Cem Anos de SOLIDÃO
Gabriel Garcia Márquez
(16.2)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
Era impossível imaginar um homem mais parecido com a mãe. Vestia
um terno de tafetá preto, uma camisa de colarinho redondo e duro, e uma
estreita fita de seda amarrada com um laço no lugar da gravata. Era lívido,
lânguido, de olhar atônito e lábios delicados. O cabelo negro, lustroso e liso,
repartido no meio da cabeça por uma linha reta e sem vida, tinha a mesma
aparência postiça da cabeleira dos santos. A sombra da barba bem
escanhoada no rosto de parafina parecia um problema de consciência.
Tinha as mãos pálidas, com nervuras verdes e dedos parasitários, e um anel
de ouro maciço com uma opala amarela, redonda, no indicador esquerdo.
Quando abriu a porta da rua para ele, Aureliano não teve necessidade de
imaginar quem fosse para perceber que vinha de muito longe. A casa se
impregnou, à sua passagem, do cheiro da água-de-colônia que Úrsula lhe
botava na cabeça quando era menino, para poder encontrá-lo nas trevas. De
algum modo impossível de precisar, depois de tantos anos de ausência, José
Arcadio continuava sendo um menino outonal, terrivelmente triste e
solitário. Foi diretamente ao quarto de sua mãe, onde Aureliano vaporizara
mercúrio durante quatro meses, no alambique do avô de seu avô, para
conservar o corpo segundo a fórmula de Melquíades. José Arcadio não fez
nenhuma pergunta. Deu um beijo na testa do cadáver, tirou de debaixo da
saia o bolsinho onde havia três pessários ainda sem uso e a chave do guarda-roupa. Fazia tudo com gestos diretos e decididos, em contraste com a sua
languidez. Tirou do guarda-roupa um cofrezinho damasquinado com o
escudo familiar e encontrou no seu interior perfumado de sândalo a carta
volumosa em que Fernanda desafogara o coração das incontáveis verdades
que lhe escondera. Leu-a de pé, com avidez mas sem ansiedade, e na
terceira página se deteve e examinou Aureliano com um olhar de segundo
reconhecimento.
— Então — disse com uma voz que tinha alguma coisa de navalha de
barba — você é o bastardo.
— Sou Aureliano Buendía.
— Vá para o quarto — disse José Arcadio.
Aureliano foi e não voltou a sair nem sequer por curiosidade quando
ouviu o rumor dos funerais solitários. As vezes, da cozinha, via José Arcadio
perambulando pela casa, sufocando na sua respiração angustiada, e
continuava escutando os seus passos pelos quartos em ruína depois da meia-noite. Não ouviu a sua voz durante muitos meses, não só porque José
Arcadio não lhe dirigia a palavra, mas também porque ele não tinha vontade
nenhuma de que isso acontecesse, nem tempo para pensar em nada além
dos pergaminhos. Com a morte de Fernanda, apanhara o penúltimo
peixinho e fora à livraria do sábio catalão, em busca dos livros de que
precisava. Não se interessou por nada do que viu no trajeto, talvez porque
carecesse de lembranças para comparar, e as ruas desertas e as casas
desoladas eram iguais às que imaginara num tempo em que teria vendido a
alma para conhecê-las. Concedera-se a si mesmo a permissão que Fernanda
lhe negara, mas só por uma vez, com um objetivo único e pelo tempo
mínimo indispensável, de modo que percorreu sem pausa as onze quadras
que separavam a sua casa do beco onde antigamente se interpretavam os
sonhos e entrou ofegante no desarranjado e sombrio local onde mal havia
espaço para se movimentar. Mais que uma livraria, parecia uma lixeira de
livros usados, colocados em desordem nas estantes esburacadas pelo cupim,
nos cantos cheios de teias de aranhas e até nos espaços que deveriam ser
destinados à passagem. Numa longa mesa, também atravancada de
alfarrábios, o proprietário escrevia uma prosa incansável, com uma caligrafia
roxa, um pouco delirante, e em folhas soltas de caderno escolar. Tinha uma
bela cabeleira prateada que lhe caía na testa como o penacho de uma
cacatua e seus olhos azuis, vivos e miúdos, revelaram a mansidão do homem
que lera todos os livros. Estava de cuecas, ensopado de suor, e não
desatendeu à escrita para ver quem tinha chegado. Aureliano não teve
dificuldade em resgatar de entre aquela desordem de louco os cinco livros
que procurava, pois estavam no lugar exato que lhe indicara Melquíades.
