domingo, 26 de janeiro de 2025

Marcel Proust - No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Ela havia desaparecido - t)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann

ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust

um amor de swann

III(t) 

     Ela havia desaparecido. Swann sabia que iria ressurgir no fim do último movimento, depois de todo um longo trecho que o pianista da sra. Verdurin saltava sempre. Havia ali admiráveis ideias que Swann não distinguira na primeira audição e que agora percebia, como se elas, no vestiário da sua memória, se tivessem desembaraçado do disfarce uniforme da novidade. Swann escutava todos os temas esparsos que entrariam na composição da frase: ele assistia à sua gênese. “Ó audácia tão genial talvez”, dizia ele consigo, “como a de um Lavoisier, de um Ampère, a audácia de um Vinteuil experimentado, descobrindo as leis secretas de uma força desconhecida, conduzindo através do inexplorado, para a única meta possível, a atrelagem invisível a que se confia e que ele nunca verá.”[1] Que belo diálogo ouviu Swann entre o piano e o violino no começo do último trecho! A supressão das palavras humanas, longe de deixar ali reinar a fantasia, como se poderia crer, a tinha eliminado: jamais a linguagem falada foi tão inflexivelmente fatal, jamais conheceu a tal ponto a pertinência das perguntas, a evidência das respostas. Primeiro o piano solitário se queixou, como um pássaro abandonado da sua companheira; o violino escutou-o, respondeu-lhe como de uma árvore vizinha. Era como no princípio do mundo, como se ainda não houvesse senão os dois sobre a face da Terra, ou antes, era naquele mundo fechado a tudo o mais, construído pela lógica de um criador e onde para todo o sempre só os dois existiriam: aquela sonata. Era um pássaro? Era a alma ainda incompleta da pequena frase, era uma fada, esse ser invisível e choroso, cuja queixa o piano em seguida ternamente redizia? Seus gritos eram tão súbitos que o violino devia precipitar-se sobre o seu arco para os recolher. Maravilhoso pássaro! O violinista parecia querer encantá-lo, amansá-lo, capturá-lo. Já havia passado para a sua alma, já a pequena frase evocada agitava, como ao de um médium, o corpo verdadeiramente possuído do violinista. Swann sabia que ela ia falar ainda uma vez. E de tal forma se desdobrara a personalidade dele que a expectativa do instante em que ia encontrar-se perante ela o sacudiu num desses soluços que um belo verso ou uma triste notícia provocam em nós, não quando estamos sozinhos, mas quando os comunicamos a amigos em que nos sentimos refletidos como um terceiro cuja provável emoção os enternece. Ela reapareceu, mas desta vez para ficar suspensa no ar e mostrar-se um instante apenas, como que imóvel, e expirar. De modo que Swann nada perdia do curto espaço de tempo em que ela se prorrogava. Achava-se ainda ali, como uma bolha irisada que se equilibra. Tal um arco-íris cujo brilho enfraquece, diminui, depois se eleva e, antes de se extinguir, fulgura um momento como ainda não o fizera antes: às duas cores que até então deixara transparecer, acrescentou ele outras cordas matizadas, todas as cordas do prisma, e fê-las vibrar. Swann não ousava mover-se e desejaria fazer com que todas as outras pessoas permanecessem quietas, como se o menor gesto pudesse comprometer o sortilégio sobrenatural, delicioso e frágil que estava tão perto de esvair-se. A palavra inefável de um só ausente, de um morto talvez (Swann ignorava se Vinteuil ainda era vivo) exalando-se acima dos ritos daqueles oficiantes, bastava para manter suspensa a atenção de trezentas pessoas e fazia daquele estrado onde uma alma era assim evocada um dos mais nobres altares em que se pudesse realizar uma cerimônia sobrenatural. De maneira que quando a frase afinal se desfez, flutuando em farrapos nos motivos seguintes que já haviam tomado o seu lugar, se no primeiro instante Swann ficou irritado ao ver a condessa Monteriender, famosa por suas simplicidades, inclinar-se para lhe confiar suas impressões antes mesmo que a sonata houvesse findado, não pôde deixar de sorrir e talvez de encontrar também um sentido profundo, que ela não via, nas palavras de que se serviu. Maravilhada com a virtuosidade dos intérpretes, a condessa exclamou, dirigindo-se a Swann: “É prodigioso, nunca vi nada que impressionasse tanto…”. Mas um escrúpulo de exatidão obrigou-a a corrigir a primeira assertiva e ela fez esta reserva: “Nada que impressionasse tanto… depois das mesas giratórias!”.
