terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (16.2) - Era impossível imaginar

Cem Anos de SOLIDÃO


Gabriel Garcia Márquez


(16.2)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío


     Era impossível imaginar um homem mais parecido com a mãe. Vestia um terno de tafetá preto, uma camisa de colarinho redondo e duro, e uma estreita fita de seda amarrada com um laço no lugar da gravata. Era lívido, lânguido, de olhar atônito e lábios delicados. O cabelo negro, lustroso e liso, repartido no meio da cabeça por uma linha reta e sem vida, tinha a mesma aparência postiça da cabeleira dos santos. A sombra da barba bem escanhoada no rosto de parafina parecia um problema de consciência. Tinha as mãos pálidas, com nervuras verdes e dedos parasitários, e um anel de ouro maciço com uma opala amarela, redonda, no indicador esquerdo. Quando abriu a porta da rua para ele, Aureliano não teve necessidade de imaginar quem fosse para perceber que vinha de muito longe. A casa se impregnou, à sua passagem, do cheiro da água-de-colônia que Úrsula lhe botava na cabeça quando era menino, para poder encontrá-lo nas trevas. De algum modo impossível de precisar, depois de tantos anos de ausência, José Arcadio continuava sendo um menino outonal, terrivelmente triste e solitário. Foi diretamente ao quarto de sua mãe, onde Aureliano vaporizara mercúrio durante quatro meses, no alambique do avô de seu avô, para conservar o corpo segundo a fórmula de Melquíades. José Arcadio não fez nenhuma pergunta. Deu um beijo na testa do cadáver, tirou de debaixo da saia o bolsinho onde havia três pessários ainda sem uso e a chave do guarda-roupa. Fazia tudo com gestos diretos e decididos, em contraste com a sua languidez. Tirou do guarda-roupa um cofrezinho damasquinado com o escudo familiar e encontrou no seu interior perfumado de sândalo a carta volumosa em que Fernanda desafogara o coração das incontáveis verdades que lhe escondera. Leu-a de pé, com avidez mas sem ansiedade, e na terceira página se deteve e examinou Aureliano com um olhar de segundo reconhecimento.

— Então — disse com uma voz que tinha alguma coisa de navalha de barba — você é o bastardo. 
— Sou Aureliano Buendía. 
— Vá para o quarto — disse José Arcadio. 

     Aureliano foi e não voltou a sair nem sequer por curiosidade quando ouviu o rumor dos funerais solitários. As vezes, da cozinha, via José Arcadio perambulando pela casa, sufocando na sua respiração angustiada, e continuava escutando os seus passos pelos quartos em ruína depois da meia-noite. Não ouviu a sua voz durante muitos meses, não só porque José Arcadio não lhe dirigia a palavra, mas também porque ele não tinha vontade nenhuma de que isso acontecesse, nem tempo para pensar em nada além dos pergaminhos. Com a morte de Fernanda, apanhara o penúltimo peixinho e fora à livraria do sábio catalão, em busca dos livros de que precisava. Não se interessou por nada do que viu no trajeto, talvez porque carecesse de lembranças para comparar, e as ruas desertas e as casas desoladas eram iguais às que imaginara num tempo em que teria vendido a alma para conhecê-las. Concedera-se a si mesmo a permissão que Fernanda lhe negara, mas só por uma vez, com um objetivo único e pelo tempo mínimo indispensável, de modo que percorreu sem pausa as onze quadras que separavam a sua casa do beco onde antigamente se interpretavam os sonhos e entrou ofegante no desarranjado e sombrio local onde mal havia espaço para se movimentar. Mais que uma livraria, parecia uma lixeira de livros usados, colocados em desordem nas estantes esburacadas pelo cupim, nos cantos cheios de teias de aranhas e até nos espaços que deveriam ser destinados à passagem. Numa longa mesa, também atravancada de alfarrábios, o proprietário escrevia uma prosa incansável, com uma caligrafia roxa, um pouco delirante, e em folhas soltas de caderno escolar. Tinha uma bela cabeleira prateada que lhe caía na testa como o penacho de uma cacatua e seus olhos azuis, vivos e miúdos, revelaram a mansidão do homem que lera todos os livros. Estava de cuecas, ensopado de suor, e não desatendeu à escrita para ver quem tinha chegado. Aureliano não teve dificuldade em resgatar de entre aquela desordem de louco os cinco livros que procurava, pois estavam no lugar exato que lhe indicara Melquíades. Sem dizer uma palavra entregou-os junto com o peixinho de ouro ao sábio catalão, e este os examinou e suas pálpebras se contraíram como duas amêijoas. “Deve estar doido”, disse na sua língua, dando de ombros, e devolveu a Aureliano os cinco livros e o peixinho.

