terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (8b) - Mal acabou de ler

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

8.

continuando...

     Mal acabou de ler, Kólia entregou o jornal ao príncipe e, sem dizer uma palavra, correu a se meter em um canto e tapou o rosto com as mãos. Sentia-se intoleravelmente envergonhado; a sua sensibilidade juvenil, não afeita ainda a tais vilanias, ficara ferida muito além do que podia suportar. A impressão que sentia era que algo de terrível tinha sucedido, esmigalhando tudo! E que ele, por ter lido alto aquilo, fora a causa de tudo. Todavia, os demais pareciam sentir a mesma coisa. As moças ficaram muito deprimidas e envergonhadas. Lizavéta Prokófievna lutava com uma violenta raiva. Ela também, talvez, estivesse amargamente arrependida de se ter metido nisso. E agora se mantinha calada. Quanto a Míchkin, sentiu o que as pessoas demasiado sensíveis sentem em tais casos; ficou tão envergonhado com a conduta dos outros, sentiu tamanha vergonha pelas suas visitas, que por muito tempo teve pejo de encará- las. Ptítsin, Vária, Gánia, o próprio Liébediev - todos estavam com ar embaraçado. E a coisa mais estranha é que tanto Ippolít como o “filho de Pavlíchtchev” pareciam ambos perplexos. O sobrinho de Liébediev também estava notoriamente atarantado. O boxeador era o único calmamente sentado, inteiramente sereno, cofiando os bigodes, com ar sobranceiro, com os olhos postos no chão, não por desapontamento, mas fingindo um modesto orgulho e um iniludível triunfo. Era patente que o artigo o deleitara.

