quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (7b) - Liébediev explicou, gesticulando muito

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

7.

     Liébediev explicou, gesticulando muito:

- O filho de Pavlíchtchev ! O filho de Pavlíchtchev com mais uns outros! Não prestam para nada! Não merecem vir aqui para estorvar. Não vale a pena, príncipe, lhes dar atenção. E nem fica bem o senhor se incomodar por causa de um tal canalha, ilustríssimo príncipe. Não prestam para nada...
- O filho de Pavlíchtchev está aí? Oh, meu Deus! – exclamou o príncipe sobremodo desconcertado.
- Ah, sim. Você sabe, porém, que... já pedi a Gavril Ardaliónovitch que trate do caso desse moço. E ainda agora Gavril Ardaliónovitch me disse que...

     Nisto apareceu Gánia, vindo do pavilhão para a varanda, acompanhado por Ptítsin. Dentro do pavilhão havia rumores de altercação, ruídos esses que logo foram escutados na sala contígua, como se pessoas estivessem se aproximando. E a voz do GeneralÍvolguin parecia querer dominar as outras. Kólia correu lá para dentro. 

- Ora aí está uma coisa pela qual me interesso – disse alto Evguénii Pávlovitch. 

“Então este senhor aqui está a par do que se trata” pensou o príncipe.

- Um filho de Pavlíchtchev?... Qual filho de Pavlíchtchev? -perguntou admirado o General Iván Fiódorovitch, olhando para o grupo com curiosidade e logo percebendo pelo rosto de todos, com surpresa, que ele era o único que ignorava essa nova revelação.

     De fato a excitação e a expectativa eram gerais. O príncipe ficou profundamente espantado que um caso assim tão pessoal despertasse tamanho interesse da parte de todos. 

- Aproveite, príncipe, e ponha logo um ponto final nisso, já, o senhor mesmo. - era Agláia quem falava assim, levantando-se na direção do príncipe, com uma seriedade muito particular. - E consinta que sejamos suas testemunhas. Estão ensaiando atirar-lhe lama, príncipe. Deve defender-se de modo triunfante. E saiba que ficarei contente se o fizer.  

     A Sra. Epantchiná corroborou:

- E eu também. Quero que essa reivindicação enervante tenha um remate categórico. Trate-os como merecem ser tratados, príncipe. Não os poupe! Essa história anda a pôr zoada nos meus ouvidos e já ando com a paciência em pandarecos, por sua causa. Sem contar, ainda por cima, que deve ser interessante ver a cara que eles têm. Faça-os fugir e nós continuaremos onde estamos. Agláia teve uma boa ideia. Já ouviu referências a essa história, também príncipe? – desta vez se dirigia ao Príncipe Chtch...
- Naturalmente que já. Foi em sua casa, até. Estou com muita curiosidade de ver esses rapazes - respondeu o Príncipe Chtch... - São o que por aí se chama de niilistas, não é verdade?
- Não, alteza. Não são propriamente dos tais niilistas - explicou Liébediev dando um passo à frente, muito irrequieto. - Disse-me o meu sobrinho que estes tais já ultrapassaram de muito o niilismo. Trata-se de uma classe diferente. E a senhora se equivoca, Excelência, se cuida que os humilhará com sua veneranda presença. Eles não sabem o que seja inibição perante quem quer que defrontem. Longe disso. Os niilistas no mais das vezes sabem onde têm o nariz e são mesmo gente culta; mas estes tais os ultrapassam de muito porque antes de tudo são homens práticos, de negócios... Estes aqui fazem parte de uma espécie de dissidentes do niilismo, não lhes seguem a linha, adotam uma variante, uma espécie de viés, por tradição oral; não se manifestam através de artigos de jornais e sim por tarefas diretas, ativas. Não é uma questão, por exemplo, da irracionabilidade de Púchkin ou de qualquer outro, nem da necessidade de desarticular a Rússia toda, não. O que eles pregam e exigem é o direito que uma pessoa tem, caso deseje deveras uma coisa, de não se deter perante quaisquer obstáculos, mesmo que seja preciso liquidar com meia dúzia de indivíduos para obter uma finalidade. Seja lá como for, príncipe, eu o aconselharia a não...

     Mas o príncipe, já tinha ido abrir a porta para eles, dizendo enquanto isso, a sorrir:

- Você os está caluniando, Liébediev. Vejo que seu sobrinho influenciou muito os seus sentimentos. Não acredite nele, Lizavéta Prokófievna. Posso assegurar-lhe que isso de Górskii e Danilóv são meras exceções, e que estes rapazes... estão apenas... equivocados.. Preferia não recebê-los aqui, diante de outras pessoas. Desculpe-me Lizavéta Prokófievna. Deixá-los-ei entrar apenas para que a senhora à veja; depois, passarei para a sala com eles. Entrem, senhores!