Sem dizer uma palavra entregou-os junto com o peixinho de ouro ao sábio
catalão, e este os examinou e suas pálpebras se contraíram como duas
amêijoas. “Deve estar doido”, disse na sua língua, dando de ombros, e
devolveu a Aureliano os cinco livros e o peixinho.
— Pode levar — disse em castelhano. — O último homem que leu
esses livros deve ter sido Isaac, o Cego, de modo que pense bem no que está
fazendo.
José Arcadio restaurou o quarto de Meme, mandou lavar e remendar
as cortinas de veludo e o damasco do dossel da cama vice-real e pôs outra
vez em serviço o banheiro abandonado, cuja caixa-d’água de cimento estava
enegrecida por um limo fibroso e áspero. A esses dois lugares reduziu-se o
seu império de segunda classe, de exauridos gêneros exóticos, de perfumes
falsos e pedraria barata. A única coisa que parecia atrapalhá-lo no resto da
casa eram os santos do altar doméstico, que uma tarde queimou até reduzí-los à cinzas, numa fogueira que acendeu no quintal. Dormia até depois das
onze. Ia para o banheiro com um esfiapado roupão de dragões dourados e
umas chinelas de pompons amarelos e ali oficiava um rito que pela sua
serenidade e duração recordava o de Remedios, a bela. Antes de se banhar,
aromatizava a caixa-d’água com os sais que levava em três potes de alabastro.
Não fazia abluções com a cuja, mas mergulhava nas águas perfumadas e
permanecia até duas horas boiando de barriga para cima, adormecido pela
frescura e pela lembrança de Amaranta. Poucos dias depois de ter chegado
abandonou o traje de tafetá, que além de ser quente demais para a região
era o único terno que tinha, e trocou-o por umas calças justas, muito
parecidas com as que Pietro Crespi usava nas aulas de dança, e uma camisa
de seda animal com as suas iniciais bordadas no coração. Duas vezes por
semana lavava a muda completa na caixa-d’água e ficava de roupão até que
secasse pois não tinha nada mais para vestir. Nunca comia em casa. Saía à
rua quando abrandava o calor da sesta e não voltava até tarde da noite.
Então continuava o seu perambular angustiado, fungando como um gato e
pensando em Amaranta. Ela e o olhar terrível dos santos no fulgor da
lâmpada noturna eram as duas lembranças que conservava de casa. Muitas
vezes, no alucinante agosto romano, tinha aberto os olhos na metade do sono
e Amaranta surgindo de uma banheira de mármore rajada com as suas
anáguas de renda e a venda na mão, idealizada pela ansiedade do exílio. Ao
contrário de Aureliano José, que tentara sufocar aquela imagem no lago
sangrento da guerra, ele tentava mantê-la viva num pantanal de
concupiscência enquanto entretinha a mãe com a patranha sem fim da
fábula de sua vocação pontifícia. Nem a ele nem a Fernanda nunca ocorreu
pensar que a correspondência deles era um intercâmbio de fantasias. José
Arcadio, que abandonara o seminário tão cedo quanto chegara a Roma,
continuou alimentando a lenda da teologia e do direito canônico, para não
botar em perigo a herança fabulosa de que falavam as cartas delirantes de
sua mãe e que haveria de tirá-lo da miséria e da sordidez que partilhava com
dois amigos numa água-furtada do Trastevere. Quando recebeu a última
carta de Fernanda, ditada pelo pressentimento da morte iminente, meteu
numa mala os últimos vestígios do seu falso esplendor e atravessou o oceano
no porão de um navio onde os emigrantes se empurravam como reses no
matadouro, comendo macarrão frio e queijo bichado. Antes de ler o
testamento de Fernanda, que não era mais que uma minuciosa e tardia
recapitulação de infortúnios, já os móveis quebrados e a erva daninha da
varanda lhe haviam indicado que estava metido numa armadilha da qual
não sairia jamais, para sempre exilado da luz de diamante e do ar imemorial
da primavera romana. Nas insônias extenuantes da asma, media e tornava a
medir a profundidade da sua desventura, enquanto revia a casa tenebrosa
onde os exageros senis de Úrsula lhe haviam infundido o medo do mundo.