- Isso nem merece comentário! - sentenciou o general, em voz baixa. - Nem cinquenta lacaios juntos comporiam uma coisa assim!
- Permita-me, meu caro senhor, perguntar-lhe como ousa fazer tão insultantes suposições? - gritou Ippolít, a tremer.
- Isto, isto, isto, para um homem honrado... o senhor mesmo há de ouvir, general, se é que é um homem de bem, isto, isto... é insultante! - gaguejava o boxeador que inesperadamente também se inflamara, torcendo os bigodes e agitando os ombros e o corpo.  
- Em primeiro lugar, eu não sou “o seu caro senhor”, e em segundo lugar, não tenho de lhes dar satisfações! - respondeu Iván Fiódorovitch, com severidade. Estava terrivelmente zangado. Ergueu-se da cadeira e sem dizer mais nada foi para a entrada da varanda onde ficou de pé, perto dos degraus, de costas para o grupo, violentamente indignado com a mulher por não ter ela sequer pensado em sair de lá.
- Amigos, amigos, permitam-me, finalmente, que eu fale, disse o príncipe, aflito e embargado. - E eu lhes peço para conversarmos de maneira a que nos possamos entender todos. Quanto ao artigo não digo nada, senhores, ele fala por si. Apenas uma coisa. amigos: nada do que está escrito no artigo é verdade. Digo assim, porque os senhores mesmos sabem. É tão ignominioso, de fato, que eu me surpreenderia enormemente se foi algum dos senhores que escreveu isso!
- Até ao presente momento eu ignorava esse artigo - avisou Ippolít. - Não o aprovo!
- Embora eu soubesse que estava escrito, eu... eu também teria aconselhado a não o publicarem, porque acho prematuro - ajuntou o sobrinho de Liébediev. 
- Eu sabia, mas eu tenho direito.., eu... - balbuciou “o filho de Pavlíchtchev”.
- Como! Foi então o senhor quem preparou tudo isso? - perguntou o príncipe, olhando atentamente para Burdóvskii. - Mas é possível? 
- Recusamo-nos a reconhecer o seu direito de perguntar uma coisa dessas! - interveio o sobrinho de Liébediev
- Apenas o que me admira é que o Sr. Burdóvskii pudesse... ele próprio... Mas... agora pergunto eu, já que os senhores deram publicidade ao caso, por que ficaram tão ofendidos, ainda agora. quando eu principiei a falar sobre o caso diante dos meus amigos?
- Até que enfim! - ciciou Lizavéta Prokófievna, indignadíssima.  
- E então, príncipe., o senhor se esquece também - e Liébediev, não se podendo conter, arranjava uma passagem por entre as cadeiras. em um estado febril de agitação -, então, o senhor se esquece também que foi somente graças à sua bondade e à infinita grandeza do seu coração que recebeu e escutou essa gente? E que essa gente não tem o direito de pedir nada; especialmente tendo o senhor posto já o caso nas mãos de Gavríl Ardaliónovitch, o que, também, já foi excesso de bondade? E agora, ilustríssimo príncipe, no seio dos seus diletos amigos, o senhor não pode sacrificar a companhia deles por essa gente. E o que o senhor deve fazer é escorraçar toda essa corja para a rua, já! E eu, como dono da casa, fá-lo-ei com o maior prazer... 
- Perfeitamente! Muito bem! - trovejou o General Ívolguin, de súbito, lá dos fundos da sala.
- Chega, Liébediev, chega, chega! - ia começando o príncipe, mas as suas palavras se perderam em uma explosão de indignações.
-Não, com licença, príncipe, com licença, não chega não! - vociferou o sobrinho de Liébediev cujo timbre afogava o dos Outros. - Agora devemos colocar o caso sobre uma base firme e clara, visto, evidentemente, não estar nada combinado. Há um certo sofisma, uma certa sutileza judiciária envolvida em tudo isso e, por causa dessa sutileza, nos ameaçam pôr na rua. Mas é possível, príncipe, que o senhor possa pensar que nós somos tão cretinos que não sabíamos que não temos recurso judicial a interpor e que, analisando o caso sob o ponto de vista da lei, não temos sequer direito a tentar uma ação por um simples rublo? Mas nós, de um modo absoluto, nos damos conta de que, se não há uma reivindicação legal, há, todavia, uma reivindicação humana, natural! A que é dada pelo bom senso e pela voz da consciência. E conquanto essa reivindicação não esteja escrita em nenhum código humano, todavia um homem generoso e honesto, em outras palavras, um homem sensato, sente que tem de ser generoso e honesto mesmo em pontos que não estão escritos nos códigos. Eis por que viemos até aqui sem nenhum medo de ser postos na rua (como nos ameaçaram ainda agora) pois não estamos pedindo, mas sim requerendo, apesar mesmo do impróprio da hora, adiantada para a nossa visita. (Aliás não viemos em hora tardia, foi o senhor quem nos deixou a esperar na sua antecâmara.) Viemos, repito, sem tergiversar, porque o consideramos um homem de sensatez, isto é, de honra e de consciência. E o que é mais, não viemos humildemente, não viemos como pedintes, nem como trampolineiros, e sim com nossas cabeças eretas, como homens livres. Não se trata sequer de uma petição, mas sim de uma instância livre e altiva. (Ouça bem, não com uma petição, mas com uma instância, guarde bem isso.) E pomos o caso em suas mãos, diretamente, dignamente. Como se considera o senhor, perante o direito, no caso de Burdóvskii? Não admite o senhor que foi beneficiado e talvez até salvo da morte por Pavlíchtchev? Se o senhor admite isso (o que é evidente), tenciona ou pensa o senhor, já que recebeu milhões, compensar o filho de Pavlíchtchev em sua pobreza, apesar de usar ele o nome de Burdóvskii? Sim, ou não? Se sim, ou melhor, em outras palavras, se o senhor tem o que o senhor chama, em sua linguagem, honra e consciência, e que nós outros mais exatamente chamamos de senso comum, então nos atenda e satisfaça, e daremos o caso por liquidado. Satisfaça-nos sem querer salamaleques ou gratidões de nossa parte; não espere isso de nós, pois não terá agido por nossa causa e sim por causa da justiça. Se, porém, o senhor não nos quiser satisfazer, isto é, se responde não, vamos embora imediatamente e o caso também está acabado! E então lhe havemos de dizer na cara, diante de todas as suas testemunhas, que o senhor é um homem de inteligência inferior e de desenvolvimento primário. E que, pelo futuro, não ouse cognominar-se homem de brio e de consciência, pois não tem o direito de o fazer, visto ter comprado tal direito barato demais. Terminei! Expus o caso. Ponha-nos na rua se é capaz. Não lhe será difícil, o senhor tem a força. Mas, ainda assim, lembre que não pedimos, exigimos! Exigimos e não pedimos! - e o sobrinho de Liébediev parou, muito excitado.
- Nós exigimos... exigimos... exigimos... não pedimos!... - berrava Burdóvskii, grosseiramente, até ficar vermelho como um camarão.