     Afligia-o ainda um outro pensamento, e bem desagradável: não teria porventura alguém arranjado de antemão tal encontro para essa hora e na presença de toda essa gente, que assim testemunharia um espetáculo com propensões mais de vergonha e derrota do que de triunfo? Mas logo ficou triste por lhe vir ao pensamento uma tão “monstruosa e perversa desconfiança”. Morreria de pejo se alguém descobrisse que uma tal ideia fulgurara em sua mente.
     No momento em que os visitantes entraram, logo tendeu a acreditar que o seu senso moral estava muito abaixo do nível dos recém-vindos. Entraram cinco pessoas: quatro visitantes e o General Ívolguin, este então em um estado de grande nervosismo e violenta loquacidade. O príncipe pensou: “O general decerto está do meu lado”. E sorriu. Kólia esgueirava-se por entre eles, falando muito inflamado com Ipolít, que fazia parte do grupo. E, escutando, Ippolít arreganhava os dentes. O príncipe os fez sentar. Eram todos muito jovens, meros adolescentes, de maneira que tal visita, o assunto e a atenção que lhes estava sendo dispensada, tudo tomava deveras um ar de coisa extravagante. Iván Fiódorovitch, por exemplo, que nada sabia ainda a respeito dessa nova revelação e nem a podia compreender, ficou indignado quando viu que se tratava de gente assim tão nova.
     Se não o contivesse a impetuosidade inconcebível de sua mulher a favor dos negócios particulares do príncipe, o general teria lavrado o seu protesto, retirando-se. Todavia se deixou ficar, parte por curiosidade, parte por cavalheirismo, esperando ajudar o príncipe ou, no mínimo, vir a ser útil no exercício da autoridade que emanava de sua pessoa e de sua condição. Mas a profunda saudação que o General Ívolguin lhe fez de longe o pôs de novo sobre brasas. Amarrou a cara e resolveu taxativamente se manter calado.
     Se três do grupo eram bem jovens, o quarto porém já era homem perto dos trinta anos. Tratava-se do tenente reformado que fizera parte do bando de Rogójin, o tal campeão de boxe “que nos seus bons tempos não dava aos mendigos nunca menos de quinze rublos a cada um”. Adivinhava-se logo que viera com os outros como um amigo “persuasivo” e para, caso necessário, garanti-los. O primeiro e o mais importante dos restantes era um jovem a quem fora dada a designação de “o filho de Pavlíchtchev”, muito embora se apresentasse com o nome de Antíp Burdóvskíi.
     Era um rapaz de roupas sujas e comuns. As mangas do seu casaco brilhavam como dois espelhos. O colete puído estava abotoado acima da junção das clavículas, tapando de todo a camisa; trazia ao pescoço uma echarpe de seda preta incrivelmente ensebada e mais torcida do que uma corda. Mãos encardidas. Não era feio e o rosto, conquanto marcado de espinhas, entremostrava, se é que assim se pode dizer, um ar de insolente inocência. Teria uns vinte e dois anos, era magro e de estatura regular. Não havia um traço de escárnio nem de introspecção na sua fisionomia; nada, a não ser uma visível convicção dos seus próprios direitos e ao mesmo tempo algo como uma estranha e permanente vontade de ser e de se sentir insultado.
     Entrara acompanhado pelo sobrinho de Liébediev, já conhecido do leitor, e por Ippolít, e vinha falando com excitação e depressa; dava a impressão de gaguejar, percebendo-se que pronunciava as palavras com dificuldade e precipitação, dando às sílabas um sotaque que parecia de estrangeiro; mas era russo legítimo. Ippolít ainda era mais jovem do que os demais; devia andar pelos dezessete ou dezoito anos, tinha uma expressão inteligente mas irritada e apresentava evidentes sinais de doença. Magro como um esqueleto, pálido e amarelo como um círio, olhos brilhantes como brasas; nas bochechas chupadas, havia de cada lado uma mancha vermelha típica da tuberculose. De fato, tossia sem parar, a mínima palavra e o menor hausto o pondo sufocado. Devia estar tuberculoso já em terceiro grau. Dir-se-ia que não tinha vida para mais de umas três semanas. Tão cansado se sentia que logo se atirou a uma cadeira, diante de todos.
     Os outros visitantes ficaram um tanto cerimoniosos e mesmo confusos, mal acabaram de aparecer na varanda. Faziam tudo, ainda assim, para assumir um ar importante e se via bem que temiam não aguentar até ao fim essa dignidade que contrastava tanto com a fama do desprezo que manifestavam pelas trivialidades do mundo e pelas convenções, já que só consideravam uma coisa: os seus interesses.
     E eis que cada qual se apresentou, sucessivamente

- Antíp Burdóvskii - pronunciou “o filho de Pavlíchtchev”, depressa, como a evitar que a língua se travasse.
- Vladímir Doktorénko - articulou clara e distintamente o sobrinho de Liébediev, como alardeando o fato de possuir tal nome. 
- Keller - disse o tenente reformado.
- Ippolít Tieriéntiev - sibilou o último do grupo, com uma inesperada voz de falsete.

     Um por um, eles finalmente se sentaram nas cadeiras vagas existentes perto do Príncipe e, tendo declarado seus nomes, deram em rodar nas mãos os gorros a fim de reforçar suas atitudes. Parecia que iam falar, mas permaneceram calados, à espera de qualquer coisa. Mas aquele silêncio tinha algo de desafio, como dando a entender que “não, meu caro, está muito enganado se pensa que desistimos”. 
     Bastaria uma pessoa articular algumas palavras a título de prólogo querendo ajudá-los, para que desandassem a falar ao mesmo tempo, atrapalhando-se uns aos outros. 

O Idiota: Segunda Parte (7b) - Liébediev explicou, gesticulando muito
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