Para estar certa de não perde-lo nas trevas, ela tinha assinalado um canto do
quarto, o único onde poderia estar a salvo dos mortos que perambulavam
pela casa desde o entardecer. “Qualquer coisa ruim que você fizer”, dizia-lhe
Úrsula, “os santos me contam.” As noites de terror da sua infância
reduziram-se a este canto, onde permanecia imóvel até a hora de se deitar,
suando de medo num tamborete, sob o olhar vigilante e gelado dos santos
delatores. Era uma tortura inútil, porque já nessa época tinha terror de tudo
o que o rodeava e estava preparado para se assustar com tudo o que
encontrasse na vida: as mulheres na rua, que arruinavam o seu sangue; as
mulheres da casa, que pariam filhos com rabo de porco; os galos de briga,
que provocavam mortes de homens e remorsos de consciência para o resto
da vida; as armas de fogo, que só com serem tocadas condenavam a vinte
anos de guerra; as empresas audaciosas, só conduziam ao desencanto e à
loucura, e tudo, enfim, quanto Deus criara com a sua infinita bondade e que
o diabo pervertera. Ao acordar, moído pela roda dos pesadelos, a claridade
da janela e as carícias de Amaranta na caixa-d’água e o deleite com que ela
lhe punha talco entre as pernas com uma esponja de seda libertavam-no do
terror. Até Úrsula era diferente sob a luz radiante do jardim, porque ali não
lhe falava de coisas de pavor, mas lhe esfregava os dentes com pó de carvão
para que tivesse o sorriso radiante de um Papa, lhe cortava e polia as unhas
para que os peregrinos que chegassem a Roma de todo âmbito da terra se
assombrassem com a beleza das mãos do Papa quando lhes desse a bênção, e
lhe penteava como um Papa, e o ensopava de água-de-colônia para que o
seu corpo e as suas roupas tivessem a fragrância de Papa. No pátio de Castel
Gandolfo ele tinha visto o Papa numa sacada, pronunciando o mesmo
discurso em sete idiomas para uma multidão de peregrinos, e a única coisa
que na verdade lhe chamara a atenção fora a brancura das suas mãos que
pareciam esfregadas com água sanitária, o brilho deslumbrante das suas
roupas de verão e o seu discreto perfume de água-de-colônia.
Quase um ano depois do regresso a casa, tendo vendido para comer
os candelabros de prata e o penico heráldico — que na hora da verdade só
teve de ouro as incrustações do escudo — a única distração de José Arcadio
era recolher crianças no povoado para que brincassem na sua casa. Aparecia
com eles na hora da sesta e os fazia pular corda no jardim, na varanda e virar
cambalhotas nos móveis da sala, enquanto ele andava por entre os grupos
repartindo lições de bom comportamento. Por essa época já tinha acabado
com as calças justas e com a camisa de seda e usava uma muda ordinária
comprada nas lojas dos turcos, mas continuava mantendo a sua dignidade
lânguida e os seus gestos papais. As crianças tomaram conta da casa como
tinham feito no passado as companheiras de Meme. Até tarde da noite se
ouvia tagarelar e cantar e dançar sapateado, de modo que a casa parecia um
internato sem disciplina. Aureliano não se preocupou com a invasão
enquanto não foram incomodá-lo no quarto de Melquíades. Certa manhã,
dois meninos empurraram a porta e se espantaram diante da visão do
homem emporcalhado e peludo que continuava decifrando os pergaminhos
na mesa de trabalho. Não ousaram entrar, mas continuaram rondando o
quarto. Aproximavam-se cochichando, espiando pelas rachaduras, jogavam
animais vivos pelas claraboias e, numa ocasião, pregaram por fora a porta e a
janela, e Aureliano precisou da metade de um dia para forçá-las. Divertidos
pela impunidade das suas travessuras, quatro meninos entraram noutra
manhã no quarto, enquanto Aureliano estava na cozinha, dispostos a
destruir os pergaminhos. Mas imediatamente após se terem apoderado das
folhas amareladas, uma força angélica levantou-os do solo e os manteve
suspensos no ar até que Aureliano voltou a lhes tomar os pergaminhos. A
partir de então não tornaram a incomodá-lo.
Os quatro meninos mais velhos, que usavam calças curtas apesar de já
se aproximarem da adolescência, ocupavam-se da aparência pessoal de José
Arcadio. Chegavam mais cedo que os outros e dedicavam a manhã a barbeá-lo, a fazer-lhe massagens com toalhas quentes, a cortar-lhe e polir-lhe as
unhas das mãos e dos pés, a perfumá-lo com água-de-colônia. Em várias
ocasiões, meteram-se na caixa-d’água, para ensaboá-lo dos pés à cabeça,
enquanto ele boiava de barriga para cima pensando em Amaranta. Em
seguida o secavam, botavam-lhe talco no corpo e o vestiam. Um dos
meninos, que tinha o cabelo louro e crespo e os olhos de contas rosadas como
os coelhos, costumava dormir na casa. Eram tão firmes os vínculos que o
uniam a José Arcadio que o acompanhava nas suas insônias de asmático,
sem falar, perambulando com ele pela casa em trevas. Certa noite, viram na
alcova onde Úrsula havia dormido um brilho amarelo através do cimento
cristalizado, como se um sol subterrâneo tivesse convertido em vitral o piso
do quarto. Não precisaram acender a lanterna. Bastou-lhes levantar as
tábuas quebradas do lugar onde sempre estivera a cama de Úrsula e onde o
brilho era mais intenso para encontrar a cripta secreta que Aureliano
Segundo se cansara de procurar no delírio das escavações. Ali estavam os três
sacos de lona fechados com arame de cobre e, dentro deles, os seus mil
duzentos e quatorze dobrões, que continuavam alumiando como brasas na
escuridão.