     A partir daquela noite, Swann compreendeu que jamais renasceria o sentimento que Odette lhe dedicara e que não mais se realizariam as suas esperanças de felicidade. E nos dias em que por acaso ela ainda se mostrava gentil e carinhosa, se lhe fizera alguma atenção, Swann notava esses signos aparentes e enganosos de um leve retorno com essa solicitude enternecida e cética, essa alegria desesperada daqueles que, cuidando de um amigo já nos últimos dias de uma doença incurável, relatam, como fatos preciosos: “Ontem ele próprio fez suas contas e foi ele quem descobriu um erro que cometêramos; comeu um ovo com gosto; se o digerir bem, experimentaremos amanhã uma costeleta”, embora os saibam destituídos de significação nas vésperas de uma morte inevitável. Sem dúvida, Swann estava certo de que, se vivesse agora longe de Odette, ela acabaria tornando-se-lhe indiferente, de sorte que ficaria satisfeito se ela deixasse Paris para sempre; ele teria tido a coragem de ficar; mas não tinha a de partir.
     Muitas vezes pensara nisso. Agora que reencetara o seu ensaio sobre Vermeer, teria necessidade de voltar pelo menos alguns dias a Haia, a Dresden, a Brunswick. Estava persuadido de que uma “Toalete de Diana” comprada pela Mauritshuis na venda Goldschmidt como um Nicolau Maes era na realidade de Vermeer. [2] E desejaria estudar o quadro no local para reforçar sua convicção. Mas deixar Paris enquanto Odette ali se achava, e mesmo quando estava ausente — pois nos lugares novos, onde os sentimentos não estão adormecidos pelo hábito, a gente retempera e reanima uma dor —, era-lhe um projeto tão cruel que só se sentia capaz de pensar nele constantemente porque se sabia decidido a jamais executá-lo. Mas acontecia que, durante o sono, renascia nele a ideia da viagem — sem que lhe ocorresse que aquela viagem era impossível — e ela se realizava. Um dia sonhou que partia por um ano; inclinado à portinhola do vagão para um jovem que lhe dizia adeus chorando, Swann procurava convencê-lo a partir na sua companhia. O trem já se movimentava, a ansiedade despertou-o, e ele se lembrou de que não ia partir, de que veria Odette naquela noite, no dia seguinte e quase diariamente. Então, ainda abalado com o sonho, abençoou as circunstâncias particulares que o tornavam independente, graças às quais podia permanecer perto de Odette e também conseguir que lhe permitisse vê-la algumas vezes; e, recapitulando todas essas vantagens: a sua posição — sua fortuna, de que ele muitas vezes tinha demasiada necessidade para não recuar diante de uma ruptura (tendo até, diziam, a secreta intenção de fazer com que ele a desposasse) —, aquela amizade do sr. de Charlus que, a falar a verdade, nunca lhe fizera obter grande coisa de Odette, mas dava-lhe a doçura de sentir que ela ouvia falar dele de modo lisonjeiro, por aquele amigo comum a quem dedicava tamanha estima — e enfim até sua inteligência, que ele empregava inteira em arquitetar cada dia uma intriga nova que tornasse a sua presença, se não agradável, pelo menos necessária a Odette —, pensou no que seria dele se tudo aquilo lhe houvesse faltado, pensou que se tivesse sido, como tantos outros, pobre, humilde, necessitado, obrigado a aceitar qualquer trabalho, ou amarrado a pais, a uma esposa, poderia ver-se obrigado a deixar Odette, pensou que aquele sonho, cujo horror ainda estava tão próximo, poderia ter sido verdadeiro, e então disse consigo: “A gente não conhece a própria felicidade. Nunca se é tão infeliz quanto se pensa”. Mas considerou que aquela existência já vinha durando há vários anos, que só o que podia esperar era que durasse sempre, que sacrificaria os seus trabalhos, os seus prazeres, os seus amigos, toda a sua vida enfim, à espera cotidiana de um encontro que nada lhe podia trazer de feliz, e indagou se não estaria enganado, se o que favorecera a sua ligação e lhe impedira a ruptura não teria prejudicado o seu destino, se o acontecimento desejável não seria aquele mesmo que ele tanto se alegrava de que só acontecesse em sonhos: a partida; e disse consigo que a gente não conhece a própria desgraça, e nunca se é tão feliz quanto se pensa.
