segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (6c) - zombarias de adultos

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

6.

     Decerto já a aplicavam havia alguns meses. Mas o que mais a afligia era que o Príncipe Liév Nikoláievitch também estava começando a ficar enrubescido. sendo que acabou por fim tão sem jeito como um menino de dez anos ante zombarias de adultos.

- Bem, querem vocês parar com essa maluqueira, ou não? Expliquem já essa charada de “cavaleiro pobre”! É assim um segredo tão misterioso que não se possa vir a saber?

     Mas todos continuaram a rir.
     Por fim o Príncipe Chtch... resolveu explicar, querendo esclarecer o mistério e mudar a conversa:

- O fato é o seguinte: existe um estranho poema russo, ou melhor, uma balada a respeito de um cavaleiro pobre. Trata-se de um trecho solto, sem começo nem fim. Ora, aconteceu estarmos nós um dia, há coisa de um mês, querendo descobrir, alegres da vida, como sucede depois do jantar, um assunto para o próximo quadro de Adelaída. É sabido como a família inteira anda sempre tentando achar assuntos para as telas de Adelaída. Conversa vai, conversa vem, nos ocorreu o tema do “cavaleiro pobre”. Já nem me recordo quem foi que se lembrou disso primeiro.
- Foi Agláia Ivánovna ! - gritou Kólia.
- Talvez. Talvez tenha sido. Não me lembro - continuou o Príncipe Chtch... - Alguns riram da ideia, outros acharam que não havia assunto melhor. Mas todos foram unânimes quanto a isto: que para pintar o “cavaleiro pobre” antes de mais nada era preciso achar uma cara para ele. Começamos pelas caras de todos os amigos e conhecidos. Mas nenhuma dava certo. E então desistimos da ideia. Não sei por que motivo Nikolái Ardaliónovitch se lembrou disso e trouxe à baila essa história. O que naquela ocasião tinha propósito, já agora não interessa.
- Trata-se pela certa de alguma asneira dele com intenção perversa! - declarou logo Lizavéta Prokófievna. 
- Asneira? Pelo contrário: demonstração do mais profundo respeito! - aparteou Agláia de modo inteiramente inesperado e com voz grave e séria. Tinha dominado já a sua emoção e estava completamente à vontade. E mais ainda, olhando-a, até se podia verificar, mediante certos indícios, que ela se sentia bastante satisfeita pelo fato de a brincadeira estar prosseguindo. E essa revolução de sentimento se operou nela justamente à medida que o desapontamento crescente do príncipe se foi tornando visível para todos. 

     A generala investiu:

- Ainda agora vocês se riam de bobagens, e essa menina intervém e diz que se trata de coisa digna de respeito. Corja de malucos! Respeito de quê? Por quê? Digam logo que é que lhes incute tanto respeito!

     Cada vez mais séria e grave, Agláia respondeu logo à pergunta desdenhosa da mãe:

- O mais profundo respeito, sim senhora, porque esse poema descreve nem mais nem menos um homem que é capaz de um ideal. E mais ainda: um homem que, uma vez deparando com esse ideal acredita nele e por ele dá a sua vida, cegamente. Ora, isso nem sempre acontece nos nossos dias. O poema não diz exatamente qual seja o ideal do “pobre cavaleiro”, mas podemos inferir que seja alguma visão, alguma imagem de “pura beleza”. Vai daí, devido a essa amorosa devoção, o cavaleiro pôs um rosário em volta do pescoço, em vez do gorjal. É verdade que há uma divisa obscura, que não nos é explicada, naquelas letras A. N. B. gravadas no seu escudo... 

     Kólia corrigiu-a logo: - A.M.D.!

- Se eu disse A. N. B., sei o motivo... - atalhou Agláia, zangando-se. - Evidentemente fica explícito que a esse cavaleiro pobre pouco se lhe dava quem fosse a sua dama e o que ela fazia. A ele lhe bastava tê-la escolhido e ter posto a sua fé em sua “pura beleza”, a que não cessou de render homenagem. E é nisto justamente que está o mérito. Mesmo que ela se tornasse, por exemplo, ladra, mais tarde, para ele o que importava era acreditar nela e estar sempre disposto a quebrar lanças por sua “pura beleza”. O poeta parece ter querido significar, em uma impressionante figura, a concepção do amor platônico da cavalaria medieval, tal como era sentido por um leal e sublime cavaleiro. Naturalmente tudo isso é um ideal. No nosso cavaleiro pobre tal sentimento atinge o seu limite mais elevado no ascetismo. Deve-se admitir que ser capaz de tais sentimentos significa muita coisa e que eles produzem uma profunda impressão. Imensa, louvável sob qualquer ponto de vista por exemplo, em Dom Quixote. O “pobre cavaleiro” no fundo é o próprio Dom Quixote. Um Dom Quixote sério e não cômico. No começo eu não entendia e me ria dele, mas agora amo e respeito o “pobre cavaleiro”.

     Foi com estas palavras que Agláia concluiu. Encarando-a, era difícil dizer se estava falando sério, ou pilheriando. E a mãe comentou:

- Seja lá como for, não passa de um maluco. Ele, com as suas façanhas... Só disseste tolices, criatura, com essa tua lengalenga, e a meu ver isso não te fica bem. Pelo menos não são boas maneiras. Como é esse poema? Recita-o lá! Decerto o sabes de cor. Preciso ouvir. Sempre embirrei com versos; deles não sai nada que preste. Mas, pelo amor de Deus, dê a sua opinião, príncipe! Ajude-me! Pois não combinei, daquela vez, que nos ajudaríamos os dois a esclarecer coisas? - acrescentou ela, voltando-se para o Príncipe Liév Nikoláievitch.

     Mostrava-se bastante zangada. O príncipe tentou falar, mas se sentiu demasiado confuso. Agláia, no entanto, que já se excedera no seu discurso, não estava absolutamente embaraçada; muito pelo contrário, parecia radiante com o efeito produzido. Levantou-se logo, ainda grave e séria, atendendo ao pedido materno, como se outra coisa não quisesse agora senão recitar. E foi para o meio da varanda, bem defronte do príncipe, que continuava sentado na sua poltrona. Todos os olhares a acompanharam, com surpresa. O Príncipe Chtch... as irmãs e a mãe de Agláia pareciam incomodados com essa brincadeira que já os preocupava. Era evidente que ela se comprazia com a expectativa, demorando bastante o prelúdio do recitativo. Lizavéta Prokófievna esteve a ponto de ordenar à filha que se sentasse. Bem no momento em que esta começou a declamar a célebre balada, outras duas visitas entraram da rua e se dirigiram à varanda. Eram o general e um jovem. A entrada de ambos causou discreto alvoroço.

O Idiota: Segunda Parte (6c) - zombarias de adultos
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