sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap I - Nesse momento, a Sra. de Surgis)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra



Capítulo Primeiro
Segunda Parte


continuando...

     Nesse momento, a Sra. de Surgis entrou na sala de jogos à procura dos filhos. Ao avistá-la, o Sr. de Charlus foi ao seu encontro com tal amabilidade que a marquesa ficou tanto mais agradavelmente surpreendida por esperar uma grande frieza da parte do barão, o qual o tempo todo se arvorara em protetor de Oriane e o único da família muitas vezes por demais complacente às exigências do duque por causa de sua doença e por ciúme quanto à duquesa a manter impiedosamente a distância as amantes do irmão. Assim, a Sra. de Surgis compreenderia muito bem as razões da atitude que temia da parte do barão, mas de modo algum suspeitou dos motivos da acolhida inteiramente oposta que dele acontecesse. Ele lhe falou com admiração do retrato que Jacquet fizera dela antigamente. Essa admiração chegou mesmo a exaltar-se a um entusiasmo que em parte era interessado para impedir que a marquesa se afastasse para "fisgá-la", como dizia Robert dos exércitos inimigos dos quais se deseja forçar manter engajados os efetivos em um determinado ponto, talvez fosse igualmente sincero. Pois, se todos se compraziam em admirar nos filhos o porte de rainha e os olhos da Sra. de Surgis, o barão podia experimentar um prazer inverso, mas igualmente vivo, de reencontrar esses encantos reunidos em feixe na mãe deles, como num retrato que por si mesmo não inspira desejos, mas alimenta, com a admiração estética que inspira, os desejos que revela. Estes vinham, retrospectivamente, dar um encanto voluptuoso ao próprio retrato de Jacquet e, naquele momento, o barão o teria adquirido de bom grado para nele estudar a genealogia fisiológica dos dois jovens Surgis. 

- Vês que eu não exagerava - disse Robert. - Repara um pouco na solicitude do tio para com a Sra. de Surgis. E até isso me espanta. Se Oriane soubesse, ficaria furiosa. Francamente, há bastantes mulheres para que ele se lance justamente sobre essa – acrescentou.

     Como todas as pessoas que não estão apaixonadas, imaginava que se escolhe a pessoa que se ama após mil deliberações e segundo qualidades e conveniências diversas. Aliás, completamente enganado a respeito do tio, que julgava dado às mulheres, Robert, em seu rancor, falava do Sr. de Charlus com excessiva leviandade. Não se é sempre impunemente o sobrinho de alguém. Muitas vezes é por seu intermédio que um hábito hereditário se transmite mais cedo ou mais tarde. Assim, podia-se fazer toda uma galeria de retratos que tivesse por título o da comédia alemã tio e sobrinho, onde se veria o tio zelando ciumento, embora involuntariamente, para que o sobrinho acabasse por se parecer com ele. Acrescentarei até que essa galeria ficaria incompleta se nela não fizessem figurar os tios que não têm qualquer parentesco real, sendo apenas tios da esposa do sobrinho. Os senhores de Charlus estão, de fato, de tal modo convencidos de serem os únicos bons esposos, e mais, os únicos de quem uma mulher jamais terá ciúmes, que em geral, por afeição à sobrinha, fazem-na casar também com um Charlus. O que enreda todo o fio das semelhanças. E ao afeto pela sobrinha se junta às vezes o afeto igualmente pelo seu noivo. Tais matrimônios não são raros, e muitas vezes são os que se chamam felizes.