— Pode levar — disse em castelhano. — O último homem que leu esses livros deve ter sido Isaac, o Cego, de modo que pense bem no que está fazendo.

     José Arcadio restaurou o quarto de Meme, mandou lavar e remendar as cortinas de veludo e o damasco do dossel da cama vice-real e pôs outra vez em serviço o banheiro abandonado, cuja caixa-d’água de cimento estava enegrecida por um limo fibroso e áspero. A esses dois lugares reduziu-se o seu império de segunda classe, de exauridos gêneros exóticos, de perfumes falsos e pedraria barata. A única coisa que parecia atrapalhá-lo no resto da casa eram os santos do altar doméstico, que uma tarde queimou até reduzí-los à cinzas, numa fogueira que acendeu no quintal. Dormia até depois das onze. Ia para o banheiro com um esfiapado roupão de dragões dourados e umas chinelas de pompons amarelos e ali oficiava um rito que pela sua serenidade e duração recordava o de Remedios, a bela. Antes de se banhar, aromatizava a caixa-d’água com os sais que levava em três potes de alabastro. Não fazia abluções com a cuja, mas mergulhava nas águas perfumadas e permanecia até duas horas boiando de barriga para cima, adormecido pela frescura e pela lembrança de Amaranta. Poucos dias depois de ter chegado abandonou o traje de tafetá, que além de ser quente demais para a região era o único terno que tinha, e trocou-o por umas calças justas, muito parecidas com as que Pietro Crespi usava nas aulas de dança, e uma camisa de seda animal com as suas iniciais bordadas no coração. Duas vezes por semana lavava a muda completa na caixa-d’água e ficava de roupão até que secasse pois não tinha nada mais para vestir. Nunca comia em casa. Saía à rua quando abrandava o calor da sesta e não voltava até tarde da noite. Então continuava o seu perambular angustiado, fungando como um gato e pensando em Amaranta. Ela e o olhar terrível dos santos no fulgor da lâmpada noturna eram as duas lembranças que conservava de casa. Muitas vezes, no alucinante agosto romano, tinha aberto os olhos na metade do sono e Amaranta surgindo de uma banheira de mármore rajada com as suas anáguas de renda e a venda na mão, idealizada pela ansiedade do exílio. Ao contrário de Aureliano José, que tentara sufocar aquela imagem no lago sangrento da guerra, ele tentava mantê-la viva num pantanal de concupiscência enquanto entretinha a mãe com a patranha sem fim da fábula de sua vocação pontifícia. Nem a ele nem a Fernanda nunca ocorreu pensar que a correspondência deles era um intercâmbio de fantasias. José Arcadio, que abandonara o seminário tão cedo quanto chegara a Roma, continuou alimentando a lenda da teologia e do direito canônico, para não botar em perigo a herança fabulosa de que falavam as cartas delirantes de sua mãe e que haveria de tirá-lo da miséria e da sordidez que partilhava com dois amigos numa água-furtada do Trastevere. Quando recebeu a última carta de Fernanda, ditada pelo pressentimento da morte iminente, meteu numa mala os últimos vestígios do seu falso esplendor e atravessou o oceano no porão de um navio onde os emigrantes se empurravam como reses no matadouro, comendo macarrão frio e queijo bichado. Antes de ler o testamento de Fernanda, que não era mais que uma minuciosa e tardia recapitulação de infortúnios, já os móveis quebrados e a erva daninha da varanda lhe haviam indicado que estava metido numa armadilha da qual não sairia jamais, para sempre exilado da luz de diamante e do ar imemorial da primavera romana. Nas insônias extenuantes da asma, media e tornava a medir a profundidade da sua desventura, enquanto revia a casa tenebrosa onde os exageros senis de Úrsula lhe haviam infundido o medo do mundo. Para estar certa de não perde-lo nas trevas, ela tinha assinalado um canto do quarto, o único onde poderia estar a salvo dos mortos que perambulavam pela casa desde o entardecer. “Qualquer coisa ruim que você fizer”, dizia-lhe Úrsula, “os santos me contam.” As noites de terror da sua infância reduziram-se a este canto, onde permanecia