sábado, 26 de outubro de 2024

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Dispersas LXXXII - O Duque

Cruz e Sousa


Obra Completa
Volume 1
POESIA


O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos


DISPERSAS 

O DUQUE 

Quando o duque voltava da caçada 
Alegre num clarim d’aço vibrante 
De alacridade moça e evigorada 
Dum ruidoso e trêfego estudante. 

Quando ele vinha com seu ar bizarro 
De atravessar os vales e as colinas, 
Sadio aspecto fresco como um jarro 
Cheio de leite às horas matutinas. 

Em toda a aristocrática varanda 
Alta e vistosa, ampla, aberta em janelas, 
Ele vibrava, de uma e outra banda, 
Canções de amor, nostálgicas e belas. 

Do salão nobre entre tapeçarias 
De Gobelins, riquíssimas e raras, 
Iam vibrando aladas harmonias 
Da sua voz, esplêndidas e claras. 

Todas as fluidas, leves, calmas, frescas 
Manhãs azuis, serenas e formosas, 
Loura mulher das regiões tudescas 
O seu bom-dia era mandar-lhe rosas. 

Floria, é certo, em grande amor, floria 
Gerado pelo eflúvio dessas flores, 
Pois quando o duque não as recebia 
Era o mais infeliz dos caçadores. 

Tão doce amor lembrava aquelas lendas 
Dos medievais castelos esquecidos, 
Quando visões de nuvens e de rendas 
Apareciam nos balcões floridos.

A caça, a caça, eternamente a caça! 
Quanto melhor, mais fácil não lhe fora 
A conquista das aves do que a graça 
De conquistar essa beleza loura! 

Para possuí-la como noiva amada, 
Aceso há muito nas paixões insanas, 
Arrostaria a caça mais ousada 
Dos javalis nas selvas africanas. 

E sempre as lindas rosas matutinas 
Vinham-no perfumar todos os dias, 
Quando saltava aos vales e às colinas, 
Bizarro e são, dentre as tapeçarias. 

Tempos passaram sobre tais amores! 
Mas depois de casado fez surpresa 
Saber que o duque, o rei dos caçadores, 
Não tinha o mesmo amor pela duquesa. 


A ESPADA 

Cavalheiros, os tempos já passados, 
De pagens, de canzéis, de fidalguia, 
De castelos, de remos brasonados. 

Ar cortesão de graça e fantasia 
Através dos olhares e dos beijos 
– No silêncio de cada galeria... 

Foi nesse bravo tempo dos lampejos 
De espadas, de punhais e de couraças 
Por combater frementes de desejos. 

No tempo dos floreios e das caças 
Dos assaltos alegres e bizarros 
Como as sonoras vibrações das taças. 

Em que as almas airosas como jarros, 
Cheios de vinho espumejante e ardente 
Eram de glória vencedores carros! 

Foi no tempo fidalgo e refulgente, 
Quando o heroísmo fantasioso amava 
A linha e a chama de luzida gente, 

Que esta cena galharda se passava, 
Quando um donzel partia para guerra 
Como a nobreza do solar mandava. 

O pai, um tronco transudando a terra, 
Forte e viril, presença de profeta 
Que no seu flanco a valentia encerra. 

Barbas serenas de bondoso asceta 
Em cuja alvura doce e veneranda 
Vê-se a vontade e a intrepidez completa. 

Fronte banhada de meiguice branda 
A que o dever e os ríspidos conselhos 
Dão sempre a austeridade que age e manda. 

Lembra um ocaso de clarões vermelhos, 
Musgoso, triste, desolado muro, 
Por onde o luar abre fulgor d’espelhos. 

E esse semblante que parece duro, 
Áspero e torvo, trouxe-o dos combates, 
Do torvelinho do nevoeiro escuro. 

Dos pelouros sangüíneos escarlates, 
De fogo aberto em turbilhões, vorazes, 
Dos impulsivos, bélicos rebates. 

Mas, bem olhadas, as feições audazes 
Desse velho patriarca destemido 
Tinham a suavidade dos lilases. 

Nos olhos, um passado consumido 
Entre aventuras e colóquios belos 
Como que faz um verdadeiro ruído... 

Sentem-se neles noites de castelos 
Gozadas em amores dadivosos, 
Em madrigais, em íntimos desvelos. 

Cavalgadas, torneios donairosos, 
Sonho feliz de rica mocidade, 
Requintes ideais, cavalheirosos. 

Tudo se sente na tranquilidade 
Desse deus varonil da força antiga 
Feito com o rijo bloco da Verdade. 

Tudo se sente nessa paz amiga 
Que as crenças do passado às outras crenças 
Vagas, futuras, para sempre liga. 

Tudo se sente vir das névoas densas 
E da ridente e cândida meiguice 
Das suas barbas límpidas e imensas. 

Sim! tudo da quase criancice 
Que dão aos homens esses tons nevoentos 
Da enregelada e trêmula velhice. 