     Algumas vezes desejava que ela morresse sem sofrimentos nalgum acidente, ela que andava sempre fora, nas ruas, nas estradas, da manhã à noite. E como ela voltava sã e salva, ele admirava-se de que o corpo humano fosse tão ágil e tão forte, que pudesse continuamente manter em xeque e frustrar todos os perigos que o cercam (e que Swann achava inumeráveis depois que o seu secreto desejo os computara) e permitisse assim às criaturas entregarem-se cada dia, e quase que impunemente, à sua obra de mentira, à consecução do prazer. E Swann sentia muito próximo de seu coração aquele Maomé II cujo retrato por Bellini tanto apreciava e que, sentindo que se apaixonara loucamente por uma de suas mulheres, apunhalou-a, a fim, diz ingenuamente o seu biógrafo, de recuperar a sua liberdade de espírito.[3] Depois se indignava de só pensar em si mesmo, e os sofrimentos que tinha experimentado não lhe pareciam merecer nenhuma compaixão, visto que ele próprio levava em tão pouca conta a vida de Odette.
Não podendo separar-se dela irremissivelmente, se ao menos a visse sem separações, a sua dor acabaria por acalmar-se e talvez o seu amor por extinguir-se. E visto que ela não queria deixar Paris para sempre, desejaria que não saísse nunca de Paris. Em todo caso, como sabia que a única ausência considerável que ela fazia todos os anos era nos meses de agosto e setembro, tinha vários meses antes o lazer de dissolver-lhe a amarga ideia em todo o tempo vindouro que trazia em si por antecipação e que, composto de dias homogêneos aos dias atuais, circulava transparente e frio em seu espírito onde alimentava a tristeza, mas sem lhe causar sofrimentos muito vivos. Mas esse futuro interior, esse fluxo incolor, e livre, eis que uma única frase de Odette vinha atingi-lo até em Swann e, como um pedaço de gelo, imobilizava-o, enrijecia a sua fluidez, fazia-o gelar de todo; e Swann sentira-se de súbito repleto de uma enorme e infrangível massa que pesava sobre as paredes interiores de seu ser até rebentá-lo: é que Odette lhe dissera, com um olhar risonho e sorrateiro que o observava: “Forcheville vai fazer uma bela viagem, no Pentecostes. Vai ao Egito”, e Swann imediatamente compreendera que isso significava “Eu vou ao Egito no Pentecostes com Forcheville”. E com efeito, se alguns dias depois Swann lhe dizia: “É a propósito dessa viagem que tu me dissestes que farias com Forcheville?”, ela estouvadamente respondia: “Sim, meu pequeno, partimos no dia 19, te mandaremos uma vista das Pirâmides”. Então ele desejava saber se Odette era amante de Forcheville, perguntá-lo a ela própria. Sabia que, supersticiosa como era, havia certos perjúrios que ela não cometeria, e depois, o receio que até então o retivera, de irritar a Odette com interrogações, de fazer-se detestado, não mais existia, agora que perdera toda a esperança de que ela um dia viesse a amá-lo.
     Recebeu um dia uma carta anônima, dizendo-lhe que Odette fora amante de inúmeros homens (entre os quais lhe citavam alguns, como Forcheville, o sr. de Bréauté e o pintor), de mulheres, e que frequentava os rendez-vous. Atormentou-se ao pensar que havia entre os seus amigos uma criatura capaz de dirigir-lhe aquela carta (pois, por certos detalhes, revelava em seu remetente um conhecimento familiar da vida de Swann). Procurou quem poderia ser. Mas jamais suspeitara das ações ocultas dos indivíduos, daquelas que não têm ligação visível com as suas palavras. E quando desejou saber se seria antes sob o caráter aparente do sr. de Charlus, do sr. Des Laumes, do sr. d’Orsan que devia situar a região desconhecida onde deveria ter nascido aquele ato ignóbil, como nenhum desses homens jamais aprovara diante dele as cartas anônimas e tudo o que lhe haviam dito implicava que as reprovavam, não viu razões para ligar essa infâmia antes à natureza de um que à de outros. A do sr. de Charlus era um pouco a de um desequilibrado, mas fundamentalmente boa e terna; a do sr. Des Laumes um pouco seca, mas sadia e reta. Quanto ao sr. d’Orsan, Swann jamais encontrara uma pessoa que, mesmo nas circunstâncias mais tristes, viesse a ele com uma palavra mais sentida, um gesto mais discreto e mais justo. Tanto assim que não podia compreender o papel pouco delicado que se atribuía ao sr. d’Orsan em suas relações com uma mulher rica e, cada vez que pensava nele, via-se obrigado a deixar de lado essa má reputação, inconciliável com tantos testemunhos evidentes de delicadeza. Por um instante sentiu Swann que o seu espírito se anuviava, e pensou em outra coisa para recuperar um pouco de lucidez. Depois