O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Segunda Parte
7.
Liébediev explicou, gesticulando muito:
- O filho de Pavlíchtchev ! O filho de
Pavlíchtchev com mais uns outros! Não prestam para nada! Não merecem vir
aqui para estorvar. Não vale a pena, príncipe, lhes dar atenção. E nem fica bem o
senhor se incomodar por causa de um tal canalha, ilustríssimo príncipe. Não
prestam para nada...
- O filho de Pavlíchtchev está aí? Oh, meu Deus! –
exclamou o príncipe sobremodo desconcertado.
- Ah, sim. Você sabe, porém,
que... já pedi a Gavril Ardaliónovitch que trate do caso desse moço. E ainda
agora Gavril Ardaliónovitch me disse que...
Nisto apareceu Gánia, vindo do pavilhão para a varanda, acompanhado por
Ptítsin. Dentro do pavilhão havia rumores de altercação, ruídos esses que logo
foram escutados na sala contígua, como se pessoas estivessem se aproximando.
E a voz do GeneralÍvolguin parecia querer dominar as outras. Kólia correu lá
para dentro.
- Ora aí está uma coisa pela qual me interesso – disse alto Evguénii Pávlovitch.
“Então este senhor aqui está a par do que se trata” pensou o príncipe.
- Um filho
de Pavlíchtchev?... Qual filho de Pavlíchtchev? -perguntou admirado o General
Iván Fiódorovitch, olhando para o grupo com curiosidade e logo percebendo pelo
rosto de todos, com surpresa, que ele era o único que ignorava essa nova
revelação.
De fato a excitação e a expectativa eram gerais. O príncipe ficou profundamente
espantado que um caso assim tão pessoal despertasse tamanho interesse da parte
de todos.
- Aproveite, príncipe, e ponha logo um ponto final nisso, já, o senhor
mesmo. - era Agláia quem falava assim, levantando-se na direção do príncipe,
com uma seriedade muito particular. - E consinta que sejamos suas testemunhas.
Estão ensaiando atirar-lhe lama, príncipe. Deve defender-se de modo triunfante.
E saiba que ficarei contente se o fizer.
A Sra. Epantchiná corroborou:
- E eu também. Quero que essa reivindicação enervante tenha um remate
categórico. Trate-os como merecem ser tratados, príncipe. Não os poupe! Essa
história anda a pôr zoada nos meus ouvidos e já ando com a paciência em
pandarecos, por sua causa. Sem contar, ainda por cima, que deve ser interessante
ver a cara que eles têm. Faça-os fugir e nós continuaremos onde estamos. Agláia
teve uma boa ideia. Já ouviu referências a essa história, também príncipe? – desta vez se dirigia ao Príncipe Chtch...
- Naturalmente que já. Foi em sua casa,
até. Estou com muita curiosidade de ver esses rapazes - respondeu o Príncipe
Chtch... - São o que por aí se chama de niilistas, não é verdade?
- Não, alteza.
Não são propriamente dos tais niilistas - explicou Liébediev dando um passo à
frente, muito irrequieto. - Disse-me o meu sobrinho que estes tais já
ultrapassaram de muito o niilismo. Trata-se de uma classe diferente. E a senhora
se equivoca, Excelência, se cuida que os humilhará com sua veneranda
presença. Eles não sabem o que seja inibição perante quem quer que defrontem.
Longe disso. Os niilistas no mais das vezes sabem onde têm o nariz e são mesmo
gente culta; mas estes tais os ultrapassam de muito porque antes de tudo são
homens práticos, de negócios... Estes aqui fazem parte de uma espécie de
dissidentes do niilismo, não lhes seguem a linha, adotam uma variante, uma
espécie de viés, por tradição oral; não se manifestam através de artigos de
jornais e sim por tarefas diretas, ativas. Não é uma questão, por exemplo, da
irracionabilidade de Púchkin ou de qualquer outro, nem da necessidade de
desarticular a Rússia toda, não. O que eles pregam e exigem é o direito que uma
pessoa tem, caso deseje deveras uma coisa, de não se deter perante quaisquer
obstáculos, mesmo que seja preciso liquidar com meia dúzia de indivíduos para
obter uma finalidade. Seja lá como for, príncipe, eu o aconselharia a não...
Mas o
príncipe, já tinha ido abrir a porta para eles, dizendo enquanto isso, a sorrir:
- Você os está caluniando, Liébediev. Vejo que seu sobrinho influenciou muito os
seus sentimentos.
Não acredite nele, Lizavéta Prokófievna. Posso assegurar-lhe que isso de
Górskii e Danilóv são meras exceções, e que estes rapazes... estão apenas...
equivocados.. Preferia não recebê-los aqui, diante de outras pessoas. Desculpe-me Lizavéta Prokófievna. Deixá-los-ei entrar apenas para que a senhora à veja;
depois, passarei para a sala com eles. Entrem, senhores!
Afligia-o ainda um
outro pensamento, e bem desagradável: não teria porventura alguém arranjado
de antemão tal encontro para essa hora e na presença de toda essa gente, que
assim testemunharia um espetáculo com propensões mais de vergonha e derrota
do que de triunfo? Mas logo ficou triste por lhe vir ao pensamento uma tão
“monstruosa e perversa desconfiança”. Morreria de pejo se alguém descobrisse
que uma tal ideia fulgurara em sua mente.