Porém, reatando aéreos pensamentos... 
Comecemos na cena detalhada 
Que já das eras se espalhou nos ventos. 

É nada mais que a história duma espada, 
História curta, mas interessante 
Duma espelhante lâmina timbrada. 

Não é pelo aço ou lâmina espelhante 
Que irei contar, pois são comuns os aços, 
Mas pelo nobre e original rompante. 

Pelo ardimento que os primeiros braços 
Que a manejaram com pujança e brio 
Nela gravaram, com profundos traços. 

II 
O velho, em pé, atlético e sombrio 
Diante do filho armado cavaleiro, 
No aspecto dum leão ruivo e bravio, 

Fala-lhe claro, d’alto e sobranceiro, 
Numa solene e enérgica atitude 
De quem nos prélios sempre foi primeiro. 

O filho, grave o escuta e atende a rude 
Lhanez estóica da palavra augusta 
Que dos lábios lhe sai, com tal saúde.

Calmo, sem se mover, firme a robusta 
Figura solarenga do estoicismo, 
O velho disse esta nobreza justa: 

“Aqui tens esta espada que o heroísmo 
Dos teus avós honrou nessas campanhas, 
Com o mais ousado, intrépido civismo. 

Freme ainda hoje em convulsões estranhas, 
Palpita e anseia dentro da bainha 
Sonhando a luta, as implacáveis sanhas. 

Tu, para a teres, como eu sempre a tinha, 
Num triunfo imortal, quase divino, 
De gládio que o valor maior continha; 

É necessário um grande ardor leonino, 
Que sejas bem idólatra do nome 
Que fez de mim o extremo paladino. 

A ferrugem, tu vês, o aço consome... 
Porém, neste aço que ainda aqui fulgura, 
Se houver ferrugem, tira-a com o renome. 

Aqui tens, pois, a lâmina segura, 
Alma e brasão da nossa velha casa 
Coberta de ovações, famosa e pura”. 

Calou-se um instante, como a ave que a asa 
Fechou no voar, já quase que abatida, 
Caindo exausta junto à moita rasa. 

O filho, mudo e respeitoso, erguida 
A valente cabeça leal de moço, 
Formoso estava, porejando vida. 

E enquanto o velho, impávido colosso, 
Calara-se um momento, emocionado 
Ficara o filho em íntimo alvoroço. 

Mas de repente, como iluminado 
Por um clarão de glórias já extintas, 
Tornou o velho, aos poucos transformado: 

“Podes partir! Porém nunca desmintas 
Nas pelejas o dom da nossa fama, 
Por menos força que no peito sintas. 

Como um clarim, por toda a parte aclama 
O vigor deste ferro e do teu pulso 
No combate que ruja, ulule e brama”. 

E cada vez mais pálido e convulso, 
Mais nervoso e febril e mais altivo 
Bradou ainda, num tremendo impulso: 

“Se tu, que és da minh’alma o exemplo vivo, 
Meu filho, tens de ser como um cobarde, 
Como um vilão abjeto e repulsivo; 

Não faças mais de fidalguia alarde, 
Pega esta espada, meu Afonso, pega 
E quebra-a de uma vez, que não é tarde. 

Pois em lugar de fazer dela entrega 
Aos sequiosos, feros inimigos, 
Antes a quebre a cólera mais cega. 

Ei-la, aqui tens, a leoa dos perigos, 
Que como outrora em minha mão lampeja 
Da bravura e da fama nos abrigos. 

Se não a tens de honrar nessa peleja 
Escuta bem, ó meu amado filho, 
Quebra-a, e o teu nome nem manchado seja. 

Como eu faria noutra idade e brilho, 
Com outras energias musculares, 
Segue-me tu no denodado trilho”. 

E assim falando, em gestos singulares, 
O agigantado corpo retesando 
E um tom sinistro esparso nos olhares; 

A cabeça nos ares agitando 
Numa alucinação – enorme ereto, 
Como heróica visão, deblaterando... 

Fitando bem o filho predileto, 
Como se de repente lhe brotasse 
A força hercúlea dum poder secreto. 

O velho, qual um templo que abalasse, 
A mão crispada, lívida e nervosa, 
Com todo o esforço a lhe afluir na face, 
Partiu no joelho a espada vitoriosa. 




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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.
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Organização e Estudo
Lauro Junkes
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Impressão e Acabamento
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Formato
14 x 21cm

FICHA CATALOGRÁFICA

Catalogação na fonte por M. Margarete Elbert - CRB14/167
S725o      Sousa, Cruz e, 1861-1898
                        Obra completa : poesia / João da Cruz e Sousa ; organização
                  e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008.
                         v. 1 (612 p.)
                         Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do
                  traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.
                            1. Sousa, Cruz e, 1861-1898. 2. Poesia catarinense. I.
                  Junkes, Lauro. II. Titulo.
                                                                                      CDU: 869.0(816.4)-1

"A gente só tem saída na poesia."

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