     Depois dessa espécie de discurso feito pelo sobrinho de Liébediev, houve uma movimentação geral, com murmúrios de protesto, embora cada pessoa do grupo não tentasse se intrometer no caso, exceto Liébediev, talvez, que parecia estar com um acesso de febre. (E interessante será destacar aqui que Liébediev, embora estivesse do lado do príncipe, não deixava de demonstrar emoção, de ordem como que familiar, ante o discurso do sobrinho, dando em encarar os presentes com certo ar de satisfação.)

- Na minha opinião - começou o príncipe, em voz um tanto baixa -, na minha opinião, Sr. Doktorénko, na metade de quanto falou agora, o senhor está com a razão, e em mais da metade, mesmo. E eu concordaria com o senhor imediatamente se o senhor não tivesse deixado fora do seu discurso uma certa coisa. Mas eu lhe posso dizer o que foi exatamente que o senhor deixou de fora; não me sinto apto, mas para tornar o seu discurso inteiramente certo, alguma coisa se requer dentro dele. Porém será melhor voltarmos ao caso, desde o começo, senhores! Digam-me, por que publicaram este artigo? Não há uma só palavra nele que não seja calúnia; portanto, no meu pensar, os senhores cometeram uma perversidade.

- Dá licença? 
- Meu caro senhor! 
- Isso... isso... isso - ouvia-se de todos os lados, ao mesmo tempo, lá do grupo dos visitantes. 
- No que se refere ao artigo - atalhou estridulamente Ippolít - já disse que nem eu nem os demais o aprovamos. Foi escrito por aquele ali (apontou para o boxeador que estava sentado a pouca distância); foi escrito ignominiosamente, concordo, escrito em mau russo, e na gíria dos homens do exército, reformados. Ele, além de estúpido, é um mercenário; concordo. Digo-lhe isso todos os dias na cara, mas, pelo menos na metade, estava direito. A publicidade é um direito legal para todos e ainda mais para Burdóvskii. Ele lá que responda pelos seus absurdos! No que se refere ao meu protesto pela presença de seus amigos, penso ser necessário informá-los, senhores, que eu protestei apenas para defender os nossos direitos. Na realidade, porém, até preferimos que houvesse testemunhas e, de nossa parte, nós quatro estamos certos que, sejam essas suas testemunhas quais forem, mesmo que se trate de amigos seus, não podem deixar de reconhecer a reivindicação de Burdóvskii (porque ela é matematicamente certa), sendo, portanto, até melhor que se trate de amigos seus; isso tornará a verdade ainda mais patente.
- Lá isso é verdade. Concordamos sim! - asseverou o sobrinho de Liébediev.
- Por que foi, então, que os senhores começaram a fazer rebuliço e gritaria, se até as testemunhas lhes convinham? - indagou o príncipe surpreso.
- E quanto ao artigo, príncipe - aparteou o boxeador, que se estava tornando excitado demais e desesperado para falar (suspeitar-se-ia até que a presença de senhoras produzia um forte e patente efeito sobre ele) quanto ao artigo, confesso ser eu o autor, muito embora ali o meu amigo doente, a quem já me acostumei a perdoar, por causa justamente da doença, tenha criticado dizendo que não prestava. Mas eu o escrevi e o publiquei no jornal de um amigo, em forma de carta. Tão só não são meus os versos que, de fato, vieram da pena de um célebre satírico. Só os li para o Sr. Burdóvskii, e isso mesmo em parte; e ele logo concordou comigo que o publicasse, muito embora estejam a ver que eu os poderia publicar sem o consentimento dele. O direito de publicidade é um direito que abrange a todos e é um direito honorável e benéfico. Espero que o senhor príncipe seja bastante progressista para não negar isso!... 
- Não lhe estou negando nada, mas há de convir que esse seu artigo...