imóvel até a hora de se deitar, suando de medo num tamborete, sob o olhar vigilante e gelado dos santos delatores. Era uma tortura inútil, porque já nessa época tinha terror de tudo o que o rodeava e estava preparado para se assustar com tudo o que encontrasse na vida: as mulheres na rua, que arruinavam o seu sangue; as mulheres da casa, que pariam filhos com rabo de porco; os galos de briga, que provocavam mortes de homens e remorsos de consciência para o resto da vida; as armas de fogo, que só com serem tocadas condenavam a vinte anos de guerra; as empresas audaciosas, só conduziam ao desencanto e à loucura, e tudo, enfim, quanto Deus criara com a sua infinita bondade e que o diabo pervertera. Ao acordar, moído pela roda dos pesadelos, a claridade da janela e as carícias de Amaranta na caixa-d’água e o deleite com que ela lhe punha talco entre as pernas com uma esponja de seda libertavam-no do terror. Até Úrsula era diferente sob a luz radiante do jardim, porque ali não lhe falava de coisas de pavor, mas lhe esfregava os dentes com pó de carvão para que tivesse o sorriso radiante de um Papa, lhe cortava e polia as unhas para que os peregrinos que chegassem a Roma de todo âmbito da terra se assombrassem com a beleza das mãos do Papa quando lhes desse a bênção, e lhe penteava como um Papa, e o ensopava de água-de-colônia para que o seu corpo e as suas roupas tivessem a fragrância de Papa. No pátio de Castel Gandolfo ele tinha visto o Papa numa sacada, pronunciando o mesmo discurso em sete idiomas para uma multidão de peregrinos, e a única coisa que na verdade lhe chamara a atenção fora a brancura das suas mãos que pareciam esfregadas com água sanitária, o brilho deslumbrante das suas roupas de verão e o seu discreto perfume de água-de-colônia.
     Quase um ano depois do regresso a casa, tendo vendido para comer os candelabros de prata e o penico heráldico — que na hora da verdade só teve de ouro as incrustações do escudo — a única distração de José Arcadio era recolher crianças no povoado para que brincassem na sua casa. Aparecia com eles na hora da sesta e os fazia pular corda no jardim, na varanda e virar cambalhotas nos móveis da sala, enquanto ele andava por entre os grupos repartindo lições de bom comportamento. Por essa época já tinha acabado com as calças justas e com a camisa de seda e usava uma muda ordinária comprada nas lojas dos turcos, mas continuava mantendo a sua dignidade lânguida e os seus gestos papais. As crianças tomaram conta da casa como tinham feito no passado as companheiras de Meme. Até tarde da noite se ouvia tagarelar e cantar e dançar sapateado, de modo que a casa parecia um internato sem disciplina. Aureliano não se preocupou com a invasão enquanto não foram incomodá-lo no quarto de Melquíades. Certa manhã, dois meninos empurraram a porta e se espantaram diante da visão do homem emporcalhado e peludo que continuava decifrando os pergaminhos na mesa de trabalho. Não ousaram entrar, mas continuaram rondando o quarto. Aproximavam-se cochichando, espiando pelas rachaduras, jogavam animais vivos pelas claraboias e, numa ocasião, pregaram por fora a porta e a janela, e Aureliano precisou da metade de um dia para forçá-las. Divertidos pela impunidade das suas travessuras, quatro meninos entraram noutra manhã no quarto, enquanto Aureliano estava na cozinha, dispostos a destruir os pergaminhos. Mas imediatamente após se terem apoderado das folhas amareladas, uma força angélica levantou-os do solo e os manteve suspensos no ar até que Aureliano voltou a lhes tomar os pergaminhos. A partir de então não tornaram a incomodá-lo.