- De que falávamos? Ah, dessa alta, loura, a camareira da Sra. Putbus. Ela também gosta das mulheres, mas creio que isso pouco te importa; posso te dizer com franqueza, nunca vi uma criatura tão linda. 
- Imagino-a bastante Giorgione, não? 
- Loucamente Giorgione! Ah, se eu tivesse tempo de ficar em Paris, quantas coisas magníficas para fazer! E depois, passa-se a uma outra. Pois, quanto ao amor, estás vendo, é uma brincadeira, estou bem curado. -

     Percebi logo, com surpresa, que ele não estava menos curado da literatura, enquanto que era apenas sobre os ratos que me parecera desabusado no nosso último encontro ("É quase um canalha & Cia.", me dissera), o que se podia explicar por seu jurado rancor relativamente a certos amigos de Rachel. De fato, tinham-na vencido de que jamais teria talento se deixasse Robert, "homem de raça", assumir influência sobre ela, e, junto com ela, zombavam dele nos jantares que ele lhes oferecia. Mas, na realidade, o amor de Robert pelas letras nada tinha de profundo, não emanava de sua natureza verdadeira, não passava de um derivado de seu amor por Rachel e se fizera com esta, ao mesmo tempo que seu horror aos gozadores e seu respeito religioso pela virtude das mulheres.

- Que ar estranho têm aqueles dois rapazes! Olhe essa curiosa paixão pelo jogo, marquesa. - disse o Sr. de Charlus, designando à Sra Surgis os seus dois filhos, como se ignorasse absolutamente quem endeusava. - Devem ser dois orientais, têm certos traços característicos, talvez são turcos - acrescentou, a um tempo para confirmar ainda sua fingida inocência, testemunhar uma vaga antipatia que, quando a seguir cedesse o posto à amabilidade, provaria que esta se endereçava unicamente à idade dos filhos da Sra. de Surgis, tendo principiado apenas no momento em que o barão soubera de quem se tratavam. Talvez também o Sr. de Charlus, de quem a insolência era um dom natural que ele sentia satisfação em exercer, aproveitasse o minuto em que dava amostras de ignorar quem eram os dois rapazes para se divertir à custa da Sra. de Surgis e se entregar às suas troças costumeiras, como Scapin aproveita o disfarce de seu amo para lhe dar umas belas pauladas. 
- São meus filhos - disse a Sra. de Surgis, com um rubor que não mostraria se fosse mais esperta sem ser mais virtuosa. Teria então compreendido que o ar de indiferença absoluta, ou de zombaria, que o Sr. de Charlus manifestava a respeito de um rapaz não era mais sincero que sua admiração bem superficial que testemunhava a uma mulher, e não expressava o verdadeiro fundo de sua natureza. Aquela a quem poderia indefinidamente lançar as frases mais lisonjeiras sentiria ciúmes do olhar que o barão, enquanto lhe falava, ia lançando a um homem que em seguida fingia não ter notado. Pois esse olhar era um olhar diferente daqueles que o Sr. de Charlus reservava para as mulheres; um olhar especial, vindo das profundezas e que mesmo num sarau não podia deixar de se dirigir aos jovens, como os olhares de um costureiro que revelam sua profissão pelo modo imediato que eles têm de se dirigir às roupas. 
- Oh, como é curioso - respondeu o Sr. de Charlus não sem insolência, dando a impressão de obrigar seu pensamento a cumprir um longo trajeto para levá-lo a uma realidade tão diversa da que ele fingira ter suposto. - Mas eu não os conhecia - acrescentou, temendo ter ido longe demais na expressão de antipatia e, assim, ter paralisado na marquesa a intenção de lhe apresentar os filhos.

- Permitiria que os apresentasse ao senhor? - indagou timidamente a Sra. de Surgis. 
- Ora, meu Deus! Como não? Mas olhe, eu talvez não seja uma pessoa tão divertida para rapazes tão jovens - entoou o Sr. de Charlus com o ar de hesitação e de frieza de alguém que deixa que lhe arranquem uma cortesia. 
- Arnulphe, Victurnien, venham depressa - chamou a Sra. de Surgis. 

     Victurnien ergueu-se com decisão. 
     Arnulphe, sem ver mais longe que o irmão, seguiu-o docilmente.

- Eis agora a vez dos filhos - comentou Robert. - É de morrer de rir. Ele procura agradar até o cachorro da casa. E é tanto mais engraçado, visto que meu tio detesta os gigolôs. E olha como os ouve com seriedade. Se fosse eu quem os quisesse apresentar, logo ele me mandaria plantar batatas. Escuta, vou ter de cumprimentar Oriane. Tenho tão pouco tempo para ficar em Paris que quero tentar ver aqui todas as pessoas a quem teria de deixar cartões de visita, não fosse isso. 
- Como parecem ser bem-educados, como têm boas maneiras - ia dizendo o Sr. de Charlus. 
- O senhor acha? - respondia a Sra. de Surgis, encantada.