- É severo, quer o senhor dizer?! Mas o senhor sabe muito bem que isso é em benefício público, a bem dizer. E, além do mais, como se haveria de deixar passar um caso tão fragrante como esse. Tanto pior para o culpado! Mas o público se beneficia diante de tais coisas. Quanto a certas pequenas incorreções, a bem dizer hipérboles, há de o senhor convir que o que importa no caso, bem mais, é o motivo. O objeto, a intenção, vem primeiro. O que importa é o exemplo benéfico; depois então que se entre no caso individual. E sem falar no mais: o estilo, o valor humorístico da coisa... E de fato, todo o mundo escreve desse jeito, conforme o senhor muito bem sabe. Ah! Ah!
- Mas os senhores estão em uma pista completamente falsa, posso lhes assegurar - exclamou o príncipe. - Os senhores publicaram este artigo na suposição de que eu por nada me induziria a satisfazer o Sr. Burdóvskií; e então tentaram amedrontar-me e tirar uma vingança. Mas em que se apoiavam os senhores? E se eu me decidisse a satisfazer a reivindicação do Sr. Burdóvskii? E digo-lhes plenamente, diante de todo o mundo, que tal é o meu querer.  
- Isso? Ora aí está uma sábia e generosa afirmativa de um homem sábio e generoso! - elogiou o campeão de boxe, virando-se para todos os lados.
- Céus! - não pôde deixar de exclamar Lizavéta Prokófievna.
- Inominável! inominável! - desaprovava e se escandalizava o general, categoricamente.
- Com licença, amigos! Com licença! Vou explicar bem - suplicou e prometeu o príncipe. - Sr. Burdóvskii, o seu agente ou representante, Tchebárov, foi ver-me há cinco semanas. A descrição que o ex-tenente Keller faz dele, desse Tchebárov, é lisonjeira demais - acrescentou o príncipe com vontade de rir, voltando-se para o ex-campeão de boxe. - Eu não apreciei esse senhor de forma alguma. Percebi logo que esse Tchebárov entrou neste caso com intenções escusas e que, para falar candidamente, abusou de sua simplicidade, senhor Burdóvskii, quando o atiçou a tentar essa reivindicação. 
- O senhor, não tem o di... di... direito de dizer is... so! Eu não sou.., nenhum sim.., simplório - pôs-se Burdóvskii a gaguejar, excitadíssimo. E logo o sobrinho de Liébediev lhe veio em ajuda:
- Com que direito faz o senhor suposições desta ordem? - ...que são insultantes no mais alto grau! - estridulou Ippolít. - A sua insinuação é insultante, falsa e impertinente! 
- Lastimo. Lastimo! Lastimo! - desculpou-se Míchkin, prontamente. - Por favor, desculpem-me. É que pensei que fosse melhor para nós que eu usasse inicialmente de franqueza. Mas os senhores é que decidem. Como queiram. Eu disse a Tchebárov que como não me achava em Petersburgo, ia autorizar imediatamente um amigo a tratar do caso e que lhe comunicasse, senhor Burdóvskii. Declaro-lhes, senhores, que no começo tomei o caso como uma trapaça apenas, por causa da comparticipação de Tchebárov, cujos modos me pareceram suspeitos e demasiado vivazes... Oh! Não se ofendam, Senhores! Pelo amor de Deus, não se ofendam - exclamou o príncipe, vivamente, ao tornar a distinguir sinais de ressentimento em Burdóvskii e demonstrações de protesto por parte dos amigos deste. - Claro que não me refiro ao senhor nem aos presentes, quando falo em trapaça, chantagem. Naquela ocasião eu não conhecia nenhum dos senhores pessoalmente. Ignorava-lhes até os nomes. Apenas me restringi a julgar Tchebárov. Falei de modo geral porque... se soubessem quão nefandamente fui saqueado depois que entrei na posse de minha fortuna! 
- Príncipe, o senhor é extraordinariamente ingênuo! - zombou o sobrinho de Liébediev - Quem lhe manda ser príncipe e milionário! Pode muito bem ser que o senhor seja bondoso e simples mas de qualquer forma não pode fugir à lei geral - sentenciou Ippolít. 

O Idiota: Segunda Parte (8b) - Mal acabou de ler
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