O achado do tesouro foi como uma deflagração. Em vez de voltar a
Roma com a fortuna inesperada, que era o sonho amadurecido na miséria,
José Arcadio transformou a casa num paraíso decadente. Trocou por veludo
novo as cortinas e o dossel do quarto e mandou colocar ladrilhos no chão do
banheiro e azulejos nas paredes. O guarda-louças da sala de jantar se
encheu de frutas cristalizadas, presuntos e conservas, e a despensa fora de
uso voltou a se abrir para armazenar vinhos e licores que o próprio José
Arcadio retirava na estação da estrada de ferro, em caixas marcadas com o
seu nome. Uma noite, ele e os quatro meninos mais velhos fizeram uma festa
que se prolongou até o amanhecer. Ás seis da manhã saíran nús do quarto,
esvaziaram a caixa-d’água e encheram-na de champanha. Mergulharam em
banho, nadando como pássaros que voassem num céu dourado de bolhas
aromáticas, enquanto José Arcadio boiava de barriga para cima, à margem da
festa, evocando Amaranta com os olhos abertos. Permaneceu assim,
ensimesmado, ruminando a amargura dos seus prazeres equívocos, até
depois de os meninos se terem cansado e ido em tropel para o quarto, onde
arrancaram as cortinas de veludo para se enxugar e quebraram, na
desordem, o espelho de cristal de rocha e arrebentaram o dossel da cama
tentando deitar-se em tumulto. Quando José Arcadio voltou do banheiro,
encontrou-os dormindo amontoados, nús, numa alcova naufragada. Irritado
não tanto pelos estragos como pelo nojo e pela pena que sentia de si mesmo
no desolado vazio da saturnália, armou-se de umas disciplinas de guarda
eclesiástico que guardava no fundo do baú, junto com um cilício e outros
ferros de mortificação e penitência, e expulsou os meninos da casa, uivando
como um louco e açoitando-os sem misericórdia, como não o teria feito com
um bando de coiotes. Ficou abatido, com uma crise de asma que se
prolongou por vários dias e que lhe deu o aspecto de um agonizante. Na
terceira noite de tortura, vencido pela asfixia, foi ao quarto de Aureliano
pedir-lhe o favor de comprar numa farmácia próxima um pó para inalar. Foi
assim que Aureliano fez a sua segunda saída à rua. Teve que percorrer
apenas duas quadras para chegar até a estreita farmácia de empoeiradas
vitrinas com potes de louça, marcados em latim, onde uma moça com a
sigilosa beleza de uma serpente do Nilo aviou-lhe a receita do medicamento
que José Arcadio tinha escrito num papel. A segunda visão do povoado
deserto, iluminado apenas pelas amareladas lâmpadas das ruas, não
despertou em Aureliano mais curiosidade que da primeira vez. José Arcadio
chegou a pensar que ele havia fugido, quando o viu aparecer de novo, um
pouco ofegante por causa da pressa, arrastando as pernas que a clausura e a
falta de mobilidade tinham tomado fracas e desajeitadas. Era tão segura a
sua indiferença pelo mundo que poucos dias depois José Arcadio violou a
promessa que tinha feito à mãe e o deixou livre para sair quando quisesse.
— Não tenho nada que fazer na rua — respondeu-lhe Aureliano.
Continuou trancado, absorto nos pergaminhos que pouco a pouco ia
desvendando e cujo sentido, entretanto, não conseguia interpretar. José
Arcadio trazia para ele no quarto fatias de presunto, frutas cristalizadas que
deixavam na boca um ressaibo primaveril e, em duas ocasiões, um copo de
bom vinho. Não se interessou pelos pergaminhos que considerava mais como
uma diversão esotérica, mas chamou-lhe a atenção a estranha sabedoria e o
inexplicável conhecimento do mundo que tinha aquele parente desolado.