No momento em que os visitantes
entraram, logo tendeu a acreditar que o seu senso moral estava muito abaixo do
nível dos recém-vindos. Entraram cinco pessoas: quatro visitantes e o General
Ívolguin, este então em um estado de grande nervosismo e violenta loquacidade.
O príncipe pensou: “O general decerto está do meu lado”. E sorriu. Kólia
esgueirava-se por entre eles, falando muito inflamado com Ipolít, que fazia parte
do grupo. E, escutando, Ippolít arreganhava os dentes. O príncipe os fez sentar.
Eram todos muito jovens, meros adolescentes, de maneira que tal visita, o
assunto e a atenção que lhes estava sendo dispensada, tudo tomava deveras um ar
de coisa extravagante. Iván Fiódorovitch, por exemplo, que nada sabia ainda a
respeito dessa nova revelação e nem a podia compreender, ficou indignado
quando viu que se tratava de gente assim tão nova.
Se não o contivesse a impetuosidade inconcebível de sua mulher a favor dos
negócios particulares do príncipe, o general teria lavrado o seu protesto,
retirando-se. Todavia se deixou ficar, parte por curiosidade, parte por
cavalheirismo, esperando ajudar o príncipe ou, no mínimo, vir a ser útil no
exercício da autoridade que emanava de sua pessoa e de sua condição. Mas a
profunda saudação que o General Ívolguin lhe fez de longe o pôs de novo sobre
brasas. Amarrou a cara e resolveu taxativamente se manter calado.
Se três do
grupo eram bem jovens, o quarto porém já era homem perto dos trinta anos.
Tratava-se do tenente reformado que fizera parte do bando de Rogójin, o tal
campeão de boxe “que nos seus bons tempos não dava aos mendigos nunca
menos de quinze rublos a cada um”. Adivinhava-se logo que viera com os outros
como um amigo “persuasivo” e para, caso necessário, garanti-los. O primeiro e
o mais importante dos restantes era um jovem a quem
fora dada a designação de “o filho de Pavlíchtchev”, muito embora se
apresentasse com o nome de Antíp Burdóvskíi.
Era um rapaz de roupas sujas e
comuns. As mangas do seu casaco brilhavam como dois espelhos. O colete puído
estava abotoado acima da junção das clavículas, tapando de todo a camisa; trazia
ao pescoço uma echarpe de seda preta incrivelmente ensebada e mais torcida do
que uma corda. Mãos encardidas. Não era feio e o rosto, conquanto marcado de
espinhas, entremostrava, se é que assim se pode dizer, um ar de insolente
inocência. Teria uns vinte e dois anos, era magro e de estatura regular. Não havia
um traço de escárnio nem de introspecção na sua fisionomia; nada, a não ser
uma visível convicção dos seus próprios direitos e ao mesmo tempo algo como
uma estranha e permanente vontade de ser e de se sentir insultado.
Entrara acompanhado pelo sobrinho de Liébediev, já conhecido do leitor, e por
Ippolít, e vinha falando com excitação e depressa; dava a impressão de gaguejar,
percebendo-se que pronunciava as palavras com dificuldade e precipitação,
dando às sílabas um sotaque que parecia de estrangeiro; mas era russo legítimo.
Ippolít ainda era mais jovem do que os demais; devia andar pelos dezessete ou
dezoito anos, tinha uma expressão inteligente mas irritada e apresentava
evidentes sinais de doença. Magro como um esqueleto, pálido e amarelo como
um círio, olhos brilhantes como brasas; nas bochechas chupadas, havia de cada
lado uma mancha vermelha típica da tuberculose. De fato, tossia sem parar, a
mínima palavra e o menor hausto o pondo sufocado. Devia estar tuberculoso já
em terceiro grau. Dir-se-ia que não tinha vida para mais de umas três semanas.
Tão cansado se sentia que logo se atirou a uma cadeira, diante de todos.
Os outros
visitantes ficaram um tanto cerimoniosos e mesmo confusos, mal acabaram de
aparecer na varanda. Faziam tudo, ainda assim, para assumir um ar importante e
se via bem que temiam não aguentar até ao fim essa dignidade que contrastava
tanto com a fama do desprezo que manifestavam pelas trivialidades do mundo e
pelas convenções, já que só consideravam uma coisa: os seus interesses.
E eis que cada qual se apresentou, sucessivamente
- Antíp Burdóvskii -
pronunciou “o filho de Pavlíchtchev”, depressa, como a evitar que a língua se
travasse.
- Vladímir Doktorénko - articulou clara e distintamente o sobrinho de Liébediev,
como alardeando o fato de possuir tal nome.
- Keller - disse o tenente reformado.
- Ippolít Tieriéntiev - sibilou o último do grupo, com uma inesperada voz
de falsete.
Um por um, eles finalmente se sentaram nas cadeiras vagas existentes perto do
Príncipe e, tendo declarado seus nomes, deram em rodar nas mãos os gorros a
fim de reforçar suas atitudes. Parecia que iam falar, mas permaneceram
calados, à espera de qualquer coisa. Mas aquele silêncio tinha algo de desafio,
como dando a entender que “não, meu caro, está muito enganado se pensa que
desistimos”.
Bastaria uma pessoa articular algumas palavras a título de prólogo querendo
ajudá-los, para que desandassem a falar ao mesmo tempo, atrapalhando-se uns
aos outros.
continua página 233...
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