teve a coragem de voltar às mesmas reflexões. Mas, como não conseguiu suspeitar de ninguém em particular, forçoso lhe foi suspeitar de todos. Afinal de contas, o sr. de Charlus estimava-o, tinha bom coração. Mas era um nevropata, talvez amanhã chorasse ao sabê-lo enfermo, e hoje, por ciúme, ou cólera, por qualquer ideia súbita que o assaltara, tinha desejado fazer-lhe mal. No fundo, essa raça de homem era a pior de todas. Sem dúvida, o príncipe Des Laumes estava muito longe de querer a Swann como lhe queria o sr. de Charlus. Mas exatamente por causa disso, não tinha como ele as mesmas suscetibilidades; e depois, era uma natureza fria, por certo, mas tão incapaz de vilezas como de grandes ações. Swann se arrependia de só se haver ligado, na vida, a tais criaturas. Depois considerava que o que impede os homens de fazer mal ao próximo é a bondade, que ele só podia, no fundo, responder por naturezas análogas à sua, como o era, no tocante ao coração, a do sr. de Charlus. O simples pensamento de causar aquela pena a Swann o teria desgostado. Mas com um homem insensível, de uma outra humanidade, como era o príncipe Des Laumes, como prever a que atos poderiam levá-lo os móveis de uma essência diferente? Ter coração é tudo, e o sr. de Charlus o tinha. Tampouco deixava de o ter o sr. d’Orsan, e suas relações cordiais mas pouco íntimas com Swann, provindas do prazer que sentiam em conversar, pois pensavam o mesmo a respeito de tudo, eram mais repousantes que o afeto exaltado do sr. de Charlus, capaz de guindar-se a atos de paixão, bons ou maus. Se havia alguém por quem Swann sempre se sentira compreendido e delicadamente estimado, esse era o sr. d’Orsan. Sim, mas e aquela vida pouco honrosa que ele levava? Swann lamentava não a ter levado em conta e haver muitas vezes confessado, por gracejo, que nunca experimentara tão vivamente sentimentos de simpatia e estima como no convívio de um canalha. Não há de ser por nada, pensava agora, que, desde que os homens julgam ao próximo, é pelos seus atos que o fazem. Só os atos significam alguma coisa, e não o que dizemos, ou o que pensamos. Charlus e Des Laumes podem ter tais ou tais defeitos, o fato é que são honestos. Orsan, esse, talvez não tenha defeitos, mas não é um homem honesto. Pode ter procedido mal, mais uma vez. Depois Swann suspeitou de Rémi, que na verdade poderia apenas ter inspirado a carta, mas essa pista lhe pareceu por um instante verdadeira. Antes de tudo, Lorédan tinha razões para querer mal a Odette. E depois, como não supor que nossos criados, vivendo numa situação inferior à nossa, e acrescentando à nossa fortuna e aos nossos defeitos, riquezas e vícios imaginários, pelos quais nos invejam e desprezam, hão de ser fatalmente levados a agir diferentemente das pessoas do nosso mundo? Depois, suspeitou de meu avô. Pois de cada vez que lhe pedira um favor, não o havia sempre negado? E depois, com as suas ideias burguesas, bem podia crer que assim fazia para o bem de Swann. Suspeitou também de Bergotte, do pintor, dos Verdurin, admirou mais uma vez, de passagem, a prudência das pessoas da sociedade em não quererem imiscuir-se nesses meios artísticos em que tais coisas são possíveis, e talvez até mesmo confessadas sob o nome de boas peças; mas lembrava-se dos gestos de retidão daqueles boêmios, e comparou-os à vida de expedientes, quase de calotes, a que a falta de dinheiro, a necessidade de luxo, a corrupção dos prazeres conduzem tantas vezes a aristocracia. Em suma, aquela carta anônima vinha provar que ele conhecia uma criatura capaz de perfídia, mas não via razão preponderante para que essa perfídia estivesse oculta no tufo — não explorado pelos outros — do caráter do homem sensível ou do homem frio, do artista ou do burguês, do grão-senhor ou do lacaio. Que critério adotar para julgar os homens? No fundo, não havia uma só das pessoas conhecidas suas que não pudesse ser capaz de uma infâmia. Deveria deixar de frequentá-los a todos? Seu espírito nublou-se; passou duas ou três vezes as mãos na fronte, enxugou os vidros do lornhão com o lenço, e, pensando que afinal de contas pessoas como ele se davam com o sr. de Charlus, o príncipe Des Laumes e os outros, considerou que isso significava, se não que fossem incapazes de atos infames, ao menos que frequentar pessoas que talvez não fossem incapazes de os praticar era uma necessidade da vida, a que cada qual devia submeter-se. E continuou a apertar a mão de todos aqueles amigos de quem suspeitara, apenas com a reserva, de pura forma, de que eles talvez tivessem querido prejudicá-lo.