     Tendo Swann me avistado, aproximou-se de Saint-Loup e de mim. A alegria judaica era nele menos refinada que os gracejos de homem mundano.

- Boa-noite - disse-nos. 
- Meu Deus, nós três juntos, vão pensar que é uma reunião do sindicato. Por pouco não vão procurar onde está a caixa! -

     Não percebera que o Sr. de Beaucerfeuil estava às suas costas e o escutava. O general involuntariamente franziu as sobrancelhas. Ouvíamos a voz do Sr. de Charlus bem perto de nós:

- Como? O senhor se chama Victurnien, como no Gabinete das Antiguidades? - dizia o barão a fim de prolongar a conversa com os dois rapazes. 
- De Balzac, sim - respondeu o mais velho dos Surgis, que jamais lera uma linha sequer desse romancista, mas a quem seu professor havia assinalado, dias antes, a semelhança de seu prenome com o de d'Esgrignon. A Sra. de Surgis estava encantada por ver o filho brilhar e o Sr. de Charlus extasiado ante tanta ciência. 
- Parece que Loubet está conosco, isso de fonte seguríssima - disse a Saint-Loup, mas desta vez em voz mais baixa para não ser ouvido pelo general, Swann, para quem as relações republicanas de sua mulher se tornavam mais interessantes desde que o Caso Dreyfus era o centro de suas preocupações. - Digo-lhe isto porque sei que, no fundo, o senhor está do nosso lado. 
- Mas nem tanto assim; o senhor se engana completamente - respondeu Robert. - Trata-se de um caso mal conduzido, ao qual lamento muito ter me associado. Não tinha nada que me meter. Se pudesse começar, ficaria à parte. Sou soldado e antes de tudo pelo exército. Se ficar um momento com o Sr. Swann, estarei contigo daqui a pouco. Vou ver minha tia. -

     Mas percebi que era com a Srta. d'Ambresac que ele ia conversar e desgostei-me à ideia de que me houvesse mentido acerca de seu possível noivado. Tranquilizei-me ao saber que Robert lhe fora apresentado a meia hora pela Sra. de Marsantes, que desejava esse casamento, pois os d'Ambresac eram muito ricos.

- Por fim - disse o Sr. de Charlus à Sra. de Surgis encontrei um rapaz instruído, que leu, que sabe quem é Balzac. E isso me causa muito mais satisfação por tê-lo conhecido justamente onde isso se faz mais raro, em casa de um de meus parentes, em casa de um dos nossos - acrescentou sublinhando essas palavras.

     Por mais que aparentassem achar todos, homens iguais, os Guermantes, nas grandes ocasiões em que se achavam com pessoas "bem nascidas", e sobretudo menos "bem nascidas", a desejavam e podiam lisonjear, não hesitavam em extrair as velhas lembranças de família. 

- Antigamente - continuou o barão - aristocratas significava os melhores, pela inteligência, pelo coração. Ora, eis o primeiro dentre nós que vejo conhecer quem seja Victurnien d'Esgrignon. Aliás, estou admirado quando digo o primeiro. Há também um Polignac e um Montesquiou. - acrescentou o Sr. de Charlus, que sabia que essa dupla assimilação devia inebriar a marquesa. - Além disso, os seus filhos têm a quem puxar; o avô materno deles possuía uma coleção célebre do século XVIII. Trar-lhe-ei a minha se me quiser dar o prazer de ir almoçar comigo um dia - disse ao jovem Victurnien. - Vou lhe mostrar uma curiosa edição do Gabinete das Antiguidades com correções da mão do próprio Balzac. Ficarei encantado em comparar os dois Victurnien.  

continua na página 43...
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Leia também:

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Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - Nesse momento, a Sra. de Surgis)   
Volume 6
Volume 7

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