanna, ou da Vênus, de Botticelli. [5] Muitas vezes, sem
nada lhe dizer, olhava-a pensativo. “Que ar triste tens tu!”, dizia-lhe Odette. Não fazia
muito tempo que, da ideia de que ela era uma criatura boa, análoga às melhores que
conhecera, passara à ideia de que era uma mulher sustentada; inversamente lhe acontecera
depois voltar, da Odette de Crécy, talvez por demais conhecida dos gozadores, dos
homens galantes, àquele rosto de uma expressão às vezes tão suave, àquela natureza tão
humana. “Que quer dizer que em Nice, pensava ele, todo mundo saiba quem é Odette de
Crécy? Essas reputações, mesmo quando verdadeiras, são feitas com as ideias dos
outros”; considerava que semelhante lenda — ainda que fosse autêntica — era exterior a
Odette, não estava nela como uma personalidade irredutível e maléfica; que a criatura
que pudera ser levada a conduzir-se mal era uma mulher de olhos bons, de coração
cheio de piedade para com o sofrimento, de corpo dócil que ele tivera, enlaçara em seus
braços e manejara, uma mulher a quem um dia poderia possuir inteiramente, se
conseguisse tornar-se indispensável a ela. Ali estava ela, muita vez fatigada, o rosto vazio
por um instante da febril e alegre preocupação das coisas desconhecidas que faziam
Swann sofrer: ela afastava os cabelos com as mãos; sua fronte, sua face pareciam mais
largas; então, de súbito, algum pensamento simplesmente humano, algum bom
sentimento como os há em todas as criaturas, quando se entregam a si mesmas num
instante de repouso ou de recolhimento, brilhava em seus olhos como um raio de ouro.
E logo todo o seu rosto se iluminava como um campo cinzento, coberto de nuvens que
de súbito se afastam, para a sua transfiguração, na hora do poente. A vida que estava em
Odette naquele momento, até o futuro que ela parecia sonhadoramente contemplar,
poderia Swann compartilhá-los com a sua amiga; nenhuma suspeita agitação parecia ter
ali deixado qualquer resíduo. Por mais raros que se tornassem, tais momentos não
foram inúteis. Aquelas parcelas, Swann as ligava com a lembrança, abolia os intervalos,
fundia como em ouro uma Odette de bondade e de calma pela qual fez mais tarde (como
se verá na segunda parte desta obra) sacrifícios que a outra Odette não teria obtido. Mas
como eram raros tais instantes e como ele a via pouco ultimamente! Até mesmo quanto
aos seus encontros à noite, só no último minuto é que Odette lhe dizia se era possível
estar com ele, pois certa de que Swann estaria sempre livre, desejava primeiro verificar
se não haveria outra pessoa que lhe propusesse o mesmo. Alegava que se via obrigada a
esperar uma resposta da máxima importância e, mesmo depois de ter chamado Swann, já
começada a noite, se amigos seus lhe solicitavam que fosse ter com eles ao teatro ou num
restaurante, ela dava um alegre salto e começava a preparar-se às pressas. À medida que
adiantava a sua toalete, cada movimento que ela fazia aproximava Swann do instante em
que devia deixá-la, em que ela se escaparia num ímpeto irresistível; e quando, enfim
pronta, mergulhando pela última vez no espelho um olhar tenso e iluminado pela
atenção, começava a pôr ruge nos lábios, fixava uma mecha de cabelo e pedia a sua capa
azul-celeste com borlas de ouro, tinha Swann um olhar tão triste que ela não podia
conter um gesto de impaciência e dizia: “Eis como tu me agradeces por te haver deixado
ficar comigo até o último momento! E eu supunha ter feito alguma coisa de gentil! É
bom que fique sabendo para a próxima vez!”. Às vezes, com o risco de agastá-la,
pensava Swann em descobrir aonde ela fora e cogitava numa aliança com Forcheville,
que talvez lhe pudesse dar informações. Aliás, quando sabia com quem saíra Odette à
noite, era raro que não pudesse encontrar, entre todos os seus amigos, algum que
conhecesse, embora indiretamente, o homem que a acompanhara, e lhe pudesse fornecer
um que outro esclarecimento. E, enquanto escrevia nesse sentido a um de seus amigos,
sentia o alívio de deixar de fazer a si mesmo perguntas sem resposta e de transferir a
outro a fadiga de interrogar. É verdade que não ficava mais adiantado depois de receber
certos informes. Saber nem sempre permite evitar. Mas as coisas que sabemos, temo-las,
se não entre as mãos, pelo menos no pensamento, onde as dispomos à nossa vontade, o
que nos dá a ilusão de uma espécie de domínio sobre elas. Sentia-se feliz todas as vezes
em que o sr. de Charlus estava com Odette. Entre o sr. de Charlus e ela, sabia Swann
que nada podia suceder, que, quando o sr. de Charlus saía com Odette, era por amizade
a ele, Swann, e que não oporia dificuldades em lhe contar o que ela havia feito. Algumas
vezes declarava ela tão categoricamente a Swann que era impossível vê-lo em
determinada noite, parecia tão interessada em sair, que Swann achava da magna
importância que o sr. de Charlus estivesse livre para acompanhá-la. No dia seguinte,
sem atrever-se a fazer muitas perguntas ao sr. de Charlus, obrigava-o, fingindo não ter
compreendido bem as suas primeiras respostas, a lhe dar novas contestações, depois de
cada qual se sentia mais aliviado, pois logo ficava sabendo que Odette passara a noite na
mais inocente das diversões. “Mas como, Mémé, não entendo bem…, não foi ao sair de
casa dela que vocês foram ao Museu Grévin. Tinham estado noutra parte primeiro.