Soube então que era capaz de compreender o inglês escrito e que, entre
pergaminho e pergaminho, tinha lido da primeira página à última, como se
fosse um romance, os seis tomos da enciclopédia. A isso atribuiu no princípio
o fato de que Aureliano pudesse falar de Roma como se tivesse vivido lá
durante muitos anos, mas muito em breve percebeu que tinha
conhecimentos que não eram enciclopédicos, como os preços das coisas.
“Tudo se sabe”, foi a única resposta que recebeu de Aureliano, quando lhe
perguntou como obtivera aquelas informações. Aureliano, por outro lado,
surpreendeu-se de que José Arcadio visto de perto fosse tão diferente da
imagem que tinha formado dele quando o via perambular pela casa. Era
capaz de rir, de se permitir de vez em quando uma saudade do passado da
casa e de se preocupar com o ambiente de miséria em que se encontrava o
quarto de Melquíades. Aquela aproximação de dois solitários do mesmo
sangue estava muito longe da amizade, mas permitiu a ambos sobreviver
melhor à insondável solidão que ao mesmo tempo os separava e unia. José
Arcadio pôde então ajudar Aureliano a resolver certos problemas domésticos
que o exasperavam. Aureliano, por sua vez, podia se sentar para ler na
varanda, receber as cartas de Amaranta Úrsula, que continuavam chegando
com a pontualidade de sempre, e usar o banheiro de onde tinha sido
expulso por José Arcadio desde a sua chegada.
Certa madrugada de calor ambos acordaram alarmados por umas
batidas desesperadas na porta da rua. Era um ancião escuro, de olhos
grandes e verdes que davam ao seu rosto uma fosforescência espectral e com
uma cruz de cinza na testa. As roupas em farrapos, os sapatos rotos e a velha
mochila que trazia ao ombro como única bagagem davam-lhe o aspecto de
um mendigo, mas a sua conduta tinha uma dignidade que estava em franca
contradição com a aparência. Bastava vê-lo uma vez, mesmo na penumbra
da sala, para perceber que a força secreta que lhe permitia viver não era o
instinto de conservação, mas o hábito do medo. Era Aureliano Amador, o
único sobrevivente dos dezessete filhos do Coronel Aureliano Buendía, que
vinha procurar uma trégua na sua longa e azarada existência de fugitivo.
Identificou-se, suplicou que lhe dessem refúgio naquela casa que nas suas
noites de pária evocara como o último reduto de segurança que lhe restava
na vida. Mas José Arcadio e Aureliano não se lembravam dele. Pensando que
era um vagabundo, lançaram-no à rua aos empurrões. Ambos viram então da
porta o final de um drama que tinha começado antes que José Arcadio
fizesse a idade da razão. Dois agentes da polícia que tinham perseguido
Aureliano Amador durante anos, que o haviam farejado como cães por meio
mundo, surgiram dentre as amendoeiras da calçada em frente e lhe deram
dois tiros de Mauser que penetraram certeiramente pela cruz de cinza.
Na realidade, desde que expulsara os meninos de casa, José Arcadio
esperava notícias de um transatlântico que sairia para Nápoles antes do
Natal. Dissera-o a Aureliano e inclusive fizera planos para lhe deixar um
negócio montado que lhe permitisse viver, porque a cesta de víveres não
tornara a chegar desde o enterro de Fernanda. Entretanto, tampouco
aquele sonho final se haveria de cumprir. Certa manhã de setembro, depois
de tomar café com Aureliano na cozinha, José Arcadio estava terminando o
seu banho diário quando irromperam pelos vãos das telhas os quatro
meninos que tinha expulsado de casa. Sem lhe dar tempo para se defender,
meteram-se vestidos na caixa-d’água, agarraram-no pelos cabelos e
mantiveram a sua cabeça afundada até que cessou na superfície o borbulhar
da agonia e o silencioso e pálido corpo de delfim deslizou até o fundo das
águas perfumadas. Depois levaram os três sacos de ouro que só eles e sua
vítima sabiam onde estavam escondidos. Foi uma ação tão rápida, metódica
e brutal que pareceu um assalto de militares. Aureliano, fechado no quarto,
não percebeu nada. Nessa tarde, tendo sentido a sua falta na cozinha,
procurou José Arcadio por toda a casa e o encontrou boiando nas
transparências perfumadas da caixa-d’água, enorme e tumefato, e ainda
pensando em Amaranta. Só então compreendeu o quanto tinha começado a
amá-lo.
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Cem Anos de Solidão (16.2) - Era impossível imaginar
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