     Quanto ao próprio assunto da carta, não o preocupou, pois nenhuma das acusações formuladas contra Odette possuía a menor sombra de verossimilhança. Como muita gente, Swann tinha o espírito preguiçoso e carecia de imaginação. Bem sabia, como uma verdade de ordem geral, que a vida das criaturas é cheia de contrastes, mas, para cada uma em particular, imaginava a parte da vida que não lhe conhecia como idêntica à parte conhecida. Imaginava o que lhe calavam por meio do que lhe diziam. Nos momentos em que Odette e ele estavam juntos, se comentavam alguma ação ou sentimento pouco delicados que um terceiro cometera ou experimentara, ela os verberava em nome dos mesmos princípios que Swann sempre vira os seus pais professarem e aos quais permanecera fiel; e depois, Odette arranjava as suas flores, bebia chá, preocupava-se com os trabalhos de Swann. Swann estendia pois estes hábitos ao resto da vida de Odette, e evocava tais gestos quando queria imaginar os momentos em que ela se achava longe. Se lhe tivessem descrito tal como era, ou antes, tal como fora durante tanto tempo com ele, mas junto de um outro homem, isso o faria sofrer, pois tal imagem se lhe afiguraria verossímil. Mas que ela frequentasse cafetinas, se entregasse a orgias com mulheres, levasse a vida crapulosa das criaturas abjetas — que insensata invenção não era, para cuja realização não deixavam lugar nenhum, graças a Deus, os crisântemos imaginados, os chás sucessivos, as virtuosas palavras de indignação! Apenas de vez em quando dava a entender a Odette que lhe vinham contar, por maldade, tudo quanto ela fazia; e servindo-se, a propósito, de um detalhe insignificante mas verdadeiro que soubera por acaso, como se fosse a única pontinha que deixasse passar sem querer, entre tantas outras, de uma reconstituição completa da vida de Odette que ele conservava em segredo, levava-a a supor que estava informado sobre coisas que na verdade não sabia nem sequer suspeitava, pois se às vezes conjurava Odette a não ocultar a verdade, era apenas, conscientemente ou não, para que Odette lhe dissesse tudo quanto fazia. Sem dúvida, como dizia a Odette, apreciava a sinceridade, mas apreciava-a como a uma proxeneta que o mantivesse a par da vida de sua amante. De resto, como não era desinteressado, o seu amor à sinceridade não o havia tornado melhor. A verdade que ele amava era a que lhe diria Odette; mas ele próprio, para obter essa verdade, não tinha escrúpulos em recorrer à mentira, essa mesma mentira que incessantemente pintava a Odette como a coisa mais degradante para um ser humano. Em suma, mentia tanto quanto Odette, porque, sendo mais infeliz, não era menos egoísta do que ela. E Odette, ouvindo Swann contar-lhe as coisas que ela própria fizera, olhava-o com um ar desconfiado, e afinal zangado, para não parecer que se humilhava e que tinha vergonha de seus atos.

continua na página 233...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (III - um amor de swann, Ela havia desaparecido - t)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Comparação das descobertas de Vinteuil às de Lavoisier (1743-94), que estabeleceu as bases da química moderna, e às de Ampère, inventor do galvanômetro e do eletroímã. [n. e.]
[2] A venda Goldschmidt aconteceu no dia 4 de maio de 1876, mas a atribuição da tela a Vermeer só ocorreria em 1907. [n. e.]
[3] Referência à obra Historia Turchesca, escrita por Giovanni Maria Angiolello (1451- 1525), em que ele conta que o sultão Maomé II chega a matar sua escrava Irene, pela qual estava apaixonado. Proust pode ter lido a retomada dessa narrativa no livro de L. Thuasne, Gentille Bellini et le Sultan Mahommed II. Notes sur le séjour du peintre vénitien à Constantinople, publicado em 1888. [n. e.]

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