Não? Esquisito! Não sabes como me divertes, Mémé. Mas que ideia mais engraçada teve
ela em ir depois ao Chat Noir! Isso é bem dela… Não? Foi você mesmo? É curioso.
Afinal de contas não era tão má ideia, ela devia ter muitos conhecidos lá… Não? Não
falou com ninguém? É extraordinário. Quer dizer que então ficaram os dois sozinhos?
Parece que estou vendo! É um bom amigo, Mémé, quero-lhe muito.” Swann sentia-se
aliviado. Para ele, a quem acontecera, em conversas com indiferentes que mal escutava,
ouvir às vezes certas frases (esta, por exemplo: “Vi ontem a senhora de Crécy, estava
com um senhor que eu não conheço”), frases que logo passavam ao estado sólido no
coração de Swann, que ali se enrijavam como uma incrustação, que o dilaceravam, que
não mais se moviam, como eram suaves, ao contrário, estas palavras: “Ela não conhecia
ninguém, não falou com ninguém”, com que facilidade circulavam nele, como eram
fluidas, fáceis, respiráveis! E no entanto, um momento após, considerava como Odette
não devia achá-lo aborrecido, para que fossem aqueles os prazeres que preferia a sua
companhia. E se a insignificância dos mesmos o tranquilizava, mortificava-o afinal
como uma traição.
Mas quando não podia saber aonde ela fora, bastar-lhe-ia para acalmar a angústia
que então experimentava, e contra a qual a presença de Odette, a doçura de estar perto
dela era o único específico (um específico que afinal agravava o mal, mas ao menos
acalmava momentaneamente a dor), ter-lhe-ia bastado, se o permitisse Odette, ficar em
casa dela durante a sua ausência, esperá-la até a hora do regresso, em cujo apaziguamento
viriam fundir-se as horas que algum prodígio ou malefício o fizera julgar diferentes das
outras. Mas Odette não o consentia; Swann voltava para casa; esforçava-se no caminho
em fazer diversos projetos, deixava de pensar em Odette; chegava até, enquanto se
despia, a cogitar de coisas bastante divertidas; era com o coração cheio de esperança de ir
ver no dia seguinte alguma obra-prima que se metia no leito e apagava a luz; mas logo
que, preparando-se para dormir, deixava de exercer sobre si mesmo um controle de que
não tinha consciência, de tal modo se tornara habitual, eis que no mesmo instante lhe
refluía um frêmito gelado, e ele se punha a soluçar. Nem desejava saber por que,
enxugava os olhos, dizendo a rir: “Muito bonito! Estou ficando um nevropata!”.
Depois, não podia pensar sem enorme lassidão que, no dia seguinte, teria de recomeçar
as pesquisas para saber o que Odette fizera, de manejar influências para poder vê-la. Tão
cruel se lhe tornara aquela necessidade de uma atividade sem tréguas, sem variedade, sem
resultado, que, notando um dia uma protuberância no ventre, sentiu verdadeira alegria
ao pensamento de que talvez tivesse um tumor fatal, que não mais teria de se ocupar de
nada, que era a doença que ia governá-lo, fazer dele um joguete seu, até o fim próximo.
E se naquela época, com efeito, lhe aconteceu muitas vezes confessar-se o desejo da
morte, era menos para escapar à agudeza de seus sofrimentos que à monotonia de seus
esforços.
E no entanto desejaria viver até a época em que não mais a amasse, em que Odette
não teria nenhum motivo para lhe mentir, e em que pudesse enfim saber por ela se, no
dia em que fora visitá-la à tarde, se achava ou não deitada com Forcheville. Muitas
vezes, durante dias, a suspeita de que ela amava a algum outro desviava-o da
interrogação concernente a Forcheville, tornando-a quase indiferente, como essas
formas novas de um mesmo estado mórbido que parecem momentaneamente livrar-nos
das anteriores. Havia mesmo dias em que não era torturado por nenhuma suspeita.
Julgava-se curado. Mas no dia seguinte, ao despertar, sentia no mesmo local a mesma
dor cuja sensação se havia como que diluído na torrente das impressões diferentes da
véspera. Mas não mudara de lugar. E fora até a agudeza daquela dor que despertara a
Swann.
continua na página 208...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, quase reduzido a nada - o)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
_________________[1] Nova reiteração do apego de Swann à obra do duque de Saint-Simon. Nas
Memórias do duque há, com efeito, todo um capítulo intitulado “A mecânica, vida
particular e conduta de Madame de Maintenon”. [n. e.]
[2] Menção de três mercados de frutas: o Crapote, situado na rua Le Peletier, o Jauret,
dentro do mercado Saint-Honoré, perto da avenida da Ópera, e o Chevet, na galeria de
Chartres do Palais-Royal, todos os três localizados na chamada “margem direita” (“rive
droite”) parisiense. [n. e.]
[3] Nova mistura proustiana de três nomes reais e da personagem fictícia, o barão de
Charlus. [n. e.]
[4] O Septenato refere-se à lei votada em novembro de 1873, prolongando por mais
sete anos o mandato de Presidência de Mac-Mahon, que, entretanto, acaba renunciando
em 1879. [n. e.]
[5] Personagens femininas representadas por Botticelli em Primavera, As três Graças e O
nascimento de Vênus. [n. e.]
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