Julio Cortázar
(1914-1984)
(1914-1984)
Diário de Alina Reyes
Noite
Começa, continua. Entre o final do concerto e o
primeiro bis achei seu nome e o caminho. A Praça
Yladas, a Ponte dos Mercados. Pela Praça Yladas
segui até o nascimento da ponte, um pouco andando
e querendo às vezes parar em casas ou vitrinas, em
meninos abrigadíssimos e monumentos com altos
heróis de embranquecidas capas, Tadeo Alanko e
Yladislas Néroy, bebedores de tócai e cimbalistas.
Eu via aplaudir Eisa Piaggio entre um Chopin e outro Chopin, pobrezinha, e de minha poltrona se saía
diretamente à praça, com a entrada de ponte entre
vastíssimas colunas. Mas isto eu pensava, atenção,
o mesmo que fazer anagramas con es la reina y ...
em vez de Alina Reyes, ou imaginar mamãe na casa
dos Suárez e não a meu lado. É bom não cair no meu
gosto: isso é coisa minha, nada mais que ter vontade, a vontade real. Real porque Alina, ora vamos - Não a outra coisa, não o sentir que ela tem frio ou que a maltratam. Isto eu desejo e o continuo por
gosto, para saber aonde vai, para saber se Luis Maria me leva a Budapeste, se nos casamos e lhe peço
que me leve a Budapeste. É mais fácil sair a procurar esta ponte, sair a minha procura e me encontrar
como agora, porque já andei a metade da ponte entre gritos e aplausos, entre Albéniz! e mais aplausos e A Polonaise!, como se isto tivesse sentido entre a
neve perigosa que me empurra com o vento pelas
costas, mãos de toalha de esponja me levando pela
cintura até o meio da ponte.
(É mais cômodo falar no presente. Isto era às oito,
quando EIsa Piaggio tocava o terceiro bis, acho que
Julián Aguirre ou Carlos Guastavino, alguma coisa
com grama e passarinhos.) Mas fiquei canalha com
o tempo, não lhe tenho mais respeito. Lembro-me
que um dia pensei: "Lá me batem, lá a neve entra
nos meus sapatos e eu sei disto na hora, quando lá
está me acontecendo eu fico sabendo na mesma hora. Mas por que na mesma hora? Talvez chegue tarde, talvez não tenha acontecido ainda. Talvez baterão nela daqui a catorze anos, ou já é uma cruz e um
número no cemitério de Santa Úrsula. "E me parecia bonito, possível, tão idiota. Porque atrás disso a
gente sempre cai no tempo igual. Se agora ela estivesse realmente entrando na ponte, sei que o sentiria agora mesmo e daqui. Lembro-me de que parei
para olhar o rio que estava como maionese encrespada, batendo contra os pilares, enfurecidíssimo e
soando e chicoteando. (Isto eu pensava.) Valia a
pena assomar ao parapeito da ponte e sentir nas orelhas a quebra do gelo ali embaixo. Valia a pena ficar,
um pouco pela vista, um pouco pelo medo que me vinha de dentro - ou era o desabrigo, a nevada violenta e o meu casaco de pele no hotel. E depois porque eu sou modesta, sou uma moça sem vaidades,
mas quero saber de outra a que tenha acontecido a
mesma coisa, que viaje à Hungria em pleno Odeón.
Isso faz qualquer um sentir frio, cara, aqui ou na
França.
Mamãe, porém, me puxava pela manga, quase já
não havia gente na plateia. Escrevo até aqui, sem
vontade de continuar me lembrando do que pensei.
Vai me fazer mal se continuo me lembrando. Mas é
verdade, verdade; pensei uma coisa curiosa.
30 de janeiro
Pobre Luis Maria, que burrice se casar comigo.
Não sabe o que está pondo em cima dos ombros. Ou
embaixo, como diz Nora, que posa de intelectual
emancipada.
31 de janeiro
Iremos lá. Concordou com tanta coisa que quase
grito. Senti medo, achei que ele entra muito facilmente neste jogo. E não sabe de nada, é como o peãozinho da dama que termina a partida sem saber.