     Os quatro meninos mais velhos, que usavam calças curtas apesar de já se aproximarem da adolescência, ocupavam-se da aparência pessoal de José Arcadio. Chegavam mais cedo que os outros e dedicavam a manhã a barbeá-lo, a fazer-lhe massagens com toalhas quentes, a cortar-lhe e polir-lhe as unhas das mãos e dos pés, a perfumá-lo com água-de-colônia. Em várias ocasiões, meteram-se na caixa-d’água, para ensaboá-lo dos pés à cabeça, enquanto ele boiava de barriga para cima pensando em Amaranta. Em seguida o secavam, botavam-lhe talco no corpo e o vestiam. Um dos meninos, que tinha o cabelo louro e crespo e os olhos de contas rosadas como os coelhos, costumava dormir na casa. Eram tão firmes os vínculos que o uniam a José Arcadio que o acompanhava nas suas insônias de asmático, sem falar, perambulando com ele pela casa em trevas. Certa noite, viram na alcova onde Úrsula havia dormido um brilho amarelo através do cimento cristalizado, como se um sol subterrâneo tivesse convertido em vitral o piso do quarto. Não precisaram acender a lanterna. Bastou-lhes levantar as tábuas quebradas do lugar onde sempre estivera a cama de Úrsula e onde o brilho era mais intenso para encontrar a cripta secreta que Aureliano Segundo se cansara de procurar no delírio das escavações. Ali estavam os três sacos de lona fechados com arame de cobre e, dentro deles, os seus mil duzentos e quatorze dobrões, que continuavam alumiando como brasas na escuridão.
     O achado do tesouro foi como uma deflagração. Em vez de voltar a Roma com a fortuna inesperada, que era o sonho amadurecido na miséria, José Arcadio transformou a casa num paraíso decadente. Trocou por veludo novo as cortinas e o dossel do quarto e mandou colocar ladrilhos no chão do banheiro e azulejos nas paredes. O guarda-louças da sala de jantar se encheu de frutas cristalizadas, presuntos e conservas, e a despensa fora de uso voltou a se abrir para armazenar vinhos e licores que o próprio José Arcadio retirava na estação da estrada de ferro, em caixas marcadas com o seu nome. Uma noite, ele e os quatro meninos mais velhos fizeram uma festa que se prolongou até o amanhecer. Ás seis da manhã saíran nús do quarto, esvaziaram a caixa-d’água e encheram-na de champanha. Mergulharam em banho, nadando como pássaros que voassem num céu dourado de bolhas aromáticas, enquanto José Arcadio boiava de barriga para cima, à margem da festa, evocando Amaranta com os olhos abertos. Permaneceu assim, ensimesmado, ruminando a amargura dos seus prazeres equívocos, até depois de os meninos se terem cansado e ido em tropel para o quarto, onde arrancaram as cortinas de veludo para se enxugar e quebraram, na desordem, o espelho de cristal de rocha e arrebentaram o dossel da cama tentando deitar-se em tumulto. Quando José Arcadio voltou do banheiro, encontrou-os dormindo amontoados, nús, numa alcova naufragada. Irritado não tanto pelos estragos como pelo nojo e pela pena que sentia de si mesmo no desolado vazio da saturnália, armou-se de umas disciplinas de guarda eclesiástico que guardava no fundo do baú, junto com um cilício e outros ferros de mortificação e penitência, e expulsou os meninos da casa, uivando como um louco e açoitando-os sem misericórdia, como não o teria feito com um bando de coiotes. Ficou abatido, com uma crise de asma que se prolongou por vários dias e que lhe deu o aspecto de um agonizante. Na terceira noite de tortura, vencido pela asfixia, foi ao quarto de Aureliano pedir-lhe o favor de comprar numa farmácia próxima um pó para inalar. Foi assim que Aureliano fez a sua segunda saída à rua. Teve que percorrer apenas duas quadras para chegar até a estreita farmácia de empoeiradas vitrinas com potes de louça, marcados em latim, onde uma moça com a sigilosa beleza de uma serpente do Nilo aviou-lhe a receita do medicamento que José Arcadio tinha escrito num papel. A segunda visão do povoado deserto, iluminado apenas pelas amareladas lâmpadas das ruas, não despertou em Aureliano mais curiosidade que da primeira vez. José Arcadio chegou a pensar que ele havia fugido, quando o viu aparecer de novo, um pouco ofegante por causa da pressa, arrastando as pernas que a clausura e a falta de mobilidade tinham tomado fracas e desajeitadas. Era tão segura a sua indiferença pelo mundo que poucos dias depois José Arcadio violou a promessa que tinha feito à mãe e o deixou livre para sair quando quisesse.

— Não tenho nada que fazer na rua — respondeu-lhe Aureliano.

     Continuou trancado, absorto nos pergaminhos que pouco a pouco ia desvendando e cujo sentido, entretanto, não conseguia interpretar. José Arcadio trazia para ele no quarto fatias de presunto, frutas cristalizadas que deixavam na boca um ressaibo primaveril e, em duas ocasiões, um copo de bom vinho. Não se interessou pelos pergaminhos que considerava mais como uma diversão esotérica, mas chamou-lhe a atenção a estranha sabedoria e o inexplicável conhecimento do mundo que tinha aquele parente desolado. Soube então que era capaz de compreender o inglês escrito e que, entre pergaminho e pergaminho, tinha lido da primeira página à última, como se fosse um romance, os seis tomos da enciclopédia. A isso atribuiu no princípio o fato de que Aureliano pudesse falar de Roma como se tivesse vivido lá durante muitos anos, mas muito em breve percebeu que tinha conhecimentos que não eram enciclopédicos, como os preços das coisas. “Tudo se sabe”, foi a única resposta que recebeu de Aureliano, quando lhe perguntou como obtivera aquelas informações. Aureliano, por outro lado, surpreendeu-se de que José Arcadio visto de perto fosse tão diferente da imagem que tinha formado dele quando o via perambular pela casa. Era capaz de rir, de se permitir de vez em quando uma saudade do passado da casa e de se preocupar com o ambiente de miséria em que se encontrava o quarto de Melquíades. Aquela aproximação de dois solitários do mesmo sangue estava muito longe da amizade, mas permitiu a ambos sobreviver melhor à insondável solidão que ao mesmo tempo os separava e unia. José Arcadio pôde então ajudar Aureliano a resolver certos problemas domésticos que o exasperavam. Aureliano, por sua vez, podia se sentar para ler na varanda, receber as cartas de Amaranta Úrsula, que continuavam chegando com a pontualidade de sempre, e usar o banheiro de onde tinha sido expulso por José Arcadio desde a sua chegada.
     Certa madrugada de calor ambos acordaram alarmados por umas batidas desesperadas na porta da rua. Era um ancião escuro, de olhos grandes e verdes que davam ao seu rosto uma fosforescência espectral e com uma cruz de cinza na testa. As roupas em farrapos, os sapatos rotos e a velha mochila que trazia ao ombro como única bagagem davam-lhe o aspecto de um mendigo, mas a sua conduta tinha uma dignidade que estava em franca contradição com a aparência. Bastava vê-lo uma vez, mesmo na penumbra da sala, para perceber que a força secreta que lhe permitia viver não era o instinto de conservação, mas o hábito do medo. Era Aureliano Amador, o único sobrevivente dos dezessete filhos do Coronel Aureliano Buendía, que vinha procurar uma trégua na sua longa e azarada existência de fugitivo. Identificou-se, suplicou que lhe dessem refúgio naquela casa que nas suas noites de pária evocara como o último reduto de segurança que lhe restava na vida. Mas José Arcadio e Aureliano não se lembravam dele. Pensando que era um vagabundo, lançaram-no à rua aos empurrões. Ambos viram então da porta o final de um drama que tinha começado antes que José Arcadio fizesse a idade da razão. Dois agentes da polícia que tinham perseguido Aureliano Amador durante anos, que o haviam farejado como cães por meio mundo, surgiram dentre as amendoeiras da calçada em frente e lhe deram dois tiros de Mauser que penetraram certeiramente pela cruz de cinza.
     Na realidade, desde que expulsara os meninos de casa, José Arcadio esperava notícias de um transatlântico que sairia para Nápoles antes do Natal. Dissera-o a Aureliano e inclusive fizera planos para lhe deixar um negócio montado que lhe permitisse viver, porque a cesta de víveres não tornara a chegar desde o enterro de Fernanda. Entretanto, tampouco aquele sonho final se haveria de cumprir. Certa manhã de setembro, depois de tomar café com Aureliano na cozinha, José Arcadio estava terminando o seu banho diário quando irromperam pelos vãos das telhas os quatro meninos que tinha expulsado de casa. Sem lhe dar tempo para se defender, meteram-se vestidos na caixa-d’água, agarraram-no pelos cabelos e mantiveram a sua cabeça afundada até que cessou na superfície o borbulhar da agonia e o silencioso e pálido corpo de delfim deslizou até o fundo das águas perfumadas. Depois levaram os três sacos de ouro que só eles e sua vítima sabiam onde estavam escondidos. Foi uma ação tão rápida, metódica e brutal que pareceu um assalto de militares. Aureliano, fechado no quarto, não percebeu nada. Nessa tarde, tendo sentido a sua falta na cozinha, procurou José Arcadio por toda a casa e o encontrou boiando nas transparências perfumadas da caixa-d’água, enorme e tumefato, e ainda pensando em Amaranta. Só então compreendeu o quanto tinha começado a amá-lo.
 
continua página 223...
Cem Anos de Solidão (16.2) - Era impossível imaginar
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