Peãozinho Luis Maria, ao lado de sua rainha. De Ia
rema y -
7 de fevereiro
Para se curar. Não escreverei o final do que tinha pensado no concerto. Na noite passada eu a senti
sofrer outra vez. Sei que lá estarão batendo de novo
em mim. Não posso evitar de sabê-lo, mas chega de
palavras. Se me houvesse limitado a registrar isso
por gosto, por desabafo ... Era pior, um desejo de
conhecer ao ir relendo; de encontrar chaves em
cada palavra atirada ao papel depois dessas noites.
Como quando pensei a praça, o rio quebrado e os
ruídos, e depois ... Mas não o escrevo, não o escreverei jamais.
Ir lá e me convencer de que o celibato me fazia
mal, nada mais que isso, ter vinte e sete anos e sem
homem. Agora será meu cachorrinho, meu bobinho,
chega de pensar, e agora ser, ser afinal e para o bem.
E apesar disso, já que terminarei este diário, porque a gente ou se casa ou escreve um diário, as duas
coisas não andam juntas -Já agora não me agrada
deixá-lo sem dizer isto com alegria de esperança,
com esperança de alegria. Vamos lá, mas não há de
ser como o pensei na noite do concerto. (Escrevo-o,
e chega de diário para o meu bem.) Eu a encontrarei
na ponte e nos olharemos. Na noite do concerto eu
sentia nas orelhas a quebra do gelo ali embaixo. E
será a vitória da rainha sobre essa aderência maligna, usurpação indevida e surda. Entregar-se-á se realmente sou eu, se somará à minha zona iluminada,
mais bela e verdadeira; apenas por ir a seu lado e
apoiar uma mão no seu ombro.
Alina Reyes de Aráoz e seu esposo chegaram a Budapeste a 6 de abril e se hospedaram no Ritz. Isso
foi dois meses antes do seu divórcio. Na tarde do
segundo dia Alina saiu para conhecer a cidade e o
degelo. Como gostava de caminhar sozinha - era
rápida e curiosa - andou por vinte lados procurando vagamente alguma coisa, mas sem se determinar muito, deixando que o desejo escolhesse e se
expressasse com bruscos arrancos que a levavam de
uma vitrina a outra, mudando de calçadas e lojas.
Chegou à ponte e a atravessou até a metade, andando agora com dificuldade porque a neve batia de
frente e do Danúbio cresce um vento de baixo, difícil, que prende e fustiga. Sentia como a saia se grudava nas coxas (não estava bem abrigada) e, de repente, um desejo de voltar, voltar à cidade conhecida. Na metade da ponte desolada a andrajosa mulher de cabelo negro e lasso esperava com alguma
coisa firme e ávida na cara sinuosa, nas rugas das
mãos meio fechadas mas já se estendendo. Alina
chegou junto a ela repetindo, agora o sabia, gestos e
distâncias como depois de um ensaio geral. Sem temor, libertando-se afinal - acreditava-o com um
sobressalto terrível de júbilo e frio - chegou junto a
ela e estendeu também as mãos, se negando a pensar, e a mulher da ponte se apertou contra seu peito
e as duas se abraçaram rígidas e caladas na ponte,
com o rio estilhaçado golpeando nos pilares.
Alina sentiu o fecho da bolsa que a força do
abraço cravava entre os seios como uma laceração
doce, suportável. Apertava a magríssima mulher
sentindo-a inteira e absoluta dentro do seu abraço,
com um crescer de felicidade igual a um hino, a um
soltar de pombas, ao rio cantando. Fechou os olhos na fusão total, recusando as sensações de fora, a luz
crepuscular; repentinamente tão cansada, mas certa
de sua vitória, sem celebrá-la por tão seu e finalmente.
Pareceu-lhe, docemente, que uma das duas chorava. Devia ser ela porque sentiu molhadas as faces,
e o próprio pômulo doendo como se tivesse ali levado um golpe. Também o pescoço, e logo os ombros, curvados por fadigas incalculáveis. Ao abrir
os olhos (talvez gritasse agora) viu que se haviam
separado. Agora, sim, gritou. De frio, porque a
neve estava entrando por seus sapatos furados,
porque andando a caminho da praça ia Alina Reyes
lindíssima em seu vestido cinzento, o cabelo um
pouco solto contra o vento, sem voltar o rosto e andando.
continua na página 23...
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Sarau... Distante (b) - (Julio Cortázar)
*Mantidos no original, para preservar a possibilidade de leitura da direita para a esquerda. (N. do T.)
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